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Camponeses das comunidades ao longo do rio Marañón, um dos mais importantes afluentes do Amazonas, resistem às obras da Odebrecht para instalar hidrelétricas em Cajamarca, celeiro de alimentos do Peru

Reportagem
19 de agosto de 2015
18:00
Este artigo tem mais de 9 ano

“Não a Chadín” é o que se lê pichado no tronco de uma árvore à beira da estrada de terra que leva a Huanabamba, uma pequena vila ao norte do Peru. A árvore fica na frente de uma casinha de adobe rodeada por frutíferas silvestres e uma pequena plantação de bananeiras, compondo o cenário do caminho entre os Andes e a Amazônia peruana.

Os camponeses peruanos são famosos por sua hospitalidade, mas o homem que aparece na porta depois do meu chamado apenas rosna: “Quem é você?”. Primi Araujo, a professora primária que é minha guia na região, explica que sou uma jornalista de um veículo internacional. E, mais importante, não sou representante da construtora brasileira Odebrecht. “Eles [os funcionários de Odebrecht] vieram aqui e tiraram fotos sem minha permissão”, diz o agricultor Paquito Vargas Machuca para explicar sua reação à visita inesperada.

A hostilidade do camponês é uma boa mostra da reputação da Odebrecht em Huanabamba, um município de mil habitantes situado em um cânion cortado pelo rio Marañón, na divisa dos departamentos (estados) de Cajamarca, Amazonas e La Libertad. A família Vargas Machuca, composta por seis pessoas, corre o risco de perder a chácara em que vive para uma obra da Odebrecht. A área da sua chácara deve ser inundada pelo reservatório que gerará energia para a Hidrelétrica Rio Grande 1. Essa é uma das três hidrelétricas conhecidas coletivamente como “Chadín” – as outras são Rio Grande 2 e Chadín 2 – com concessão para construção obtida pela Odebrecht no governo peruano, mas ainda sem licença social – que compreende a consulta e anuência dos camponeses – para ser realizada. Rio Grande 1 e 2 inundarão uma área de 38 km2 e Chadín 2, outra de quase 33 km2.

A pequena cidade de Huanabamba é uma das mais impactadas entre as 20 comunidades que vivem na área de influência do projeto de hidrelétricas desenvolvido pela Eletrobras como parte dos acordos de comércio energético firmados entre Peru e Brasil em junho de 2010. Ao todo 20 represas serão instaladas ao longo dos 1.700 quilômetros do rio na próxima década, de acordo com o planejamento do governo peruano.

Paquito Vargas Machuca na porta da sua casa, em Huanabamba, com sua esposa e filhos. Foto Verónica Goyzueta
Paquito Vargas Machuca na porta da sua casa, em Huanabamba, com sua esposa e filhos. Foto Verónica Goyzueta

O rio Marañón é um dos afluentes mais importantes do rio Amazonas. Ele percorre uma região do norte do Peru onde se fundem dois dos biomas mais importantes da América do Sul: os planaltos montanhosos dos Andes e a densa floresta tropical da Amazônia. É uma das áreas mais ricas do mundo em biodiversidade e também um dos maiores depósitos de ouro do mundo. Marañón, o sinuoso rio que corta a Amazônia peruana, significa “serpente de ouro” em quéchua, a língua dos indígenas peruanos, porque as suas areias estão cheias de minérios.

A exploração de ouro e prata há mais de 30 anos ameaça a região, agora também traumatizada com os novos projetos hidrelétricos. Ali fica a sede da mineradora peruano-estadunidense Yanacocha, proprietária do projeto Conga, outra gigantesca jazida que também tem sido fonte de conflitos sociais que fazem da região uma das mais convulsionadas do país nessa última década. Protestos contra a mineração em Cajamarca, especialmente em Conga, deixaram 11 mortos e 282 feridos, entre 2004 e 2013. Segundo a Defensoría del Pueblo, 303 líderes ambientais foram presos e julgados no mesmo período.

