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De todos os balanços possíveis de se fazer sobre a COP30, realizada em novembro, em Belém, talvez o mais certeiro, ou o que menos gerou dúvidas, é sobre o impacto poderoso da mobilização da sociedade civil. Do peso que foi ouvirmos, depois de muito tempo de COPs sem manifestações, a voz da vida real, de milhares de pessoas que estão na linha de frente da crise climática. Que mostraram como a luta pelo território também é um elemento de justiça climática.
Daí porque talvez tenha sido ainda maior o choque diante da rapidez com que o Congresso brasileiro – mal tinha acabado a COP e em um acesso de birra contra o governo e o STF – jogou no colo da sociedade brasileira dois retrocessos que ferem esses direitos. E aumentam as incertezas sobre nossa capacidade de combater o principal problema que temos a enfrentar como humanidade.
Refiro-me, claro, à derrubada de 56 dos 63 vetos do presidente Lula ao projeto de lei que criou a lei geral do licenciamento ambiental – que, de tão danoso, foi apelidado como PL da devastação –, à aprovação de uma versão piorada da MP que cria a Licença Ambiental Especial (LAE) e à aprovação no Senado de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para instituir um marco temporal à demarcação de terras indígenas.
Teve muito colega na imprensa que descreveu o movimento em torno do licenciamento como uma derrota do governo Lula e a PEC como uma afronta ao STF, que, no dia seguinte à aprovação no Senado, começaria a julgar, mais uma vez, o tema do marco temporal. O Supremo já havia decidido, em 2023, que o marco temporal é inconstitucional. Ainda assim, o Congresso aprovou na sequência um projeto de lei instituindo o prazo. O STF ia iniciar a análise do PL, quando o Senado achou por bem acelerar a PEC – “se é inconstitucional, a gente muda a Constituição, né? Simples!”, arquitetam os senadores.
O leitor não se engane. A derrota é de todos nós.
Fragilizar a proteção ambiental e os instrumentos que buscam evitar danos é algo que vai se voltar contra a gente. Impedir que terras indígenas que não estivessem devidamente ocupadas em 5 de outubro de 1988 sejam demarcadas é ceifar um dos principais instrumentos de proteção das florestas. Terras indígenas são as áreas mais preservadas do país. E evitar o desmatamento é a principal contribuição que o Brasil tem a fazer hoje para conter a crise do clima.
Em outras colunas já falei bastante dos impactos negativos do PL e convido o leitor a revisitá-las, aqui e aqui, para dar uma refrescada na memória. Mas a cada capítulo dessa novela, o quadro foi ficando ainda pior.
Tinha ocorrido um esforço considerável do governo, ao fazer os vetos, em tirar os itens mais danosos do PL, como a LAC (Licença por Adesão e Compromisso, que é uma espécie de autolicenciamento) para empreendimentos de médio porte e médio potencial poluidor, deixando apenas para os pequenos.
Lula também tinha vetado um dispositivo que isentava de licenciamento alguns tipos de obras de pavimentação, o que facilitava, por exemplo, o asfaltamento da BR-319, na Amazônia. Isso tudo voltou, com enorme potencial para aumentar o desmatamento – logo depois de, na COP, o país ficar defendendo que o mundo colocasse dinheiro no TFFF, o Fundo Florestas Tropicais para Sempre, que visa remunerar quem preserva florestas.
Só que Lula também tinha feito um afago ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre, ao transformar uma proposta do senador, a figura da LAE, em medida provisória. A ideia do senador era aplicar um licenciamento monofásico e expresso para obras consideradas estratégicas. O governo deu uma lustrada mais ambiental nos termos da LAE, falando que ela, apesar de tramitar em prazo mais rápido, contaria com todas as fases do licenciamento tradicional.
Até a área ambiental do governo, como a ministra Marina Silva, e o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, se esforçaram para dizer que era possível fazer a LAE com rigor, sem prejuízo ao meio ambiente.
Só que medida provisória precisa também passar pela aprovação de deputados e senadores e, nesse processo, outras coisas foram inseridas e o texto ficou mais permissivo. O Observatório do Clima publicou nesta terça-feira (9 de dezembro) uma nota técnica revelando quais são os novos riscos. De acordo com a análise, as mudanças introduziram novas dispensas de licenciamento para algumas atividades e reforçou a redução de salvaguardas.
“Entre os efeitos observados estão a expansão da LAC para atividades de risco e a consolidação do licenciamento por decisão política, inerente à LAE, inclusive no caso do [asfaltamento da] BR-319 e de outras rodovias, e a redução dos instrumentos de análise técnica e de controle, o que tende a ampliar incertezas e a deslocar para a via judicial questões que deveriam ser resolvidas no próprio processo de licenciamento”, diz a nota.
A BR-319 citada pelo Observatório do Clima é a rodovia que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO) e que tem um longo trecho onde, há muito tempo, o asfalto sucumbiu e o deslocamento é bastante difícil.
Ocorre, porém, que esse trecho corta uma das áreas ainda mais bem preservadas da Amazônia, e diversos cientistas já alertaram para o risco de a obra acabar levando a um grande desmatamento na região. Só de a pavimentação ter sido anunciada, durante o governo Bolsonaro, fez com que a derrubada da floresta dobrasse no entorno.
A MP alterada não cita especificamente a rodovia, mas fala que “são consideradas estratégicas as obras de reconstrução e repavimentação de rodovias preexistentes cujos trechos representem conexões estratégicas, relevantes na perspectiva da segurança nacional, do acesso a direitos sociais fundamentais e da integração entre unidades federativas”. É sob medida para o caso da 319.
O leitor não se engane. O que o Congresso entregou depois da COP coloca mais lenha na fogueira da crise climática e nos deixa mais próximos do abismo.
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