“Aqui tinha tanta lama que eu carregava pedra na cabeça pra fazer um caminho de pedras para minha filha não entrar na perua da escola com o sapato cheio de barro. A gente construiu tudo isso aqui”, lembra, sobre a comunidade Futuro Melhor, Zenaide Nascimento Passos, 65 anos, que a ocupou, há 23 anos, com o marido e a filha Viviane, então com 7 anos. Hoje, as 8 mil famílias que formam a ocupação, no extremo norte da cidade de São Paulo, estão ameaçadas de serem despejadas para a construção de um projeto de habitação de parceria público-privada (PPP) no local.
A família de Zenaide foi uma das primeiras a entrar no terreno, que margeia o córrego do Bispo, também no extremo norte da cidade. Diarista aposentada devido a problemas na coluna, ela construiu uma casa de alvenaria há 11 anos – antes a casa era de madeirite. Ao longo de mais de duas décadas, a família de Zenaide passou por algumas tentativas de reintegração de posse, todas barradas na última hora pela Justiça.
Em 2015, a comunidade desenvolveu um projeto de urbanização junto à Secretaria Municipal de Habitação. O plano, que levaria saneamento básico para as famílias da Futuro Melhor, foi engavetado com a construção do Rodoanel Mário Covas. Desde então, uma parte do terreno que havia sido ocupada há menos tempo sofreu reintegração de posse sob justificativa de que as famílias estavam vivendo em área de risco. Em novembro de 2018, as famílias do Futuro Melhor e da favela do Sapo, vizinha da ocupação, descobriram que seu território havia sido escolhido para formar um lote do novo plano para habitação do município: A PPP Casa da Família.
Para Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e coordenadora do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, o LabCidade, o atual modelo de PPP construído pelo governo municipal é contraditório. “Os impactos sociais gerados a partir dessa PPP ocorrem em violação de direito de moradia e ameaças de remoções. A conta não fecha, ameaça muito mais unidades do que vai ofertar”, afirma.
Zenaide teme que a Futuro Melhor seja afetada pela PPP. “Não querem fazer apartamento para nós. Querem fazer é para a riqueza”, reclama. “Eu nem sei o que aconteceria se a gente saísse daqui. Ficaria desnorteada. Eu não tenho para onde ir”, diz.
Seu desabafo tem explicação: as famílias que serão removidas não têm nenhuma garantia de que entrarão nas unidades da PPP. Isso porque as moradias são destinadas para outros perfis sociais.
De acordo com as informações do primeiro edital PPP Casa da Família, lançado em março de 2018, serão 16.284 unidades destinadas para Habitações de Interesse Social (HIS). No entanto, essas unidades exigem comprovação de renda mínima de um salário mínimo para as famílias que forem atendidas e pagarão parcelas proporcionais. A PPP prevê também moradias para famílias na faixa de renda de três a seis salários mínimos (HIS-2), seis a dez salários mínimos e até mesmo 10 a 20 salários mínimos, as chamadas Habitação de Mercado Popular (HMP) e Habitação de Mercado Cohab (HMC), que comporão quase 7 mil unidades.
No total do projeto, a nova aposta de habitação de São Paulo prevê a construção de mais de 23 mil unidades habitacionais espalhadas em 12 diferentes lotes. Porém, metade desses terrenos está ocupada – caso das comunidades do córrego do Bispo.
A ex-presidente da Associação Futuro Melhor, Crenildes Jesus da Silva, conhecida como dona Nena, explica que na região serão construídas 1.800 moradias para a faixa salarial de um a três salários mínimos, mas que o perfil de renda das famílias da comunidade é de até um salário mínimo.
“A maioria das pessoas daqui trabalham com bicos de faxina, de pedreiro e catando material reciclável. Não tem como comprovar renda”, explica. Com 56 anos, Nena também vive na Futuro Melhor desde sua ocupação, em 1996. Varredora de ruas afastada pelo INSS por conta de uma série de problemas nas pernas e na coluna, Nena questionou, durante visita da Agência Pública, para onde iria em caso de despejo.
A liderança conta que a comunidade foi construída inteiramente pelos moradores, sem apoio do Estado, conquistando, na base da mobilização, a iluminação e a água encanada, além de construir a própria rede de esgoto.