A maior oposição ao projeto das hidrelétricas, porém, vem de agricultores ameaçados de perder suas terras, como Vargas Machuca, mas os ambientalistas se mobilizam também diante dos efeitos potencialmente negativos das obras ​​nessa região ecologicamente sensível. Agricultores e ambientalistas fazem a mesma pergunta: por que inundar uma das terras agrícolas mais produtivas e férteis do Peru?

Submergindo o celeiro do Peru

Localizado na região norte do país, o departamento de Cajamarca, um dos 25 do Peru, é um pouco menor que o estado do Rio de Janeiro, com uma área de cerca de 33 mil quilômetros quadrados. Ao norte, faz divisa com o Equador e, ao leste, com o departamento de Amazonas. Representa apenas 2,6% do território peruano, mas, segundo dados oficiais, fornece 6% da produção agropecuária, como bananas, mangas, arroz, feijão, mandioca e outros alimentos básicos consumidos no país. A região se destaca também na produção de café e cacau. A agropecuária – baseada na mão de obra familiar – emprega cerca de 340 mil pessoas no departamento, mais de 12% da população. Com 703 mil cabeças de gado, Cajamarca é também o principal produtor de carne bovina nacional, contribuindo com 17,8% do total nacional. Ali estão também grandes processadores de laticínios, como a multinacional Nestlé e o campeão nacional Grupo Gloria, um importante exportador peruano. Por isso, o departamento de Cajamarca ganhou fama de “celeiro do Peru”. “Nós comemos bem aqui”, resume Vargas Machuca.

Quando ouviu falar pela primeira vez sobre a represa Chadín, Vargas Machuca confessa que gostou da ideia. “Eles [Odebrecht] nos ofereceram um monte de coisas boas, mas nada disso realmente vai acontecer”, diz o camponês, que vive da pesca, das frutas e dos legumes que colhe na sua terra fértil, ao lado do Marañón. Ele conta que recebeu uma oferta da construtora para vender suas colheitas e terras e ganhar uma nova casa para a família, mas decidiu não aceitar. “Eles [Odebrecht] dizem que, se concordamos com um contrato de venda, eles vão nos pagar e vão nos mudar para outro lugar. Mas esse lugar é um deserto”, afirma.

A agricultora Gregoria Bazán, que vive perto dos Vargas, também se opõe à barragem. “Nós temos plantações de manga, limão, banana, folhas de coca, limões, que vendemos em Celendín (sede do município onde fica a comunidade) e Cajamarca (capital do departamento)”, enumera. Até os funcionários da Odebrecht que vivem em Cajamarca compram os alimentos que Gregoria e seus vizinhos produzem, como ela destaca, bem-humorada. “O que eles vão comer depois disso? Dinheiro? Eles terão prata e ouro, mas não vão ter nada para comer. Eles não vão ter água”, diz soltando uma gargalhada.

Além da preocupação com a remoção, os agricultores reclamam do direcionamento dos investimentos para o complexo hidrelétrico. “A região produz o melhor cacau do país, mas as estradas que estão construindo por aqui não fazem sentido em termos de transporte de produtos”, diz Milton Sánchez, secretário-geral da Plataforma Interinstitucional Celendina (PIC), organização que reúne os principais movimentos sociais da região. “Queremos estradas para levar frutas para o mercado, e não para os vales que serão inundados”, critica.

Em relação aos prejuízos ambientais, é impossível calcular a extensão do dano. “Eles estão bloqueando rios que fluem livres, que serão represados ​​pela primeira vez, em vários pontos, provocando alterações no fluxo hidrológico da Amazônia, e sem saber quais serão os impactos”, diz César Gamboa, diretor-executivo da ONG peruana Derecho, Ambiente y Recursos Naturales (DAR), em Lima.

Eletricidade e Lava-Jato

E para quem as hidrelétricas de Cajamarca e Chadín vão fornecer energia? Cajamarca é a sede de Yanacocha, a maior mina de ouro do mundo. Existem na área 16 projetos de mineração que precisarão de grande volume de eletricidade – especialmente Conga, El Galeno e Michiquillay – nas redondezas das barragens projetadas. Os acordos energéticos entre Brasil e Peru preveem a exportação de excedentes energéticos do Peru para o Brasil, mas a maior suspeita recai sobre as mineradoras.

