A chegada apoteótica da CNN ao Brasil ainda é cercada de um certo mistério. O vice-presidente do grupo Bandeirantes Paulo Saad, em entrevista ao UOL, identificou “um projeto político” por trás do novo canal de notícias 24 horas no país, avalizado por uma rede de credibilidade internacional. A entrada no ar da emissora está programada para o dia 15 de março. A CNN estará disponível para assinantes de TV paga e poderá ser acessada por meio de plataformas digitais. A marca foi licenciada pela americana Turner para uma nova empresa comandada pelo jornalista Douglas Tavolaro, ex-vice-presidente de jornalismo da TV Record, e pelo empresário Rubens Menin, dono da construtora MRV e fundador do banco Inter. Tavolaro terá cerca de 35% das ações* e Menin, o restante.
Baseando-se em sua experiência no mercado e nos investimentos feitos pela CNN Brasil até agora, Paulo Saad, responsável pelos canais por assinatura e novos negócios no grupo Bandeirantes, disse não ver nessa iniciativa um projeto empresarial, pois a conta não fecha: “É estranho uma emissora que não fecha suas contas. Ela está investindo um dinheiro que o mercado não suporta. Eu sei quais são as rendas deles, e realmente não paga o salário de nenhum dos grandes nomes que contrataram”, afirmou. Nos cálculos do empresário, a emissora perderá mais de R$ 300 milhões em dois anos.
Jair Bolsonaro, por sua vez, comemora a chegada da CNN. Um humorista que o presidente levou para um espetáculo sem graça em frente ao Palácio do Planalto, na quarta-feira dia 4 de março, deu boas-vindas à emissora, ao ver o microfone da CNN instalado no cercadinho dos jornalistas. Bolsonaro elogiou a nova emissora e sugeriu um boicote à “mídia que mente”, segundo ele, citando, entre outros veículos, a Folha de S.Paulo e a revista Época. “Pelo que estou sabendo, vai ser uma rede de televisão diferente aí da Globo”, festejou. Defendeu, em seguida, que seus ministros passem a dar entrevistas à nova emissora e rejeitem a TV da família Marinho. Coincidentemente, a CNN Brasil, cuja sede fica na avenida Paulista, estreará no dia das manifestações convocadas, para a mesma via, em apoio ao governo Bolsonaro e contra o STF e o Congresso. O presidente deu apoio a esse protesto por meio de mensagens enviadas em seus grupos de WhatsApp.
Se a CNN veio de fato para dar suporte a Bolsonaro, ainda é cedo para avaliar. Mas a revelação do nome de Douglas Tavolaro como um dos sócios da CNN – até então o jornalista era um fiel subordinado do bispo Edir Macedo – levantou a suspeita, já no ano passado, de que o líder da Igreja Universal do Reino de Deus poderia ser um dos sócios ocultos do novo canal.
A desconfiança tinha motivos. Ninguém havia ouvido falar sobre divergências ou rompimento de Tavolaro com o seu chefe e líder Edir Macedo. Tavolaro passara a frequentar os cultos da Universal nos tempos de estudante do curso de jornalismo. Causara surpresa, ainda, o fato de ele ter indicado o sucessor na Record: Antonio Guerreiro, seu ex-professor na Faculdade Cásper Líbero, levado por ele à emissora. Além disso, o principal acionista da CNN Brasil, Rubens Menin, dono da MRV e um dos fundadores do banco Inter, era anunciante do portal R7 e da Folha Universal, veículos de comunicação ligados ao conglomerado Universal, e foi um dos patrocinadores do filme Nada a perder, a cinebiografia de Edir Macedo. Tavolaro e Menin se conheceram na época da produção do filme. Outra informação importante: em 2016, a Record havia tentado, sem sucesso, obter o licenciamento da marca CNN. Macedo, no mesmo período, vinha mantendo contatos e buscando informações com outras redes internacionais de notícias.
A versão para a saída de Tavolaro – comentada nos bastidores da Record – é que ele pediu e conseguiu autorização de seu antigo guru para se afastar e assumir o novo posto na CNN, por enxergar nessa oportunidade um “desafio de empreender”. Aos 43 anos e há 17 na Record, Tavolaro – coautor das biografias de Edir Macedo O bispo (editora Larousse) e Nada a perder (três volumes, editora Planeta) – desejava ascender ainda mais profissionalmente. Assim, a saída seria pacífica. Macedo não criara obstáculos.
