O prefeito do município rondonense de Vilhena, Eduardo Tsuru (PV-RO), conhecido por todos como Eduardo Japonês, é querido em suas redes sociais. Produtor rural e pai de quatro filhos, como se descreve, o prefeito foi diagnosticado com Covid-19 no dia 25 de junho.
Três dias antes, Japonês já havia sido internado na enfermaria da Central de Atendimento à Covid-19 com sintomas de coriza, febre, dor de cabeça, ausência de olfato e baixa saturação de oxigênio no sangue. Assim que adoeceu, manteve a população de Vilhena informada de cada etapa de sua recuperação, postando fotos e textos em suas redes sociais. As postagens do popular prefeito – ele foi eleito com 100% dos votos em eleição suplementar com chapa única realizada em 2018, após as eleições de 2016 serem canceladas pelo TSE – foram recebidas com centenas de orações e desejos por sua melhora.
Alguns dos comentários no Facebook de Japonês também pediam para o perfeito ser sincero quanto ao uso do medicamento que, desde então, já causava polêmica sobre sua eficácia contra o Sars-CoV-2: a hidroxicloroquina. Ao ver uma foto em que o prefeito anunciava sua alta do hospital, de máscara e fazendo um positivo com o dedão, o cidadão vilhenense Cleiton Paulo perguntou: “Eduardo, meu prefeito, fala a verdade para mim, você tomou a tal cloroquina e outros remédios? Dá certo mesmo? deus abençoa você”.
Cleiton insistiu no questionamento em outra foto publicada por Japonês no dia seguinte: “Prefeito, quero saber se você tomou o remédio chamado cloroquina. É verdade ou mito? Estou de viagem não pude ver a sua entrevista, fala aí para nós que estamos vendo só nas redes sociais. Conta tudo, deus abençoa você”.
Embora Japonês não tenha respondido diretamente ao cidadão, o assunto foi abordado em uma reunião divulgada nas redes do prefeito no dia 30 de junho. Na ocasião, ele se reuniu com o secretário de saúde do município para a elaboração de um “novo protocolo municipal de entrega dos remédios para tratar as pessoas com suspeita ou confirmadas para o novo coronavírus”. Após anunciar sua recuperação completa, Japonês afirmou que acreditava ser “importante começar a tomar o kit de cloroquina, ivermectina e azitromicina” cerca de cinco dias depois da apresentação dos primeiros sintomas para “curar ou evitar agravamento da doença”.
Em entrevista concedida a um veículo regional, o político revelou que hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina compõem o “kit básico” contra a Covid, entregue a todos que testaram positivo e que recebem receita médica da Central de Atendimento à Covid-19. Os pacientes têm que assinar um termo de ciência e consentimento do Ministério da Saúde sobre os efeitos da hidroxicloroquina no organismo.
O post sobre o “kit Covid” no Facebook foi recebido com mais de 500 likes e uma centena de comentários agradecendo a Deus pela recuperação de Japonês e parabenizando-o pela decisão da distribuição do kit. O prefeito é candidato à reeleição e apontado como favorito no município, com 28,3% das intenções de voto, em pesquisa divulgada no dia 1º de outubro.
Tanto a hidroxicloroquina quanto a ivermectina não têm sua eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19 e seu uso para esse fim já foi descartado na maior parte do mundo. O uso da ivermectina – um vermífugo comumente usado para controle de piolhos – contra a Covid é fortemente desaconselhado, como afirma a Organização Mundial da Saúde em seu site.
Mesmo assim, entre junho e agosto deste ano, a Prefeitura Municipal de Vilhena abriu quatro licitações para compra de ambos os medicamentos. A Prefeitura gastou cerca de R$50 mil reais nas compras do vermífugo e cerca de R$40 mil nas compras de cloroquina, de acordo com os dados do Portal da Transparência.
Com cerca de 102 mil habitantes, Vilhena já contabiliza 72 óbitos por Covid-19 e mais de 3.700 casos, segundo informações da Secretaria de Saúde do município, que não respondeu às perguntas da reportagem sobre as regras do protocolo de tratamento da doença e o número de kits já entregues. O estado de Rondônia contabiliza 64 mil casos e 1.385 óbitos pelo vírus.
Está faltando cloroquina para doentes como Sueli
Em todas as postagens no Facebook a respeito do adoecimento e da recuperação do prefeito, entre diversos emojis de palmas, houve apenas um único comentário crítico. É de Sueli Souza Santos, dona de casa e portadora da Síndrome de Overlap, caracterizada pela sobreposição de doenças autoimunes, como lúpus, artrite e fenômeno de Raynaud.
Respeitosa, Sueli deseja proteção a toda a família do prefeito antes de anunciar que não consegue mais encontrar em Vilhena o principal medicamento para o tratamento de sua condição: a própria hidroxicloroquina. “Porém prefeito, me tira uma dúvida, onde conseguiu hidroxicloroquina? Preciso e não encontro na cidade, sou portadora de Overlap, necessito desse medicamento para sobreviver”, explica.
