No dia 21 de novembro de 2024, o tenente-coronel do Exército Mauro Cid prestou um depoimento ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, pressionado pelo risco de voltar à prisão graças à suspeita de ter desrespeitado os termos que o mantinham fora dela. Ele decidiu, então, contar quando soube que militares “iam possivelmente começar um planejamento sobre alguma ação” golpista após as eleições de 2022.
Dentre suas revelações naquele dia, uma se destaca: a parte mais violenta da trama golpista em 2022 teve início após uma conversa informal com dois “kids pretos”, ambos amigos seus de longa data, no hotel de trânsito para oficiais dentro da Vila Militar em Goiânia (GO) – em pleno Comando de Operações Especiais do Exército.
No depoimento, Cid explicou que, à época da conversa, estava participando de reuniões de planejamento de futuras atividades militares na unidade dos “kids pretos”. Àquela altura, entre os dias 9 e 11 de novembro de 2022, o então ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tinha como certo que assumiria o comando do 1º Batalhão de Ações e Comandos – parte do Comando de Operações Especiais – a partir de janeiro de 2023.
Cid relatou a Moraes e Gonet que os oficiais “de Oliveira e Ferreira Lima” o procuraram numa noite durante sua estadia no hotel de trânsito de oficiais, após as atividades do dia. Ele se referia ao então major Rafael Martins de Oliveira e ao tenente-coronel Hélio Ferreira de Lima, “kids pretos” amigos de Cid havia mais de 20 anos – os três se formaram no ano de 2000 no curso de formação de oficiais da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).
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“Eles [Oliveira e Lima] estavam dispostos a fazer alguma ação que gerasse alguma mobilização de massa, que pudesse causar o caos institucional e que pudesse levar à decretação de um estado de defesa, estado de sítio, alguma coisa nesse sentido”, afirmou Cid.
À época dos fatos, o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima atuava como chefe de seção no Comando da 6ª Divisão de Exército, em Porto Alegre (RS). Já o hoje tenente-coronel Rafael Martins de Oliveira atuava, como major, na seção de planejamento naquele mesmo Comando de Operações Especiais, em Goiânia. Ambos estão presos desde 26 de novembro de 2024, graças à Operação Contragolpe, da Polícia Federal (PF) – no momento de sua prisão, aliás, Hélio Ferreira Lima fez questão de usar sua farda do Exército.
Na mesma conversa, os dois “kids pretos” hoje presos teriam pedido a Cid que agendasse uma reunião com o general Walter Braga Netto, porque o general “mantinha contato entre os manifestantes acampados na frente dos quartéis e o Presidente da República”.
O encontro aconteceu dias após a conversa no hotel do Exército, em 12 de novembro de 2022, na residência de Braga Netto em Brasília (DF), disparando uma série de ações clandestinas visando ao golpe de Estado.
“Na reunião [dos “kids pretos” com Braga Netto], se discutiu novamente a necessidade de ações que mobilizassem as massas populares e gerassem caos social, permitindo, assim, que o Presidente assinasse o estado de defesa, estado de sítio ou algo semelhante”, diz a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) na última quarta, 18 de fevereiro.
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Ainda segundo a PGR, “os diálogos mantidos após a reunião indicaram a aprovação, inclusive financeira, do plano por Braga Netto”. As investigações apontam que o plano teria custado R$ 100 mil – não se sabe ao certo, porém, a origem do dinheiro usado na operação.
De 12 de novembro até dezembro de 2022, foi colocada em prática a operação tramada pelos “kids pretos”, denominada “Copa 2022”, com monitoramento ilegal para o sequestro e “neutralização” (assassinato) do ministro Alexandre de Moraes.
O ápice da empreitada ocorreu na noite de 15 de dezembro, quando o grupo golpista ficou de tocaia no setor Sudoeste e no Parque da Cidade de Brasília, próximo de onde Moraes residia, preparado para capturá-lo. Mas a operação foi abortada de última hora.
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Para a PGR, o ataque contra Moraes não foi consumado pela falta de apoio do Alto- Comando do Exército ao golpe. Isso, porém, não impediu que os envolvidos ficassem à espera do ministro do STF para possivelmente capturá-lo e matá-lo.
As pontas soltas da operação “Copa 2022”
A denúncia apresentada pela PGR no caso da tentativa de golpe fornece respostas, mas não elucida quem eram todos os participantes da operação “Copa 2022”.
“A operação, conforme previsto pelo plano ‘Punhal Verde Amarelo’, envolveria ao menos seis militares, sendo essencial que houvesse um canal de comunicação entre eles, em que suas identidades permanecessem sob sigilo”, conforme apontado pela PF no relatório final sobre o caso.
