Em dezembro de 2011, Maria Regina Gonçalves percebeu que a paz não fazia mais parte do seu cotidiano. Em um show dos ídolos Zezé di Camargo e Luciano no município de Eldorado dos Carajás, no Pará, Regina se viu mais atenta à plateia do que ao espetáculo, procurando em olhares e gestos uma atitude suspeita. “Se alguém chegava perto ou me olhava um pouco mais eu ficava nervosa. Praticamente não me diverti naquela noite”, diz ela.
Maria Regina preside o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Eldorado dos Carajás, a 770 km de Belém. Vive sob ameaças constantes e atualmente não anda sem a proteção de pelo menos dois outros dirigentes sindicais, que se dispuseram a atuar como seguranças informais de Regina.
As ameaças vieram depois que o sindicato passou a organizar as 4 mil famílias espalhadas por 22 projetos de assentamento no município, localizado em uma região rica em minérios e com grandes fazendas de pecuária. Como os projetos ainda não foram titulados, embora tenham sido regularizados no Incra, as famílias receberam um contrato de concessão de uso – título provisório, mas que permite a obtenção de financiamento para a produção.
Enquanto os títulos definitivos não saem, porém, há fazendeiros se apropriando das terras, cercando os assentamentos, comprando lotes de posseiros e fazendo pressão para que os agricultores abandonem os terrenos.
“Virou concentração de terras de fazendeiros, eu mesma estou cercada por três lotes que estão nas mãos deles. O recado que os agricultores ouvem é que se os fazendeiros não comprarem a terra dos trabalhadores, compram das viúvas”, diz Maria Regina, no quintal da sede sindical, sob o olhar atento dos dois seguranças.
Não é uma compra legal, já que não se pode adquirir lotes de assentamentos destinados à reforma agrária. Mas a lei não é seguida à risca em um município conhecido mundialmente pela matança de 19 trabalhadores sem terra pelas polícias militares de Marabá e Parauapebas em 1996, em um local conhecido como Curva do S.
Com pouco mais de 2.900 quilômetros quadrados – 70% em área rural – o município de Eldorado de Carajás se desenvolveu a partir do garimpo e da pecuária, sempre com conflitos pela posse da terra. Entre 1982 e 1996 mais de 50 trabalhadores rurais foram assassinados, contabiliza Regina. “Sempre foi um ‘deus nos acuda’ que culminou com a chacina da Curva do S”, diz.
A trajetória de Maria Regina é uma história de migração como a de muitos que ali vivem. Nasceu no Ceará em um lugar árido e sem perspectivas conhecido como ‘Cabeça de Onça’. Quando a fome roncou mais alto, a família dela se mudou para um lugarejo chamado Barra do Corda, no Maranhão, em março de 1973. Mas o destino pouco mudou: “Eu tinha dez anos e ajudava meu pai na roça. Era um sofrimento, não tinha água, minha mãe chorava quando eu pedia comida e não tinha. Eu não tinha o sentimento de entender”. Regina era a mais velha de oito irmãos na época. Depois chegariam mais quatro. “A gente vivia na miséria nesse lugar. Meu pai queria se libertar disso”.
A libertação da pobreza viria da Amazônia, pelo menos foi isso que um tio anunciou em tom de novidade. “Esse tio tinha um rádio de pilha. Nós, só a vida mesmo. E ele trouxe o rádio pra gente ouvir a Voz do Brasil. A gente reunia ao redor do rádio e ouvia a propaganda sobre a Amazônia. Meu pai decidiu vir atrás de terra”.
A primeira parada foi no garimpo. O pai de Regina foi sozinho ao Pará e nos dois primeiros anos da década de 80 chafurdou na lama de Serra Pelada em busca de ouro. Não teve sorte. O pouco que conseguiu foi roubado. Ouviu falar de um projeto de assentamento em Pedra Furada, a 22 km da sede do município, em uma aréa que fazia parte de Curionópolis, depois incorporada pelo município de Eldorado dos Carajás, emancipado em 1987.
O pai conseguiu um lote por desistência de um posseiro, mas acabou expulso primeiro pela polícia, depois pelos pistoleiros. “Meu pai dizia que saiu sentindo a bala nas costas, porque as armas estavam engatilhadas. Ele andou escondido da polícia por cinco anos, porque desde o início ele se colocava na frente, brigava mesmo”, conta Regina.