O advogado Vitor Inglez explica que a área das comunidades do Córrego do Bispo se enquadra no critério de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS-1) do Plano Diretor de São Paulo. Além de indicar qual perfil social deveria ser assistido pelo Estado nessas áreas, a marcação impõe que o projeto de urbanização seja construído de forma democrática e participativa, com a construção de um conselho gestor com os atuais moradores da região, o que não está acontecendo.
Nena destaca a importância do comércio local, que também sofreria despejo, para a renda das famílias e sobrevivência da Futuro Melhor. “Só aqui no quarteirão tem seis mercadinhos, quatro açougues, farmácia. A renda dessas pessoas vai para o saco. Nós já temos quase tudo. A única coisa que nos falta na comunidade é botar a cabeça no travesseiro e dormir sem a incerteza do amanhã, ter regularização e urbanização.”
“Tem lógica fazer toda a prevenção, mas despejar na pandemia?”
Segundo Vitor Inglez, advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, que tem atuado em defesa das famílias da região, a área da Ocupação Futuro Melhor, numerada como Lote 12 do projeto da PPP, é um dos casos mais problemáticos. “O discurso de que a PPP vai combater o déficit habitacional é um contrassenso gigantesco que já vemos que vai agravar o déficit [habitacional], e não há nenhuma garantia oficial de que a demanda será composta pelas famílias que vão perder suas casas”, explica.
Outra questão problemática apontada por especialistas sobre a PPP municipal é que, mesmo depois das licitações de seus lotes, os perímetros afetados ainda podem ser trocados ou ampliados em um prazo de seis meses após a homologação das empresas escolhidas.
É o caso do Lote 12, que após ter sido licitado em maio do ano passado para o Consórcio Habita Brasil, expandiu a construção das suas unidades para outros três terrenos ocupados por dezenas de famílias há pelo menos sete anos, também na zona norte da capital. Com pedidos de reintegração de posse tramitando na Justiça, essas ocupações estão sendo ameaçadas de despejo em meio à pandemia de Covid-19.
Um levantamento do Observatório de Remoções lançado lançado neste mês mostra que o número de reintegrações de posse e remoções na região metropolitana de São Paulo dobrou durante a pandemia de Covid-19 em relação ao trimestre anterior. O Tribunal de Justiça de São Paulo registrou 4.018 ações de despejo liminar protocoladas somente nos primeiros dois meses da pandemia, segundo dados obtidos pela agência de dados independente Fiquem Sabendo.
Vivendo sem pagar aluguel na Ocupação Imirim, Ieda Oliveira das Virgens, 64 anos, tem metade da casa construída com tijolos. Para ela, uma conquista que levou sete anos. A outra metade, em madeirite – cozinha, banheiro e sala – foi decorada com pinturas que Ieda coleciona desde os tempos em outra ocupação.
Atualmente, ela trabalha como cuidadora de idosas para uma família no bairro de Perdizes. Quando chegou à Imirim, “era só mato”, literalmente. “Carcaças de moto, tinha até crânio enterrado aqui dentro quando ocupamos.” A idosa se mudou para o atual endereço em 2013, depois de ter sofrido despejo em outra ocupação, a Mendonça Júnior, no distrito de Cachoeirinha, onde viveu por nove meses. A ocupação fora reintegrada por risco de contaminação de gases inflamáveis que saíam do solo do terreno. Ieda sacou três parcelas do auxílio- aluguel pago pela prefeitura às famílias despejadas – um total de R$ 900 – e então o auxílio foi cancelado.
O auxílio-aluguel, que não costuma passar de R$ 400 mensais, é um dos instrumentos avaliados pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab) como contrapartida às famílias que serão despejadas. O valor do auxílio, no entanto, não é suficiente para pagar aluguel nas regiões das ocupações visitadas pela reportagem.
Desde que a Imirim foi acrescentada ao Lote 12 da PPP Casa da Família, Ieda, que é diabética, teme novo despejo. “Trouxe minhas coisas da outra ocupação e construí aos poucos. Ninguém quer passar por outro despejo tudo de novo. Até quando?”, pergunta.
No último ano, a Ocupação Imirim, com 110 famílias, bem como os outros dois terrenos ocupados pela Frente de Luta por Moradia (FLM), Parada Pinto e Elza Guimarães, receberam três notificações de reintegração de posse. A última, marcada para o dia 23 de março de 2020, um dia antes do início da quarentena no estado de São Paulo, foi suspensa após ação da Defensoria Pública. “Mas a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo segue pressionando muito duramente para que o despejo ocorra agora”, revela o advogado Vitor Inglez.