Para executar a operação, os “kids pretos” criaram um grupo chamado “Copa 2022” no aplicativo Signal, onde a trama era arquitetada. Eles usavam típicas técnicas empregadas pelas Forças Especiais – codinomes cifrados e registro dos seis aparelhos celulares usados na operação em nome de terceiros, para não serem identificados. Os codinomes usados no grupo eram Alemanha, Argentina, Áustria, Brasil, Gana e Japão.
O tenente-coronel Rafael de Oliveira, um dos “kids pretos” que propuseram, no hotel do Exército em Goiânia, “causar o caos” no país, teve um papel central na trama golpista segundo a denúncia da PGR. As investigações revelam a presença do militar em reuniões estratégicas, na elaboração de planos de ação, no monitoramento ilegal de autoridades e na coordenação de operações clandestinas – como a “Copa 2022”.
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Um dos aparelhos usados na operação foi comprado, em espécie, em nome da esposa do tenente-coronel Rafael de Oliveira numa loja próxima à sua residência, em Goiânia.
O integrante do grupo “Copa 2022” identificado pelo codinome “Alemanha” teria usado dados de um homem que, meses antes, se envolveu em um acidente de trânsito com o veículo do “kid preto” – algo visto como mais um dos indícios de participação de Oliveira no plano extremista contra Alexandre de Moraes.
Além disso, os investigadores apontam que o “kid preto” Oliveira teria se reunido com o general Mário Fernandes, Mauro Cid e o ex-presidente Jair Bolsonaro em Brasília no dia 6 de dezembro de 2022.
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Na ocasião, os “kids pretos” teriam apresentado o conjunto de ações do plano “Punhal Verde Amarelo”, impresso naquele mesmo dia no Palácio do Planalto e prosseguido com as ações golpistas com aval de Bolsonaro. Segundo a PF, houve uma “intensificação do monitoramento do Ministro Alexandre de Moraes após o encontro” ocorrido em 6 de dezembro de 2022.
Com base nas evidências colhidas pela PF ao longo das investigações, a PGR acusa o então major, hoje tenente-coronel do Exército, Rodrigo Bezerra de Azevedo de ser o integrante “Brasil” no grupo “Copa 2022”. Azevedo também está preso desde 26 de novembro passado.
Dados de movimentação de aparelhos celulares em dezembro de 2022 e outras evidências reunidas pela PF dão base à acusação contra os “kids pretos” Rafael de Oliveira e Rodrigo Azevedo – que, para os investigadores, tinham uma relação de “extrema confiança”.
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Segundo a investigação, “não apenas o aparelho telefônico, mas também o número de telefone (sim card), ambos vinculados ao codinome ‘Brasil’ [no grupo “Copa 2022”, no aplicativo Signal], na ação do dia 15/12/2022, registraram conexões com ERBs [Estações Rádio-Base, que garantem a cobertura telefônica no país] próximas e compatíveis com a residência de Rodrigo Bezerra [de Azevedo]” em Goiânia, na época dos fatos.
“Kid preto” definia golpistas como “Força Legalista”
Se o tenente-coronel Oliveira se envolveu diretamente com a operação “Copa 2022”, a PF colheu elementos que apontam relação do tenente-coronel Lima com outra empreitada do golpe – a chamada operação “Luneta”.
A empreitada estava descrita em uma planilha com mais de 200 linhas preenchidas, abordando “fatores estratégicos de planejamento” – “fisiográfico, psicossocial, político, militar, econômico e produção”, de acordo com o relatório final da PF.
Segundo a PF, o tenente-coronel Hélio Lima “foi o responsável pela elaboração da planilha, denominada ‘Desenho Op Luneta’, cujo conteúdo revelou uma espécie de planejamento de ações táticas (análise de risco, avaliação de ambiente, avaliação de problema, análise de centro de gravidade etc.) para implementação do golpe”.
Ainda de acordo com a PF, o objetivo da operação “Luneta” era “reestabelecer a lei e a ordem por meio da retomada da legalidade e da segurança jurídica e da estabilidade institucional” após o golpe. Para tal, os golpistas teriam de criar uma “estrutura de apoio para o estabelecimento de um gabinete central de crise e gabinetes estaduais”, para consolidar o golpe. Ironicamente, o grupo conspirador era definido como “Força Legalista” na planilha apreendida pelos investigadores.
O documento apreendido com o “kid preto” continha sete linhas de operações em cinco blocos temporais, do período de dezembro de 2021 a agosto de 2023. Entre elas, havia uma meta de “neutralizar a capacidade de atuação do Min AM” – referência direta ao ministro Alexandre de Moraes, para a PGR.
A Agência Pública tentou contato com a defesa dos denunciados pela PGR citados nesta matéria, mas não teve sucesso até o fechamento. Conforme se manifestem, o texto será atualizado.