A construção da Arena da Amazônia empregou aproximadamente 2.300 trabalhadores, segundo o Ministério Público do Trabalho. Durante as obras, três operários morreram em decorrência de acidentes de trabalho: Raimundo Nonato Lima Costa, 49 anos, Marcleudo Melo Ferreira, de 22 anos, e Antônio José Pita Martins, de 55 anos. Manaus tornou-se assim a cidade com maior registro de vítimas fatais em canteiros de obras para a Copa de 2014. Um quarto operário morreu de infarto no canteiro de obras em dezembro de 2013.
A Andrade Gutierrez Ltda, construtora da Arena da Amazônia, esteve na mira do MPT e da Superintendência Regional do Trabalho e Renda desde o início das obras. Já nas primeiras inspeções várias irregularidades no canteiro de obras, no que dizia respeito ao ambiente e segurança do trabalho, foram identificadas. Um Termo de Ajustamento de Conduta foi o firmado, mas o MPT diz que a empresa não o atendeu.
No dia 18 de abril de 2013, dias após a morte de Raimundo Nonato Lima Costa, o MPT entrou com uma ação civil pública acusando a Andrade Gutierrez de cometer uma extensa lista de violações contra as regras de segurança que revela “um risco grave e iminente de acidentes do trabalho na obra da Arena da Amazônia”. E apontava: “a ocorrência de acidentes de trabalho na obra da reclamada é maior do que esperada, à medida de que são inúmeros os sinais de que irão acontecer caso não sejam tomadas as medidas de urgência”.
O autor da ação, procurador Vitor Borges da Silva, relata que “há violação a regras estritamente relacionadas à segurança do trabalho em altura, segurança do trabalho com máquinas e equipamentos, segurança de instalações elétricas e segurança contra projeção de materiais”.
O MPT diz ainda que “há desrespeito às importantíssimas normas de prevenção de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, dadas as inconsistências encontradas na organização da Comissão Interna de Prevenção de Acidente (CIPA), do Programa de Controle Médico da Saúde Ocupacional (PCMSO) e do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA)”.
A ação, que pede uma indenização por dano moral coletivo de R$ 20 milhões, continua tramitando na justiça do trabalho. No último dia 7 de fevereiro o MPT entrou com uma petição pedindo urgência no julgamento. Nesse mesmo dia ocorreu a terceira morte por acidente de trabalho no canteiro de obras da Arena da Amazônia. Durante a operação de desativação de um guindaste, o operário português Antônio José Pitta Martins foi atingido por um equipamento. Ele morreu durante procedimento cirúrgico em um hospital de Manaus.
Na petição, os procuradores do Trabalho Maria Nely de Oliveira, Jorsinei Nascimento e Renan Bernardi Kalil dizem que a medida justifica-se “considerando-se todos os descumprimentos das normas regulamentadoras do meio ambiente de trabalho e, sobretudo, pelos acidentes de trabalho com vítimas fatais”. O MPT pede ainda R$ 100 mil por cada obrigação descumprida já que as medidas estipuladas no acordo judicial de dezembro de 2013 não foram suficientes para inibir a conduta violadora da ordem jurídica.
Vítimas da falta de segurança
Depois do pedreiro Raimundo, foi a vez de Marcleudo de Melo Ferreira, de 22 anos, perder a vida, ao cair de uma altura de 35 metros quando realizava obras na cobertura da arena durante a madrugada. O horário do acidente levantou a suspeita de que a Andrade Gutierrez vinha pressionando os trabalhadores para finalizar a obra.
Com a morte de Marcleudo, as obras foram suspensas e foi feita uma perícia judicial, que identificou uma série de descumprimentos de normas de segurança do trabalho. Para retomar as obras, a Andrade Gutierrez comprometeu-se com o MPT a corrigir as irregularidades e adotar medidas efetivas de supervisão e controle das ações de prevenção de acidentes.
No dia 7 de fevereiro deste ano, um novo acidente resultou na morte do trabalhador de nacionalidade portuguesa Antônio José Pita Martins, de 55 anos. Martins, a terceira vítima, fazia trabalho de desmontagem de um guindaste quando foi atingido na cabeça por uma peça do equipamento. O procurador Jorsinei Nascimento, que visitou o local no mesmo dia deste novo acidente, declarou à imprensa que identificou alteração na cena do acidente por parte da empresa, com retirada de escadas e despejo de areia sobre vestígios de sangue.
No mesmo dia o MPT entrou com a petição pedindo urgência no julgamento, alegando que a morte de Martins trazia novos indícios de que “mais uma vez a empregadora vem negligenciando seu dever de proteção da vida dos trabalhadores que estão a seu serviço”.