Em sua gestão na Record, no entanto, nem tudo corria às mil maravilhas. O executivo era um homem de confiança, muito bem avaliado por Macedo. Mas disputava espaços com dois outros bispos na cúpula da emissora: Marcus Vinicius Vieira, o CEO da Record, e Marcelo Cardoso, o vice-presidente administrativo. Vinicius e Cardoso queriam ter ingerência no jornalismo, e Tavolaro resistia. Os dois julgavam ter mais poder e influência na Igreja Universal – e consequentemente na Record – por serem bispos e Tavolaro, um leigo. O executivo não cedia e lembrava ter chegado à cúpula da Record antes dos dois colegas. Por não ser um líder religioso, ele também não se submetia às mesmas regras de condutas impostas a bispos e pastores. Seu comportamento era criticado. Fofocas e intrigas envolvendo o vice-presidente de jornalismo começaram a ser espalhadas entre membros da igreja, em razão de ele ter se separado e casado pela segunda vez. Sua nova união foi, inclusive, celebrada – e com muita pompa – pelo próprio bispo Edir Macedo, em dezembro de 2010, na elegante e sofisticada Casa Charlô, em São Paulo, numa megafesta com bufê personalizado e bolo de seis andares decorado para 450 ilustres convidados.
Tavolaro não tem nenhum parentesco com Edir Macedo, mas era frequentemente apontado por órgãos de imprensa como um suposto sobrinho do líder máximo da Universal. Não fazia questão de negar os tais laços familiares, porém, pois essas ilações o fortaleciam internamente na disputa com os colegas religiosos.
Um dos bispos com desejo de ter controle no jornalismo era Marcelo Cardoso, ex-presidente da Record Internacional e irmão de Renato Cardoso, genro de Edir Macedo. Também bispo e casado com Cristiane, a filha mais velha de Macedo, Renato é hoje o segundo homem com mais poder na Igreja Universal. Vem sendo preparado há alguns anos por Edir Macedo para assumir a igreja quando o líder máximo e fundador vier a se ausentar por causa da idade ou eventuais problemas de saúde. Em 2007, Macedo havia anunciado como seu sucessor o então bispo Romualdo Panceiro, ex-responsável pela igreja no Brasil e em Portugal. Mas se arrependeu, e Panceiro rompeu com o antigo líder. Macedo, então, optou por manter o controle da Universal nas mãos da família, no futuro, e abriu espaço para a ascensão de Renato Cardoso.
Marcelo Cardoso, líder religioso emergente, assumiu o cargo na Record em 2015. Já nessa época passou a ser citado como um provável novo presidente da emissora. Assim, formaria com o irmão Renato uma dupla de confiança da família Macedo. Marcelo foi apontado em uma reportagem do UOL como “fuçador” e “inquieto” e com fama de “dedo-duro”. Sua missão na Record seria “consertar” a emissora e trazê-la de volta aos primeiros lugares na audiência. Teria também, como importante tarefa, investigar processos e medidas adotadas por antecessores, para detectar possíveis irregularidades e informar Edir Macedo. O bispo Marcus Vinicius Vieira, outro homem de confiança de Macedo, é filho do ex-deputado federal Laprovita Vieira, eleito seguidas vezes no Rio de Janeiro com o apoio da igreja. Laprovita foi também presidente da Universal e um dos intermediários na compra da TV Record, em 1989. Foi o homem que apareceu com um maço de cigarros no bolso do paletó, durante as conversas para tentar fechar o negócio, a fim de tentar esconder dos vendedores que a emissora iria parar nas mãos de uma igreja evangélica neopentecostal.
Douglas Tavolaro, após ter acertado com a CNN, não encontrou dificuldades para emplacar Antonio Guerreiro como o seu sucessor na vice-presidência de jornalismo da Record. Sua proposta foi bem recebida. Macedo acatou a ideia, mas a submeteu a uma espécie de “conselho” da emissora. A maioria endossou. Na posse de Guerreiro, o bispo Marcus Vinicius convocou mais de 50 executivos e chefes do jornalismo para anunciar que o novo titular era o seu representante no departamento. Os dois se deram bem. Guerreiro caiu nas graças do bispo Vinicius.
Para Tavolaro, o tratamento foi outro. Ao se afastar para assumir o cargo na CNN, o jornalista deu argumentos para seus detratores o criticarem. Marcelo Cardoso e Marcus Vinicius, entre outros, teriam “envenenado” Macedo com afirmações de que o ex-comandante do jornalismo abandonava a Record para fortalecer um canal de notícias concorrente. Não seria, portanto, um aliado de verdade. A imagem de Tavolaro, a partir daí, seria “desconstruída”. Os comentários e insinuações sobre sua separação aumentaram.