Em 2013, o presidente Ollanta Humala deu a seguinte declaração em um congresso de mineração no Peru: “Como vemos, nesta área predominam os projetos de ouro e cobre, localizados na serra de Piura, Lambayeque, Cajamarca e Trujillo. Para funcionar, precisam de energia, e para isso se prevê a construção de pelo menos cinco centrais que, aproveitando a força hidráulica, poderão alcançar uma produção superior aos 10 mil megawatts”, discursou o presidente peruano. Os cinco projetos destacados por ele foram: Chadín 2, Rio Grande 1 e 2, Veracruz, Rentema e Manseriche, uns dos 20 que cortarão em pedaços o rio Marañón.

O que não surpreendeu o líder dos movimentos sociais Milton Sánchez. “Yanacocha vai usar três vezes mais energia do que a cidade de Trujillo (uma das cidades mais importantes do norte do país). Conga é três vezes maior”, compara. Só na área de Chadín há 16 projetos mineiros que precisam de energia, especialmente Conga, El Galeno e Michiquillay. “Para nós, isso já está claro”, diz.

Milton Sanchez, do PIC, Plataforma Interinstitucional de Celendín. Na praça do centro de Celendín, palco de protestas contra Conga e Chadín. Os protestos nessa praça tiveram repercussão internacional. Foto: Verónica Goyzueta
Milton Sanchez, do PIC, Plataforma Interinstitucional de Celendín. Na praça do centro de Celendín, palco de protestas contra Conga e Chadín. Os protestos nessa praça tiveram repercussão internacional. Foto: Verónica Goyzueta

Para as ONGs que trabalham na região, além de danificar o rio, o projeto não previu formas de minimizar os impactos sociais e ambientais. “Para a empresa, é um negócio. Eles constroem para ter rentabilidade”, diz o engenheiro José Serra Vega, autor do relatório “Custos e Benefícios do Projeto Hidrelétrico Chadín 2 no rio Marañón”, publicado ano passado pela ONG Forum Solidaridad Perú. O ambientalista Gamboa, da ONG DAR, concorda. “Há um fast-track para aprovar projetos na região, com uma redução de salvaguardas, que são consideradas como obstáculos ao investimento”, diz o pesquisador, que critica a falta de transparência e participação pública no desenvolvimento dos megaprojetos de infraestrutura. Segundo ele, uma hidrelétrica demora cerca de dez anos para começar a dar retorno, mas segue sendo a opção dos governos da América do Sul, que teriam alternativas como a energia solar e eólica, que não interessam aos investidores.

Gamboa aponta também o risco de supervalorização das obras, um risco real já que as relações do governo peruano com as construtoras brasileiras – que incluem megaprojetos como a estrada Interoceânica, outras hidrelétricas e obras de infraestrutura – estão sendo investigadas pela Justiça peruana. A Fiscalía Anticorrupción do Peru está investigando os contratos dos governos de Alejandro Toledo, Alan García e Ollanta Humala com as construtoras brasileiras Andrade Gutierrez, OAS, Queiroz Galvão, Galvão Engenharia e Engevix. Uma equipe da Fiscalía peruana esteve em Curitiba no final de julho para trocar informações com os investigadores da operação Lava-Jato, que está sendo divulgada diariamente pela imprensa peruana. O Cristo do Pacífico, um monumento de 37 metros que a Odebrecht deu de presente para a cidade de Lima, na gestão do presidente Alan García, em 2011, virou piada entre os peruanos. Acabou sendo apelidada de “Cristo do roubo”.

Deslocamentos forçados

O professor Einer Esteban Dávila, que cresceu em Huanabamba, vive perto de Nuevo Huabal, onde foram reassentados, em 2009, os moradores da comunidade de Huabal para o enchimento do reservatório da represa El Limón, no estado vizinho de Lambayeque, outra obra realizada pela Odebrecht. “Tiraram as pessoas [das suas casas] à base de enganos”, diz.

O assentamento de Nova Huabal foi construído em uma área desértica, onde as 70 famílias transferidas em 2009 não têm terras férteis nem água suficiente para cultivar. Esteban teme pelo futuro do rio Marañón. “Estão quebrando um ciclo. Este rio é um dos poucos pulmões que estão limpando a poluição de Yanacocha”, diz.

