Dona Raimunda Cláudia ouviu a barulheira e correu para a janela da sua casa. Teve tempo de chamar a Camila, que deveria estar atendendo na loja de roupas, do outro lado da rua.
– Camila, você está onde?
– Sai daí!
Só deu tempo disso. Camila, ao escutar o tiroteio, já estava agachada dentro do banheiro da loja Cláudia Modas, mas pela porta entreaberta viu o rosto da patroa que a chamava, no segundo andar da casa em frente. Viu quando ela caiu com o tiro. Acertou do lado direito, na têmpora. Eram cerca de 17 horas do dia 14 de abril de 2015. Ocorreu no número 147 da rua 2, Vila do João. Raimunda Cláudia morreu dentro de casa.
A notícia saiu em todos os jornais: moradora do Complexo da Maré morre em tiroteio em local onde tropas do Exército faziam patrulha.
Entre abril de 2014 e junho de 2015, as Forças Armadas ocuparam o Complexo da Maré, um conjunto de favelas onde moram cerca de 150 mil pessoas, em ação da política de “pacificação” do governo do Rio de Janeiro. A ideia era instalar uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Maré – o que não se concretizou.
Testemunhas
No depoimento que prestou à Polícia Civil, a vendedora Camila Santos Sales relata que, após dona Raimunda Cláudia ter sido atingida, o tiroteio cessou. Tanto o Exército quando os traficantes foram embora. E declara que, pelo posicionamento entre os soldados do Exército e os traficantes, “o disparo partiu da direção do Exército”. “A declarante acredita nisso porque o Exército se encontrava passando pela rua principal da Vila do João, chamada de Rua 14, quando se depararam com traficantes de drogas na esquina da Rua 2, paralela com a rua principal”, registra o documento da Polícia Civil ao qual a Pública teve acesso.
“O tiro veio e matou minha mãe de imediato, que foi na têmpora que acertou”, lembra Fabíola Rocha Reis, de 27 anos, filha da Raimunda. Ela estava no trabalho quando recebeu uma ligação: sua mãe sofrera um acidente. “Não quiseram me dar a notícia de primeira, e quem estava em casa era minha irmã, que na época tinha 11 anos. Minha irmã viu minha mãe caída, com aquele sangue todo, e pediu socorro. Aí subiram e viram que a minha mãe já estava morta. Não teve nem como ter um primeiro socorro.”
Fabíola chegou na casa, lotada de vizinhos, para tomar as providências. Ouviu de todos a mesma coisa: o tiro deve ter vindo do Exército. Chamou a Polícia Civil, entregou a irmã menor ao pai, acompanhou a perícia no local, que só foi feita às dez da noite. Demorou a desabar. Jamais foi procurada pelo Exército. “Ninguém me procurou. E na época eu tinha 25 anos. Ninguém sabe se a gente tinha renda, se a gente tinha casa, se quem sustentava a casa era minha mãe. Ninguém procurou a gente pra saber de nada. Se a minha irmã precisava de um psicólogo. Se a minha irmã precisava de alguma ajuda, de comida, de casa.”
Segundo notícias da época, a Polícia Civil estava investigando o caso e iria ouvir os militares. No mesmo dia, o comando da ocupação emitiu uma nota em que admitia que houve confronto nessa data, mas negava envolvimento na morte. O texto da assessoria da Força de Pacificação citado por diversos jornais afirmava que os militares estavam em patrulhamento, próximo à travessa 13, quando foram atacados por suspeitos com disparos de fuzil e pistola e revidaram. Depois do confronto, os soldados foram alertados por moradores de que Cláudia teria sido baleada. A vítima estaria “numa posição afastada e à retaguarda da tropa, quando foi atingida”. “A Força de Pacificação tem priorizado, em todas as situações, a segurança da população”, dizia a nota.
Acontece que, segundo a perícia da Polícia Civil, o tiro partiu justamente da rua 14, próximo à esquina com a rua 2 e paralela à travessa 13. A bala percorreu 96 metros e subiu mais de 7 até chegar à janela da dona Raimunda. O que a atingiu era já um estilhaço.
“A bala não pegou no vidro, ela pegou numa haste de alumínio e ficou a marca da entrada da bala, então você vê nitidamente que foi do lado em que estava o Exército. Porque o Exército estava dum lado da rua e o bandido estava na outra ponta”, lembra Fabíola.
O laudo foi concluído apenas em 10 de outubro de 2016, quase um ano e meio depois do fato. Quanto ao Exército, não registrou sequer o ocorrido. Procurado pela reportagem, o Comando Militar do Leste, responsável pelas operações de Garantia da Lei e da Ordem no Rio de Janeiro, afirmou: “Não consta registro do envolvimento de tropas federais no caso em tela. Este Comando somente teve conhecimento do suposto fato, por intermédio de uma ação cível proposta pelas filhas da Sra. Raimunda, quase 03 (três) anos após o óbito, objetivando indenização da União”.