A coordenadora da FLM Geni da Fonseca Monteiro acompanha de perto as três ocupações. Ela conta que em 2017 o poder público já havia pedido reintegração de posse dos terrenos, alegando que lá seriam construídas unidades populares do programa Minha Casa Minha Vida. “Com o tempo mudou, cada vez que temos uma reunião com os secretários e os órgãos competentes tem alguma mudança.” De acordo com Geni, as mudanças ocorrem “por debaixo do pano” e sem consulta ou informação dos moradores.
Geni destaca o medo de famílias que já passaram por outros despejos e já estão há anos na fila aguardando serem contempladas por algum programa de moradia. “Agora só acreditam que, quando saem, vão ter direito a voltar com assinatura, documento. Boca não vale nada”, afirma. É o caso de Marta Ribeiro Rocha, 48 anos, moradora da Ocupação Elza Guimarães, que abriga 117 famílias. Há quatro anos na ocupação, ela ainda mora em casa de madeirite, mas afirma que ajudou a dar “vida social” para o terreno baldio. Marta é cadastrada na Cohab, fazendo parte da fila do déficit habitacional há dez anos.
“Mas sempre que a Cohab tem oportunidade faz programas que não são para pobres. Toda vez que minha condição foi simulada, eu nunca alcancei a renda mínima, e quando isso acontece você volta para o começo da fila. Eu preciso de uma negociação em cima do salário mínimo para conseguir pagar”, explica.
Marta vive na ocupação com o marido e o filho na mesma casa. Antes porteira e agora diarista, ela conta que perdeu todas as diárias na pandemia. “Algumas famílias daqui vieram da rua, outras, do aluguel. Reintegrar em pandemia? A gente não pode nem sair de casa. Tem lógica fazer toda a prevenção e depois fazer isso?”, questiona.
Com 120 famílias, a Ocupação Parada Pinto é a mais estruturada das três visitadas pela Pública. O local que há 60 anos já foi um terreno abandonado hoje é cimentado, e praticamente todas as casas são de alvenaria.
Josélia Pereira, coordenadora da associação Unidos na Luta Ide, que também organiza outra parte da ocupação Parada Pinto, ocupada em 2014, afirma que foram tirados 22 caminhões de lixo do terreno. “O local era uma desova de carros. Os comerciantes locais relatam uma grande melhora com a nossa chegada”.
Para Marciana Dias do Nascimento, mãe solo de três meninas, a ocupação “resgatou sua dignidade como mulher, mãe e cidadã”.
“Eu não conseguia mais pagar aluguel, estava com ordem de despejo. Me deram amparo. Eu me sentia com meu direito de cidadã eliminado, me sentia no lixo”, conta. A reportagem visitou o sobrado de Marciana no momento em que ela terminava de pintar as escadas com a filha mais nova. Na casa da frente, vive a mãe de Marciana, uma idosa de 77 anos, e sua irmã, que é esquizofrênica.
O consórcio Habita Brasil pretende construir 280 unidades de moradia onde hoje é a Ocupação Parada Pinto, 290 unidades onde hoje vivem as famílias da Elza Guimarães e 290 unidades onde existe a Ocupação Imirim. As unidades se somarão às 1.800 construídas sobre as comunidades do córrego do Bispo. Ou seja, são mais de 8.200 famílias ameaçadas apenas no Lote 12 da PPP.
Os removidos dos removidos
A Ocupação Viva Jardim Julieta, localizada no Parque Novo Mundo, divisa de São Paulo com Guarulhos, ganhou atenção midiática desde que foi formada, há cinco meses. O motivo: é consequência direta do aumento de desemprego causado pela pandemia. Lá vivem cerca de 800 famílias, a grande maioria despejada por não conseguir mais pagar o aluguel no início da quarentena. Antes o terreno baldio que hoje abriga os despejados era utilizado como estacionamento e foi batizado pelos moradores de “selva”, devido ao alto índice de estupros, prostituição e tráfico.
No início da ocupação, porém, os moradores foram informados que teriam até o dia 10 de agosto para se retirar ou seriam despejados. O terreno, de propriedade da empresa pública SP Urbanismo, será desapropriado com outra área próxima, a favela do Violão, para compor o Lote 7 da PPP Casa da Família. No total, serão construídas 1.500 unidades residenciais. Segundo Débora Ungaretti, pesquisadora do LabCidade, a SP Urbanismo ficará com parte do lucro da concessionária que venceu a licitação na região, a Terra Nova Engenharia e Construções.
