Nesta terça-feira, o balanço oficial do governo contabilizava 15 mortos durante os protestos dos últimos dias no Chile. Um militar foi preso pela morte de um jovem de 25 anos. Outro manifestante foi atropelado por um caminhão da marinha. Segundo o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 1.420 pessoas foram detidas.
Os protestos começaram na última sexta-feira depois de um aumento de 30 pesos (equivalente a R$ 0,17) e se agravaram no sábado, com conflito entre manifestantes e a polícia e diversos focos de incêndio em Santiago, a capital chilena. O governo de Sebastián Piñera decretou Estado de Emergência, com toque de recolher e, pela primeira vez desde o fim da ditadura do general Augusto Pinochet, o Exército foi chamado a patrulhar as ruas para garantir a ordem pública.
Guatemalteca, a advogada Renata Ávila é uma conhecida ativista por direitos humanos e digitais na América Latina e no mundo. Hoje, vive em Santiago e dirige a Fundación Ciudadanía Inteligente Latinoamérica, uma organização que trabalha com ativismo digital e democracia que se prepara agora para lançar uma campanha de alerta à população chilena sobre os graves riscos, no longo prazo, de entregar o controle das manifestações aos militares.
“Não podemos chamar a situação vivida nos últimos quatro dias de democracia. Muito mais que um risco, houve uma ferida profunda, perpetrada pelo presidente e o seu gabinete, mas também pelas elites do país”, diz. “Isso reabre feridas nos sobreviventes do regime de Augusto Pinochet – aliás o Exército está operando com uma lei assinada por ele”. Leia a entrevista:
Qual é o papel das redes sociais na coordenação dos protestos que estão ocorrendo no Chile?
O papel das redes foi chave para quebrar o cerco midiático, documentar o abuso dos militares e da polícia e também para mostrar a solidariedade entre os bairros – e agora as regiões – submetidas ao controle militar.
Como você vê a reação do governo, declarando toque de recolher e colocando o Exército nas ruas?
É uma irresponsabilidade total e uma afronta à memória deste país, que faz não muito tempo, saiu de uma ditadura. É [uma reação] desproporcional e perigosa. Além disso, existe um consenso na jurisprudência internacional de Direitos Humanos que as Forças Armadas não estão legitimadas para garantir segurança cidadã, trabalho esse que deve ser delegado a órgãos da polícia civil.
Aqui na Fundação estamos fazendo soar todos os alarmes e criando uma campanha de comunicação para alertar a população chilena sobre os graves riscos, no longo prazo, de entregar o poder civil aos militares. Me preocupa especialmente que haja uma mudança que vá mais para a linha seguida pelo México ou pelo Brasil, de normalizar a incorporação dos militares em tarefas que correspondem à polícia civil. O Exército do Chile não só é corrupto, mas também está pouco preparado para o trabalho. Não sabe controlar a população civil com o uso mínimo da força, carrega armas letais de terreno de guerra para áreas urbanas e densamente povoadas e suas normas limitam a fiscalização dos cidadãos sobre suas ações. E isso reabre feridas nos sobreviventes do regime de Augusto Pinochet – aliás o Exército está operando com uma lei assinada por ele.
Há riscos para a democracia?
Não podemos chamar a situação vivida nos últimos quatro dias de democracia. Muito mais que um risco, houve uma ferida profunda, perpetrada pelo presidente e o seu gabinete, mas também pelas elites do país.
Que se tenha mantido um toque de recolher por quatro dias, em um dos países mais pacíficos da região, é uma implementação de técnicas de medo e controle. Não reflete valores democráticos. Se a tranquilidade em um país deve ser imposta pela força, se os protestos não podem ser calados a não ser com um toque de recolher, a democracia está mais em risco que nunca. Até o momento, não sabemos as cifras exatas, mas já se contam pelo menos 15 mortes e centenas de detidos nas manifestações. É demasiado grave, violações ao direito à vida, à integridade física, à liberdade de expressão e de manifestação. São violações inadmissíveis em um regime que se supõe democrático.
Como se poderia conter as manifestações sem usar o Exército?
Dando uma resposta satisfatória, respeitosa à dignidade humana, e concreta à população. Não houve resposta, apenas promessas dispersas de pequenas mudanças que não têm sido bem recebidas. Apenas nesta noite, o próprio governo relata que há quase mil detidos. Uma dezena de famílias chilenas estão de luto hoje pela negligência governamental.