Nesse meio-tempo, Fabíola teve que assumir a guarda da irmã e largar o trabalho para cuidar dela. “É como se eu tivesse ganhado um filho da noite pro dia. Eu assumi a responsabilidade. Crio minha irmã desde o ocorrido, pago casa, colégio. Eu que trabalho.” Não teve nenhum apoio do Estado. E continua sem ter informações sobre a investigação, que corre na Delegacia de Homicídios da capital fluminense. “Eu já fui atrás, já liguei, só que eles falam que não tem resposta, que ainda está na investigação. Já tem três anos e meio que minha mãe faleceu”, diz.
Como em outros casos envolvendo homicídios praticados por militares apurados pela Pública, o inquérito estancou. Procurada pela reportagem, a Delegacia de Homicídios da Polícia Civil informou apenas que “as investigações estão em andamento”.
“Você fica meio desacreditada”, diz Fabíola.
Descrente do processo penal, ela recebeu a indicação de um conhecido advogado da área cível, João Tancredo, que atua em casos de flagrantes violações de direitos humanos no Rio de Janeiro, incluindo os casos de Amarildo e Marielle Franco. E apenas no começo deste ano a família viu alguns avanços em busca de esclarecer o caso – e buscar reparação.
Nem João Tancredo nem Camila buscam a punição do soldado que atirou em Raimunda Cláudia. “O que nos interessa na justiça criminal é a documentação que gerou o caso: o que aconteceu”, diz João Tancredo, que representa as filhas de dona Raimunda num processo cível contra a União.
Ele explica que, quando a justiça criminal não anda, um processo na Justiça civil funciona até mesmo para trazer à tona mais detalhes do ocorrido, já que se podem arrolar testemunhas e pedir a produção de outras provas. “De porte da documentação mostrando o que aparentemente aconteceu, a gente faz a ação indenizatória.”
Além da reparação por dano moral e material, o advogado defende que a punição cível deve ser “exemplar” para desencorajar novas mortes como essa, cometidas por agentes do Estado. No caso de dona Raimunda, o escritório pede uma indenização de mais de R$ 900 mil para as filhas.
De sua parte, a União é defendida pela Advocacia-Geral da União (AGU), cuja principal tese é que o tiroteio que vitimou dona Raimunda não teve participação dos militares. “Restou constatado que naquele dia ocorreram vários confrontos contra integrantes das facções criminosas em vários pontos do Complexo da Maré, sendo impossível afirmar que o disparo que atingiu o autor se deu no suposto confronto relatado pelo Requerente, ou de um caso isolado, sem a atuação da Força de Pacificação”, diz a AGU na contestação da ação.
Em resposta, o advogado cível defende a tese de que, mesmo que não se comprove que o tiro saiu da arma do Exército, o tiroteio com a participação das Forças Armadas no local colocou em risco a vida da população. A AGU contesta. Uma primeira audiência foi marcada para 22 de novembro. Será a primeira vez que três testemunhas, além das filhas, serão ouvidas pela Justiça brasileira.
Fabíola tem o que dizer. Antes da ocupação da Maré, ela, que se tornou chefe de família por conta de uma ação do Exército, tinha respeito pelas Forças Armadas. Agora, considera-as “despreparadas”. “São garotos de 18 a 24 anos, então são pessoas que se alistaram agora, que não tiveram um curso de tiro. São pessoas que não tiveram um preparo, não tiveram um conhecimento.”, diz. “Se você pegar o nosso Exército aqui e mandar lá para uma guerra da Síria, do Afeganistão, morre todo mundo. Acho que no primeiro dia.”
No começo do ano, quando veio o Decreto da Intervenção Federal, sua primeira reação foi mudar-se da Maré. Desde pequena, e até hoje, ela tem muito medo de levar um tiro. “Deve doer muito”, diz.
Longe da Maré, ela diz que quer evitar que morram outras Raimundas Cláudias.
“A desfeita foi enorme contra a gente. Foi como se fosse um ratinho de laboratório que morreu. ‘Ah, morreu um rato, vamos pegar outro rato ali e vamos ver o que acontece…’ Eles não viram que foi um erro, no que poderia ter sido feito pra mudar, quais as melhorias, nada. Simplesmente foi só mais um”, diz.
A história de Raimunda Cláudia faz parte de 32 mortes causadas por militares em operações de segurança púbica desde 2010. Saiba mais aqui.
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