Irregularidades não foram corrigidas
No dia 15 de janeiro de 2014, uma força tarefa de inspeção havia sido realizada na Arena da Amazônia. O autor pericial, Antenor Garcia de Oliveira Júnior, elencou em seu relatório uma série de irregularidades que continuavam a ser cometidas, mesmo após dois acidentes fatais e as cobranças do MPT. Entre os relatos do auditor estão: “Constatamos em diversos pontos de escada irregularidades relacionadas às proteções coletivas contra risco de quedas de trabalhadores e projeção de materiais” e “identificamos alguns trabalhadores realizando a movimentação de peças em longas distâncias sem utilizar o sistema de cabo guia durante o seu deslocamento no anel superior da Arena”.
Este último relatório de inspeção do MPT serviu de respaldo para complementar a petição. Desde então, o órgão não realizou novas vistorias no canteiro de obras.
Em entrevista à Pública, a procuradora Maria Nely de Oliveira destacou que morte em acidente de trabalho não pode ser considerada fatalidade e sim um fato previsível, quando normas de segurança não são tomadas.
Ela conta o que viu em diversas vistorias feitas pelo MPT: “Nas nossas vistorias identificamos trabalhadores sem óculos de proteção, outros sem máscaras, outros sem medidas de proteção contra queda e outros sem o sistema de cabo guia que o prende ao cinto de segurança. Observamos muitos pontos vulneráveis. Depois disso, a empresa melhorou, mas ela poderia ter feito essas medidas antes, logo no início da obra”, diz.
Para ela, a pressão imposta aos trabalhadores para realizar a obra rapidamente também pode ter sido fator de risco em alguns acidentes. “Existe uma crise entre o pessoal da área de segurança e o pessoal da produção. Cobram que têm que produzir para entregar a obra no prazo. Eles acabam não administrando isso e esquecem de cumprir as normas de segurança. Sem dúvida a questão do prazo é um fator que prejudica o trabalho. A consequência são as ocorrências de acidentes e até mortes”, destaca.
A Pública tentou obter da Andrade Gutierrez informações pessoais e familiares dos três trabalhadores, mas a empresa se recusou a fornecer. A construtora também disse, por meio da assessoria, que não comentaria sobre a ação do MPT, sobre as irregularidades apontadas e sobre as mortes dos trabalhadores. O Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil do Amazonas também afirmou que não tinha dados sobre os operários. A mesma resposta deu o MPT e a superintendência do Ministério do Trabalho e Emprego no Amazonas.
Ainda assim, a Pública conseguiu localizar o irmão de Marcleudo de Melo Ferreira em Limoeiro do Norte, Ceará. Das outras vítimas sabe-se apenas que não eram do Amazonas nem tinham família no Estado. Antônio José Pita Martins foi identificado apenas como“técnico português”. A empresa não divulgou informações sobre a naturalidade de Raimundo José Lima Costa.
Família de operário morto estuda processar Andrade Gutierrez e União
Marcleudo de Melo Ferreira faria 23 anos de idade no dia 15 de dezembro de 2013. Um dia antes, porém, ele caiu de uma altura de 35 metros quando trabalhava às quatro da manhã em serviços de montagem da Arena da Amazônia, em Manaus. Foi levado para o hospital, mas não resistiu.
Com carteira assinada no dia 11 de setembro por uma empresa subcontratada pela construtora Andrade Gutierrez, a L.A. Jato e Pintura Ltda, ele recebia um salário de R$ 950. Seu turno começava às 19h e não era raro terminar o trabalho às cinco da manhã.
“Meu irmão ligava todos os dias e falava que gostava de trabalhar como ajudante de montagem. Mas nos últimos tempos, ele dizia que o serviço estava ficando puxado, tempo imprensado, com os encarregados da obra botando pressão para acabar o trabalho”, contou à Pública o irmão de Marcleudo, Marco Antônio de Melo Ferreira, 32, por telefone, de Limoeiro do Norte, cidade onde ambos nasceram.
Marcleudo era o filho mais novo de Antônio Ferreira de Matos e Raimunda Izídia de Melo Ferreira. “Agora sou só eu. Meus pais não gostam de falar sobre a morte dele. Quando alguém comenta eles choram muito”, diz irmão.
Marco descreve Marcleudo como “um rapaz gente boa, divertido, que gostava de se virar e nunca deu trabalho para nossos pais”.
“Quando ele foi para Manaus estava muito feliz por ter conseguido trabalho. A gente sabia que ele trabalhava na parte de cima da obra, pois sempre nos falava. Quando ele morreu, foi uma situação muito ruim. Ninguém esperava, minha mãe desmaiava muito, chorava direto”, relata.
O irmão de Marcleudo disse que a empresa se responsabilizou apenas pelo traslado do corpo, velório e enterro. Dias depois, um encarregado da obra foi na cidade levar a carteira de trabalho do rapaz. “Já tem dois meses que aconteceu, mas a Andrade Gutierrez nunca nos procurou ou nos comunicou algo. A gente está dando um tempo, mas estamos pensando em entrar na justiça”, conta.