Outro motivo para duros ataques foi a decisão de contratar profissionais da Record. Tavolaro, no início, levou para a CNN apenas uma produtora e dois dos seus principais auxiliares do jornalismo na emissora do bispo. Depois, tirou André Ramos da direção de jornalismo da Record no Rio de Janeiro. Três dias depois de ter anunciado a contratação de Ramos, a CNN levou Reinaldo Gottino, então apresentador do Balanço geral, um dos programas de maior audiência da emissora de Edir Macedo. Aí, Tavolaro passou a ser bombardeado por ex-colegas.
Um nome popular na Record – vinculado principalmente a fofocas e noticiário policial –, Gottino passará a apresentar agora a versão brasileira do sóbrio e sério noticioso CNN 360º, comandado por Anderson Cooper no canal americano. Na emissora da Barra Funda, espalhava-se ainda o boato de que a CNN contrataria a ex-global Adriana Araújo, apresentadora do Jornal da Record e desde 2006 na emissora do bispo. Macedo, enfim, teria se convencido de que o ex-aliado Tavolaro tornara-se um adversário.
A Record, então, partiu para o ataque. Exibiu três reportagens, entre os dias 20 e 23 de setembro de 2019, denunciando ações de clientes que teriam sido lesados pela MRV, a empresa de Rubens Menin, e apontando problemas em prédios erguidos pela construtora no programa Minha Casa Minha Vida, no Paraná. A MRV foi inserida na lista suja do trabalho escravo no Brasil, criada pelo Ministério do Trabalho, após flagrantes na construção do edifício Cosmopolitan, em Curitiba, em 2011. Onze trabalhadores foram resgatados no local. No ano seguinte, novas irregularidades foram apontadas nas obras dos condomínios Parque Borghesi, em Bauru, e no residencial Beach Park, em Americana, ambas cidades do interior paulista. A empresa foi autuada cinco vezes pela acusação de explorar trabalho escravo.
Menin, por meio da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) – de cujo conselho é presidente –, passou a ser citado como o líder do lobby no Brasil contra a divulgação dos nomes de empresas envolvidas no uso de mão de obra análoga à de escravo. O empresário rebatia as acusações. Alegava que a portaria do cadastro do Ministério do Trabalho não previa uma instância de defesa contra a inclusão de nomes na lista suja do trabalho escravo. A partir dessa constatação de envolvimento, as empresas citadas ficariam impedidas de obter crédito, empréstimos e contratos com bancos públicos, como o BNDES e o Banco do Brasil. A MRV é uma das principais construtoras do Minha Casa Minha Vida, do governo federal. Os sócios da CNN Douglas Tavolaro e Rubens Menin não responderam às perguntas enviadas pela Agência Pública.
Em nota, em fevereiro passado, a CNN Brasil contestou os comentários de que sua chegada ao Brasil seria parte de um projeto político. E repudiou o que chamou de “declarações infelizes” de Paulo Saad. “A CNN vai produzir jornalismo profissional, isento e de qualidade, que defenderá os interesses da sociedade e será sustentada unicamente pelo mercado publicitário e de distribuição no Brasil, e outras unidades de negócio derivadas do uso da marca no País”, afirmou a emissora. Para a CNN, as críticas de Paulo Saad teriam sido motivadas pelo fato de o canal ter contratado a principal apresentadora da Band News, Carol Nogueira, e ainda levado quase a metade da equipe de jornalismo da concorrente.
Em entrevistas no ano passado, Tavolaro negou a existência de sócios ocultos e contestou os comentários sobre um possível alinhamento do novo canal com o governo Bolsonaro. “Não será de direita nem de esquerda”, garantiu. O presidente Bolsonaro já foi apontado no noticiário de língua inglesa da CNN como um político de “extrema direita”. Seus pronunciamentos misóginos, racistas e homofóbicos também foram citados. Logo após o anúncio da chegada da CNN ao Brasil, em janeiro de 2019, Menin e Tavolaro foram recebidos por Bolsonaro no Palácio do Planalto. A nova emissora, porém, rejeita enfaticamente as supostas ligações com o projeto político do presidente da República. Como a Record anuncia agora uma parceria com a Fox News – a rede americana rival e alinhada a Donald Trump –, a CNN Brasil espera que a eventual pecha de conservadora se ajuste mais à TV de Edir Macedo.