A coordenadora da ocupação, Valdirene Ferreira Frazão, 45 anos, explica que a prefeitura disse que as famílias da ocupação poderiam concorrer para entrar na PPP. “Mas não é viável para nós. As pessoas aqui não têm renda, não têm mais nome limpo”, explica. Em uma reunião com a Secretaria Municipal de Habitação e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano no início de agosto, a associação dos moradores chegou a um acordo informal de adiar a reintegração em seis meses. No dia 18 de agosto foi formalizada a suspensão da remoção até o fim do estado de emergência por conta da pandemia.
Na fila da Cohab há 15 anos, Valdirene é cética. “Atualizo meu cadastro todos os anos, sempre pagando aluguel, sem moradia própria. Você ouve falar que essa lista segue e não vê seguir nada”, lamenta. Valdirene, que trabalhava com eventos antes da pandemia, se mudou para a Viva Jardim Julieta com o marido e os dois filhos.
Paula Santoro, do LabCidade, acredita que os moradores do Jardim Julieta estão entre os mais vulneráveis ameaçados pela PPP municipal. “Seriam os removidos dos removidos, ameaçados no meio da pandemia sem nenhuma solução habitacional.” A reportagem esteve na ocupação quando a prefeitura distribuía, pela primeira vez em cinco meses, 500 cestas básicas doadas pela Secretaria de Habitação.
“Eu morava de aluguel, mas as academias fecharam e eu entreguei minha casa com quatro meses de aluguel atrasado. Vim à procura de uma moradia. Se o governo se colocar na pele de ser humano, vai entender a situação que a gente está. Um professor no Brasil já ganha pouco. Desempregado, ainda estou morando sem luxo nenhum, sem direito a banho quente”, reclama o professor de dança e bailarino desempregado Buba Rodrigues.
Remoção e violência na Luz
A construção da primeira PPP habitacional de São Paulo, formulada pelo governo do estado, teve seu projeto tornado público com um incidente: a demolição de casas com os moradores ainda dentro, na região do bairro da Luz conhecida popularmente como Cracolândia, em maio de 2017. A situação escancarou os planos do governo para a cobiçada região central e levou à construção de um conselho gestor da região, formado por moradores, governo e entidades.
A PPP Casa Paulista teve edital para construção de mais de 14 mil unidades habitacionais em 2014. A construtora Canopus foi a ganhadora. Até agosto de 2018, foram entregues mais de mil unidades na rua São Caetano e em parte do Complexo Júlio Prestes. Os moradores das unidades reclamam das dificuldades em manter os pagamentos das parcelas.
Atualmente, uma batalha pelo despejo das famílias moradoras das chamadas quadras 37 e 38 mobiliza parte da sociedade civil. Segundo Renato Abramowicz Santos, pesquisador do Observatório de Remoções, entidade que integra o conselho gestor da PPP, apesar de o grupo ter ficado mais de um ano sem se reunir, ele foi surpreendido por um ofício da Secretaria Municipal de Governo e da Cohab pedindo a urgência das desocupações durante a pandemia.
“O estado corre para remover, mas não corre para atender as famílias. O documento descreve a região com um grau de preconceito que espanta, apresentando os moradores como se todos fossem usuários, dependentes químicos. E mesmo que fossem não justificaria as remoções no meio da pandemia”, opina.
Diante da ameaça, os moradores da região criaram o Fórum Aberto Mundaréu da Luz e cunharam uma proposta alternativa de planejamento urbano para a área. Entre as denúncias do grupo estão os picos de violência policial, que, segundo Renato, antecedem as grandes intervenções urbanísticas na área. “Duas coisas são históricas na Luz: os grandes projetos de remoção e a violência com a justificativa da guerra às drogas contra o fluxo. Essa violência atinge a todos”, denuncia.
Carolina*, moradora de uma pensão localizada na quadra 37, aguarda com anseio o despejo. Ela vive na região desde 2014 e é dependente química. “Porém, eu não faço nada de errado, as pessoas sabem da minha luta por moradia. Moro sozinha com duas cachorras e um gatinho e não posso ir para a rua nessa pandemia. Não tem cabimento nenhum uma família ir para a rua agora. Isso é desumano”, protesta.