Como você compara as reações do governo chileno com o do Equador, neste mesmo mês, e os do Brasil em 2013?
Há uma diferença fundamental. Nos protestos do Brasil e do Equador havia um contrapeso, uma oposição identificável, com uma agenda que pretendia elevar usando o descontentamento das pessoas e o rechaço às medidas do governo. No Chile é mais uma situação dos de cima contra os de baixo na escala social. Na qual as pessoas, frustradas porque as elites políticas e econômicas não ouviram suas demandas, sobretudo seus direitos econômicos e sociais. Ou seja, um basta a essa austeridade que castiga os mais pobres e o rechaço à impunidade que sempre beneficia aos ricos.
Como os jovens manifestantes estão se protegendo de ataques virtuais?
Hoje os jovens estão mais preocupados em se proteger do gás lacrimogêneo, mas há organizações proporcionando apoio para garantir segurança aos celulares de quem sai para protestar. Ainda há uma intensa campanha de panelaços. Creio que, de alguma forma, isso tem ajudado os jovens a se reconectarem com o real, se encontrarem na praça, se juntarem em solidariedade.
Como aquilo que Piñera chamou de “guerra” está ocorrendo no ambiente digital?
O que está acontecendo no ambiente digital é que, uma vez que se impõe um toque de recolher, que nos faz ficar trancados e com medo em nossas casas, ele é a janela de análise coletiva, de denúncia internacional e também onde se compartilha informações. Ainda não analisamos o fluxo de informação, se há centros digitais dedicados defender o governo ou semear o caos, se há automatização ou denúncias maliciosas para derrubar as informações válidas. Vamos analisar isso em breve.
Como estão se organizando os grupos da sociedade civil no meio do Estado de Emergência?
Pela internet. Estamos evitando em todo o possível muitas assembleias, porque Santiago é grande e a mobilidade está interrompida. Estamos à mercê de um militar que pode ditar toque de recolher quando quiser.
A opinião pública e a classe política estão apoiando os manifestantes?
Existe um consenso de que isso foi longe demais e obrigará toda a sociedade a se repensar. Entre as pessoas prevalece a raiva, a incerteza e o desânimo. Não houve uma resposta clara do governo. Todos os cidadãos estão se questionando o que é a democracia, já que essa contrasta com as medidas às quais esse governo os sujeita. Um sistema que exclui e limita as oportunidades da maioria não é um sistema democrático. A relação de grandes setores da sociedade com o governo, como uma presença ou como força repressora, é criminalizante, intimidatória contra certos grupos, ou de uma ausência total. E não se pode separar essa relação de fatores como a crescente austeridade, o racismo aberto e sem desculpas, e a impunidade. Essa pergunta nós temos que responder entre nós todos, como ponto de partida. Definir qual é a democracia que queremos, para construí-la.
Conte um pouco sobre o trabalho da Fundación Ciudadanía Inteligente.
Trabalhamos em dois níveis. Estabelecemos alianças com as organizações da sociedade civil que defendem uma agenda de direitos para aproximá-las e para divulgar suas pautas em todo o continente. É isso que estamos tratando de fazer nesta crise: catalisar esforços e ativá-los usando as técnicas de hoje. O coração do nosso esforço é aproximar os cidadãos da política, convidá-los para participar de processos como observatórios permanentes, ou monitoramento durante eleições.
O problema é que hoje setores conservadores, que estão promovendo uma agenda de erosão de direitos fundamentais, também encontraram formas de comunicação inovadoras, linguagens e dinâmicas que convidam grandes setores da população a se unirem. E a batalha está cada vez mais complexa porque, diferentemente da agenda de ódio e medo que esses grupos promovem, uma agenda progressista implica esforços, trabalho a médio prazo e compromisso.
Ainda temos muito o que inovar e muita gente para somar para ganhar essa batalha. Queremos tomar a frente, nos antecipar aos novos desafios, trazer soluções que nos tirem dessa inércia, que nos coloquem em movimento, nos unam. Para não repetir o passado e, sim, superá-lo. Por exemplo, hoje lançamos uma ferramenta para alertar, a partir da comparação de experiências, dos riscos da militarização da segurança pública. Oxalá com informação e criatividade sejamos capazes de interromper essa deterioração da democracia.