Enquanto o pai lutava para conseguir um pedaço de chão, Regina continuava no Maranhão. Logo no primeiro ano, em 1982, casou, e numa terra arrendada, plantou sozinha um alqueire de arroz e milho. Naquele ano a água não veio e toda a produção foi perdida. Batia o desespero.
Em 1986 Regina visitou o pai. Ele havia sofrido mais um despejo, com pistoleiros queimando tudo, matando animais. “Quando cheguei vi minha família, meu pai, minha mãe, toda judiada, torturada, me assustei e voltei pro Maranhão”.
Por pouco tempo. Os agricultores despejados ocuparam o Incra em Marabá e conseguiram voltar para as terras em novembro de 1986. Em fevereiro de 1987, os fazendeiros passaram a ocupar mais lotes e a guerra entre pistoleiros e posseiros tornou-se aberta.
A essa altura, Regina já estava de mudança para o Pará, acompanhando de perto a luta do pai e de outros companheiros pela posse e regularização dos lotes de terra, ainda hoje nas mãos da família. Em 1992, Arnaldo Delcídio Ferreira, respeitada liderança do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Eldorado, foi executado por pistoleiros. Sete anos antes, em abril de 1985, ele havia se ferido e sobrevivido a um ataque de pistoleiros no Terminal Rodoviário de Eldorado, que acabou atingindo mortalmente a freira Adelaide Molinari.
A morte de Arnaldo marcou profundamente Regina, que entrou de cabeça na luta pela terra. “Eu me descobri no coletivo quando conheci o trabalho do Arnaldo, sempre se solidarizando com as pessoas pobres. Comecei a ter uma revolta contra quem manda matar. Só que a vida não para na morte dos que foram assassinados. A gente continua”, diz.
Em 1996 ela assumiu a presidência do Sindicato, depois de ter sido tesoureira e secretária de políticas sociais da organização. “A primeira ocupação, como presidente, foi da fazenda de um homem chamado Geraldo Mendonça”, lembra. Sem abandonar o próprio lote, Regina passou a receber ameaças recorrentes. “Minha filha recebeu uma ligação dizendo que iam matar toda a família. Passei a viver o tempo todo assombrada”.
Ligações desconhecidas se tornaram comuns a partir daí, e as ameaças – veladas ou explícitas – recorrentes. Não a deixaram mais em paz. “Todo mundo que entra no sindicato é suspeito”, diz.
No dia 27 de junho de 2012, nove fazendeiros entraram na sede do sindicato para pressionar Regina. O diálogo mostra o nível de tensão:
“Só viemos falar com ela do risco que ela tá correndo”, disse um fazendeiro.
“ Isso já é uma ameaça”, respondeu Regina.
“A senhora está mobilizando esses sem terra pra invadir as terras”.
“Eu não estou mobilizando ninguém e já disse para o senhor não apontar o dedo para mim”.
Depois desse diálogo ríspido, Maria Regina ouviu rumores sobre a contratação de 60 pistoleiros para fazer a segurança nas fazendas que ficam na estrada em que passa diariamente de moto.“Eu tenho de passar pelo vão de duas dessas fazendas. E nas duas já teve assassinatos. Num, sumiram com o corpo, e no outro o corpo foi encontrado dentro de um poço”.
“Não tem como eu andar nessas condições. Eu não durmo tranquila, passei a ter sempre dois companheiros me protegendo”, conta, confessando o cansaço. Não quer ouvir falar em ocupações de terra. Sente medo. O Sindicato deixou de incentivar maiores mobilizações. “Eu represento um perigo para eles. Os fazendeiros acham que eu sou capaz de mobilizar esse mundaréu de gente e não é bem assim”.
Com cinco filhos e quatro netos, a dirigente sindical quer viver em paz. Os filhos não deixam os netos andarem com ela por conta dos riscos. A mãe, sempre que precisa estar com a filha, fica quase o tempo todo rezando. “Quero paz, para mim e para quem tá comigo. Não é fácil andar apenas com a fé. A gente sabe o poder de uma bala. Por que tem de morrer? Eu não quero morrer, só quero ficar à vontade, tranquila”.