Outro lado
A reportagem tentou entrevistar representantes da PPP Casa da Família na Cohab-SP, mas recebeu apenas uma nota do órgão. No documento, a Cohab destaca que os PPPs da habitação municipal possuem “caráter complementar às demais atuações da Prefeitura” e que o poder público ensaia soluções junto às ocupações que serão afetadas. “Está sendo estudada a possibilidade de destinação de uma porcentagem das unidades viabilizadas pela PPP para o programa de locação social.”
No último dia 13 de agosto, o governo do estado enviou à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) um projeto de lei que extingue uma série de órgãos públicos, entre eles a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). No texto, o principal argumento para a extinção do órgão é o “desenvolvimento de programas estimuladores da atividade privada para o setor de habitação de interesse social […] e os bons resultados alcançados com as Parcerias Público Privadas na área da habitação”.
Para Benedito Roberto Barbosa, um dos porta-vozes da Campanha Despejo Zero e membro da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, as PPPs estão associadas a um “desmonte da política habitacional para baixa renda”. “Estão propondo a privatização total da habitação, na agenda da especulação imobiliária. As famílias que mais precisam estarão fora da política de habitação”, diz.
“Quem pauta a PPP: as empresas ou o governo?”
No Brasil, o instrumento das parcerias público-privadas foi legalizado em 2004, a partir da expansão do entendimento das concessões. Apesar de já utilizadas em muitas áreas, até agora só existem quatro projetos de PPPs habitacionais pelo Brasil, sendo duas em São Paulo: a municipal Casa da Família, e a estadual Casa Paulista.
A pesquisadora Isadora Marchi de Almeida, do LabCidade, explica que, mesmo a participação privada na construção de habitação no país sendo antiga e grande, as PPPs inauguraram o entendimento de concessão privada para a área habitacional. A prefeitura fez um contrato de 20 anos com as empresas que venceram os editais da PPP municipal, nos quais pagará uma contraprestação a elas.
O economista e urbanista André Kwak aponta que foram pensadas formas extras para o lucro das empresas. “Elas não entram nisso como boas samaritanas.” Uma das soluções encontradas é a possibilidade de construírem também unidades de comércio nos seus lotes.
Questionada sobre os critérios para esses comércios, a Cohab afirmou apenas que eles terão suas titularidades atribuídas ao poder concedente ou ao poder público. “A Concessionária poderá exercer a exploração mercantil dos empreendimentos não residenciais privados durante o prazo de vigência do contrato, mas as receitas deverão ser compartilhadas com o Poder Concedente.”
Para Kwak, a PPP Casa da Família vai sair muito cara, à custa do lucro das concessionárias e dos bancos, o que deve onerar outros programas de habitação. “O valor anual a ser pago pela prefeitura como contrapartida para as construtoras deverá chegar a aproximadamente R$ 100 milhões já em 2023, podendo atingir R$ 300 milhões entre 2026 e 2040”, explica. A média de investimentos total no quadriênio 2013-2016 em habitação foi de R$ 782,3 milhões. Já na gestão Doria-Covas, o triênio 2017-2019 investiu R$ 487,1 milhões por ano.
O primeiro edital da PPP Casa da Família conseguiu contratar empresas para gerir seis dos seus 12 lotes. Os outros ficaram inicialmente sem interessados. Mesmo para os licitados originalmente, não houve concorrência. Outro edital com os demais seis lotes teve as empresas contratadas no dia 4 de agosto, e as mesmas empresas do primeiro edital ganharam e dividiram os terrenos.
Além dos lotes citados nesta reportagem, outros também precisarão remover famílias. O Lote 11, que será localizado nos bairros Vila Leopoldina e Jaguaré, na zona oeste de São Paulo, também envolverá os despejos das famílias que vivem atualmente na comunidade Barão de Antonina, próxima à Marginal Pinheiros. Os lotes 3 e 4 serão construídos na região da favela de Heliópolis, na zona sul de São Paulo, e também envolverão despejos. Já o Lote 10 será localizado em Guaianases, extremo leste da capital, em um terreno onde também há famílias morando.
Defensoria Pública, Ministério Público e até mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu o fim dos despejos no Brasil durante a pandemia. Um projeto de lei que criou regras jurídicas especiais para relações de direito privado durante a pandemia teve seus trechos sobre proibição de desocupação de imóveis com base em decisões liminares vetado por Bolsonaro no dia 8 de agosto. Na quinta-feira (20), no entanto, o veto presidencial foi derrubado pelo Congresso Nacional. Com a decisão, a proibição de desocupações será promulgada até o dia 30 de outubro.