Nem mesmo o laudo do Instituto Médico Legal (IML) com informações sobre as causas da morte foi encaminhado à família de Marcleudo, dois meses depois do acidente. “Já tentei pedir o laudo, pois isto ajudaria a gente na justiça, mas não consigo ter retorno”, diz Marco Antônio.
O advogado da família de Marcleudo, Dário Igor Nogueira Sales, disse que ainda está aguardando o relatório da perícia feita logo após a morte do rapaz pela Superintendência Regional do Trabalho do Amazonas do Ministério do Trabalho e Emprego. “Estou tentando falar com alguém da Superintendência, mas não consigo. Já tive um caso semelhante que envolveu acidente de trabalho e o relatório nos chegou rapidamente. Por enquanto, o que sabemos são coisas oficiosas. Parece que nem o exame toxicológico saiu”, disse o advogado.
Dário Igor afirmou que deverá ajuizar ação contra a empresa Andrade Gutierrez, contra a subcontratada e contra a União. “Estamos estudando a melhor forma de entrar com a ação. Fazer o cálculo de quanto o Marcleudo ganharia de salário até os 70 anos de idade, que é quando ele se aposentaria. Não sei quando vai ser, mas será um valor muito alto”, disse o advogado.
Em, nota após o acidente, a Andrade Gutierrez informou que o operário sofreu “uma queda de cerca de 35 metros, sendo socorrido e levado ao Pronto Socorro 28 de Agosto ainda com vida, onde não resistiu aos ferimentos e veio a falecer”. E declarou: “Reiteramos o compromisso assumido com a segurança de todos os funcionários e que uma investigação interna está sendo feita para apurar as causas do acidente. As medidas legais estão sendo tomadas em conjunto com os órgãos”. A nota diz ainda que a empresa estava “prestando total assistência à família do operário”.
No dia 15 de fevereiro, a Fifa e o Comitê Organizador local da Copa em Manaus emitiram um comunicado sobre a morte de Marcleudo de Melo Ferreira. “A Fifa e o Comitê Organizador Local receberam a morte de um trabalhador neste sábado na Arena da Amazônia com grande tristeza. Nós gostaríamos de mandar nossas sinceras condolências à família, aos colegas e aos amigos”.
Com a morte de Marcleudo, o Ministério Público do Trabalho pediu intervenção nas obras Arena da Amazônia, acatada pela justiça do trabalho. Mas dias depois, após acordos com a empresa, as obras retornaram.
Procurada pela Pública, a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Amazonas, a qual o IML é subordinado, disse que o laudo de Marcleudo de Melo Ferreira deve ser finalizado no final deste mês e encaminhado para a Delegacia Especializada em Ordem e Polícia Social (DEOPS). Esta se encarregará de entrar em contato com a família do rapaz.
Até o fechamento desta matéria, a assessoria de imprensa da Superintendência Regional do Trabalho não respondeu as perguntas sobre o relatório mencionado pelo advogado.
Construtora é uma das maiores doadoras de campanha
A construtora responsável pela obra da Arena da Amazônia é a Andrade Gutierrez, uma das maiores do Brasil e uma das campeãs em doações a partidos políticos nas últimas eleições. Em 2010, a empresa destinou R$ 64.667.500 ao PMDB, partido do senador Eduardo Braga, que na época da escolha de Manaus como sede era o governador do Amazonas. Em 2012, a Andrade Gutierrez doou R$ 81.154.899 para o PMDB.
As obras da Arena da Amazônia estão orçadas hoje em R$ 605 milhões. O governo do Amazonas conta com uma “redução” deste valor considerado que a obra foi habilitada para receber benefícios fiscais do Recopa (12.350/2010), uma lei encomendada pela Fifa e aprovada pelo Congresso Nacional que concede isenções tributárias a diversos itens relacionados com a Copa. Com isso, o orçamento da Arena da Amazônia baixou para R$ 594 milhões.
Em agosto de 2013, antes de se aposentar, o ex-procurador-chefe da República Roberto Gurgel entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a lei do Recopa no Supremo Tribunal Federal (STF). Na ADI, Gurgel argumenta que “não é possível vislumbrar nenhuma razão que justifique o tratamento diferenciado da Fifa e de seus relacionados” e que “a isenção concedida não se qualifica como um benefício constitucionalmente adequado, mas como um verdadeiro favorecimento ilegítimo”. A ADI ainda não foi julgada.
O orçamento original da Arena da Amazônia era de R$ 530 milhões, mas a construtora solicitou um acréscimo que foi contestado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). O órgão judiciário identificou um sobrepeso de R$ 86 milhões e pediu suspendeu o repasse de parcelas dos empréstimos concedidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Depois de várias inspeções e observações de alegações da construtora e do governo do governo, que podem ser acompanhados nestes documentos, o TCU autorizou os repasses, com a orientação de que os gastos continuem sendo acompanhados pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Amazonas. Leia as acórdãos do TCU aqui e aqui.