Dos 24 secretários do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), ao menos cinco têm envolvimento com negócios imobiliários – três deles são sócios diretos de empresas da área. Especialistas apontam potenciais conflitos de interesse, uma vez que decisões públicas têm alto impacto neste mercado, como no caso do megaprojeto que prevê reformar parte do centro de São Paulo para abrigar a nova sede do governo estadual.
Entre os membros do primeiro escalão, três estão no quadro societário de empresas de construção e aluguel de imóveis, além de terem parentes próximos donos de outros negócios do ramo: Guilherme Afif Domingos (Projetos Estratégicos), Gilberto Kassab (Governo e Relações Institucionais) e Guilherme Piai Filizzola (Agricultura e Abastecimento). Jorge Lima (Desenvolvimento Econômico) e Caio Paes de Andrade (Gestão e Governo Digital) já atuaram em negócios no ramo antes de entrarem no governo.
Uma das principais promessas da gestão Tarcísio é transferir órgãos do governo estadual para a região central da capital. Desde o anúncio das obras, em 2024, os preços de imóveis no bairro Campos Elíseos dispararam. Em janeiro de 2025, um apartamento na região custava, em média, 30,9% a mais do que no mesmo mês do ano anterior. No mesmo período, o aumento médio na cidade foi bem menor: 6,56%, segundo o Índice FipeZAP.
O edital de licitação para as obras foi autorizado em 12 de junho. As empresas responsáveis pela construção dos 12 novos prédios que vão receber o gabinete do governador e as secretarias ainda não foram selecionadas. Ainda assim, o projeto já tem causado impactos ao entorno.
A favela do Moinho, vizinha do novo centro administrativo e palco de uma série de protestos de moradores nas últimas semanas, será removida para dar lugar a um parque. E a Cracolândia, também nas proximidades, apareceu esvaziada após operações policiais. Pessoas em situação de rua se dispersaram para outros pontos da cidade.
Por que isso importa?
- Transferência de órgãos do governo estadual para o centro de São Paulo fez o preço de imóveis disparar na região.
- Valorização imobiliária no centro da capital pode beneficiar empresas ligadas a secretários, avalia especialista.
“Como secretários, esses atores têm informações antes que todo mundo. Conseguem tomar decisões imobiliárias estratégicas com base em informações que ainda não se tornaram públicas e têm maior capacidade de precificação da informação”, afirma Bianca Tavolari, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
“Além disso, não só recebem informação, como tomam decisões que criam os fatos de mercado. Ocupam, portanto, posições privilegiadas que deveriam ser acompanhadas de alguns deveres”, ela continua. “Agora, o governo do Estado e a prefeitura estão atuando diretamente para retirar pessoas, instituições e atividades que podem comprometer a valorização [da região central]: pessoas em situação de rua, a favela do Moinho e, mais recentemente, o Teatro de Contêiner Mungunzá.”
Em nota, o governo estadual disse, respondendo pelos secretários citados, que “todos os agentes públicos do Estado exercem suas funções com base em critérios estritamente técnicos, sob permanente acompanhamento dos órgãos de controle e compliance”, e que “eventuais vínculos anteriores à nomeação não comprometem a legalidade nem a isenção das decisões governamentais.”
Responsável pelo projeto de nova sede do governo é sócio de empresa
O caso que mais chama a atenção é do secretário de Projetos Estratégicos, Guilherme Afif. Responsável direto pelo plano de transferência da sede do governo estadual para o centro de São Paulo, ele é sócio da Sundays Participações, empresa de incorporação de empreendimentos imobiliários sediada na capital paulista e com capital social de R$ 6,8 milhões.
Além disso, a família de Afif também controla outras quatro empresas do setor: Afiga Participações, Llubi Administração e Participações, Lad Gestão de Bens e JDN Participações. Juntas, elas têm capital de quase R$ 5 milhões e têm como principal atividade o aluguel de imóveis próprios.
O secretário já afirmou que um dos objetivos de levar o governo para o centro é aumentar a atratividade da região para o mercado imobiliário. Em entrevistas, já disse querer tornar a área mais “atrativa para moradia” e com “maior valorização imobiliária”.
Ele reconhece que o projeto estimula a especulação imobiliária, mas costuma minimizar o termo. “Vamos começar a mudar as expressões. Especulação imobiliária, substitua por valorização imobiliária. Você valoriza. Os que estão lá vão ter seus imóveis valorizados”, já disse.
Segundo Afif, o centro é uma das últimas regiões da capital que ainda tem terrenos disponíveis para novas construções. “O único lugar com infraestrutura completa há décadas e que está vazio é o centro. As imobiliárias começaram a perceber que o caminho é por aí”, afirmou.