Para os moradores de Huanabamba, Huabal serve de exemplo da indiferença da Odebrecht. “A Odebrecht levou as pessoas para um local sem condições de vida decentes. Houve um grande deslizamento de terra [em 2012], e muitas pessoas perderam o pouco que tinham. Eles acabaram se sentindo enganados”, explica Milton Sánchez, do PIC.

O agricultor Vargas Machuca e a agricultora Gregoria Bazán, de Huanabamba, ameaçados agora de perder as terras, conhecem a história de Huabal. “Não estamos contra a energia, mas achamos que há outras formas, como a solar e a eólica. Não estamos preparados para viver em uma área urbana”, diz Gregoria.

Através da porta-voz em Celendín, Pierina Garateguy, a Odebrecht afirmou à reportagem que não tem problemas com as comunidades e camponeses peruanos: “Os programas de compensação são realizados de forma justa, dentro dos parâmetros legais e em estrita conformidade com as normas em vigor. A empresa assumiu o compromisso de melhorar as condições das pessoas afetadas, seja através de uma aquisição, reassentamento ou realocação das zonas afetadas, garantindo melhores condições de vida, com água, energia e outros serviços básicos, gerando valor agregado ao longo do tempo”.

Perseguição e ameaças

A líder comunitária Aurora Araujo. Foto: Verónica Goyzueta
A líder comunitária Aurora Araujo. Foto: Verónica Goyzueta

O reservatório que promete atingir a vida dos Vargas e seus vizinhos ainda não pode ser construído. A Odebrecht tem a concessão e obteve a aprovação da licença ambiental pelo Ministério de Energia e Minas, em outubro do ano passado, mas ainda não conseguiu a licença social. A consulta prévia às comunidades tradicionais no caso de obras com influência em suas terras é obrigatória e prevista na lei peruana. Os líderes entrevistados afirmaram que ainda não foram consultados e que a empresa está fazendo movimentos para tentar convencê-los a aceitar as hidrelétricas, dando presentes e infiltrando gente nas comunidades. 

Aurora Araujo, uma líder comunitária nos municípios de Huanabamba e Celendín, conta que as reuniões com engenheiros da Odebrecht têm sido tensas e complicadas. Muitas delas foram adiadas na última hora, prejudicando agricultores e povos indígenas, que frequentemente têm de viajar longas distâncias para chegar aos eventos. De acordo com Aurora, as reuniões têm sido manipuladas. “Eles [Odebrecht] trazem pessoas que não são da comunidade, às vezes para nos atacar”, disse ela, mostrando os documentos das seguidas reuniões desmarcadas.

“Eles nos dizem que vamos ser removidos pela força se não aceitarmos a sua proposta. Eles enganam as pessoas com presentes, como panetones e fornos, e têm conseguido as assinaturas de apoio de algumas das pessoas que já venderam suas casas e não têm mais terra na área”, explica a líder comunitária, que calcula em 5 mil as pessoas que serão impactadas pelas represas e reservatórios Rio Grande I e Rio Grande 2.

Em sua modesta e antiga casa no centro de Celendín, Aurora conta que funcionários da Odebrecht a acusaram de ganhar dinheiro de ONGs para desprestigiá-la perante a comunidade. E faz uma denúncia grave: diz ter recebido ameaças de morte desses mesmos homens, assim como teria acontecido com outras pessoas que se opõem aos projetos. “Quando temos uma reunião, há tiros. É Deus quem nos protege na luta pela água”, diz. “Eles querem nos levar pela força. Nós não queremos represas. Ninguém quer perder suas chácaras. Onde é que vamos viver? “, indigna-se Aurora.

A reportagem fez um segundo contato com o escritório da Odebrecht em Celendín para obter uma resposta detalhada a essas acusações, mas não obteve resposta. Contatados, os representantes da Odebrecht em Lima e São Paulo também não responderam à reportagem.

Esta reportagem foi feita com apoio da organização Mongabay. Leia aqui a versão original

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