Com mais de quatro décadas de vida pública, Afif transitou por governos da direita à esquerda, sempre ligado ao universo do empresariado. Foi ministro da Secretaria da Micro e Pequena Empresa do governo Dilma Rousseff (PT), vice-governador de São Paulo na gestão de Geraldo Alckmin (então PSDB) e assessor especial do ministro Paulo Guedes durante o governo Jair Bolsonaro. Também presidiu o Sebrae e a Associação Comercial de São Paulo.
Em 2015, a Sundays, empresa de Domingos, tentou construir um condomínio com 50 unidades habitacionais em uma área de proteção ambiental com animais e plantas ameaçadas de extinção em São Sebastião, litoral paulista. Por e-mail, o Ministério Público de São Paulo informou que o projeto acabou sendo suspenso e o caso foi arquivado.
Outros secretários do governo Tarcísio também têm ligação com o setor
Conhecido por sua habilidade como articulador político, Gilberto Kassab (PSD) construiu uma carreira que passa por praticamente todos os cargos de destaque na política nacional — foi vereador, deputado, prefeito de São Paulo, ministro de Estado e hoje é secretário de Governo e Relações Institucionais da gestão Tarcísio. Fora da vida pública, no entanto, Kassab mantém vínculos com o mercado imobiliário, onde iniciou a carreira como corretor de imóveis.
Atualmente, ele figura como sócio-administrador da Yapê Engenharia, empresa de sua família que atua nos ramos de compra, venda e aluguel de imóveis, além de oferecer serviços de engenharia. Com capital social de R$ 13,9 milhões, segundo dados da Receita Federal, a Yapê tem sede na capital paulista. Outros familiares do político também são donos de outras empresas do setor, com atuação semelhante — especialmente nos ramos de venda e locação de imóveis e engenharia.

O titular da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, Guilherme Piai Filizzola é sócio de quatro empresas do setor de incorporação imobiliária – GF3 Incorporações Imobiliárias, RKM Incorporadora, MEO Contemple Incorporadora e Tensiune Incorporações –, com atuação nas cidades de Presidente Prudente e Presidente Venceslau, no interior do estado. As empresas operam com loteamento, venda e construção de imóveis.
Caio Paes de Andrade, atual secretário de Gestão e Governo Digital, também já teve negócios no ramo imobiliário. Entre 2004 e 2010, ele foi dono da Maber Empreendimentos Imobiliários, que foi vendida por R$ 17 milhões para a Imobiliária Lopes, uma das maiores do ramo no país. Também foi fundador da 123i, plataforma de aluguel e venda de imóveis, e da Credihome, voltada para o crédito imobiliário.
Na gestão Bolsonaro, Andrade foi presidente da Petrobras e do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), além de Secretário Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital. Em seu currículo, ele destaca o mercado imobiliário como um dos focos de suas experiências.
Secretário de Desenvolvimento Econômico, Jorge Lima construiu sua carreira no setor privado. Parte de sua atuação englobou áreas de real estate (mercado imobiliário), construção civil e incorporação imobiliária.
Antes de assumir o cargo no governo paulista, Lima foi CEO e conselheiro da Semco Partners, holding com participações em empresas dos ramos de hotéis, construção, educação, real estate e incorporação. Ele também foi diretor-executivo da Semco Cushman & Wakefield, empresa de gestão imobiliária comercial.
Especialistas ouvidos pela Agência Pública dizem que a presença de agentes públicos com conexões com o setor imobiliário não é novidade.
Um exemplo é do ex-secretário de Habitação do governo estadual Flávio Amary, que ocupou a pasta entre 2019 e 2022, apesar de ser dono da Amary Negócios Imobiliários e ex-presidente do Sindicato das Empresas de Compra, Venda e Administração de Imóveis e Condomínios (Secovi) de São Paulo.
Para Valter Caldana, coordenador do Laboratório de Políticas Públicas e professor do curso de Arquitetura da Universidade Mackenzie, intervenções urbanas como a do centro de São Paulo têm, por natureza, efeitos gentrificadores.
Ou seja, provocam mudanças no ambiente urbano, atraem moradores com maior poder aquisitivo e acabam por expulsar antigos residentes e comerciantes, pressionados pelo aumento nos preços. Mas esse é justamente um fator que deve ser controlado para ser minimizado, com participação da sociedade civil e uso das técnicas urbanísticas eficientes. “Em projetos de intervenção urbana, a presença da gentrificação é inexorável, mas não incontornável”, afirma.