Dessa vez o prefeito respondeu. Disse que a hidroxicloroquina foi comprada pela Secretaria Municipal de Saúde com recursos próprios para o enfrentamento da pandemia. “Se o médico que atender o paciente com sintomas receitar o remédio, a pessoa recebe o medicamento lá na Central de Atendimento à Covid-19”, concluiu.
Sueli foi diagnosticada com a Síndrome de Overlap há dois anos e, desde então, toma 400mg diários de hidroxicloroquina para estabilizar o ataque ao seu sistema imunológico – medicamento que ela recebia através do Sistema Único de Saúde (SUS). Em entrevista à Agência Pública, ela conta que seus problemas começaram assim que o governo gederal intensificou a defesa da eficácia do medicamento para o combate da Covid-19, no mês de junho. Foi quando a Secretaria Municipal de Saúde de Vilhena anunciou que o remédio só seria encaminhado para hospitais.
A dona de casa deu início então a uma busca pela droga por conta própria nas farmácias particulares, pagando o alto custo de R$97 por uma caixa com cerca de 30 comprimidos, que duram um mês de tratamento. Ela conseguiu comprar o medicamento por dois meses mas, no terceiro, não o encontrava em nenhum lugar. Ao insistir no final de julho para a assistência farmacêutica do SUS, que antes a supria mensalmente, recebeu uma declaração constando a falta do medicamento.
“Quando começou a pandemia, cancelaram para a gente, até nas farmácias de manipulação não tínhamos acesso. Segundo eles, só poderiam mandar agora para hospitais. E no meu caso, de paciente autoimune, eu ia ficar sem, porque na farmácia para comprar não tinha”, contou. Sueli chegou a pedir para sua irmã manipular o medicamento em Curitiba, onde vive, e tentar entregar para ela. Por fim, a solução foi entrar com um processo na Defensoria Pública.
“Vinte e cinco dias depois já estavam mandando o remédio para mim, o remédio que até então diziam que não tinha”, afirma. Porém, foram 40 dias que Sueli passou sem seu tratamento. Ela conta que não conseguia levantar, de tanta dor que sentia.
“Dói o corpo inteiro, você fica em estado febril e fica de cama porque a dor é demais. Aí tive que tomar remédios fortes, como o tramal”, lembra. Sueli sabe que não foi a única a sofrer com a falta do remédio. Ela visita a capital Porto Velho, distante dez horas e 705km de Vilhena, mensalmente, para tratamento de pulsação venosa. Lá, conta que encontrou outros portadores de doenças autoimunes: “Todo mundo estava com esse problema”.
Na mesma época em que Sueli alcançava seu recorde de tempo resistindo à sua condição com a ausência de tratamento, em outra parte de Vilhena, a empregada doméstica Nilva Machado de Souza, 42 anos, era diagnosticada com a Covid-19.
Ela já sentia uma forte dor de cabeça havia cerca de dez dias, desde 22 de julho, quando testou positivo para o vírus no Hospital Regional de Vilhena. Após responder algumas perguntas sobre seus hábitos e medicamentos de uso contínuo, Nilva voltou para casa com três comprimidos de hidroxicloroquina e três de ivermectina.
“Senti uma dor de cabeça insuportável, que nunca tinha tido, e muita fraqueza na primeira semana com a doença, às vezes eu me levantava e já logo tinha que deitar. Daí tomei por três dias a cloroquina e a ivermectina e depois de um tempo melhorei, graças a Deus”, conta a empregada doméstica. Nilva sabe que contraiu a doença trabalhando. A dona da casa onde trabalha é enfermeira no próprio hospital de Vilhena e pegou Covid após se expor ao novo coronavírus na UTI. “Eles têm um bebezinho que também pegou. A gente beija muito ele, e todo mundo acabou pegando”.
A família para quem trabalha melhorou da doença, e, após duas semanas de resguardo na casa que divide com seus dois filhos adultos, Nilva se sentiu melhor e voltou a trabalhar. “Quando começou a pandemia, até me falaram para eu ficar em casa, mas não quis. Tomei todas as precauções e pensei que, se fosse para pegar a doença, ia pegar em casa ou no trabalho”.
Desde então, Nilva não teve mais contato com qualquer profissional da saúde. Quando realizou o teste para a Covid, ela chegou a pedir um raio-X para checar uma forte dor nos rins que estava sentindo. “A médica falou que primeiro eu tinha que me tratar da Covid e que a dor nos rins não era grave”, diz.
Nilva acredita que “praticamente todo mundo” que contraiu o vírus em Vilhena tomou hidroxicloroquina. Seus patrões tomaram, assim como a família deles. A prima de Nilva, que também é enfermeira no hospital, chegou a ser internada em estado grave com a doença, utilizando o respirador por dias, e também tomou o medicamento. “Aqui a cloroquina ajudou bastante”, opina.
Apesar da popularidade que o medicamento alcançou nos últimos meses, uma paciente que conhece muito bem o remédio, Sueli, não aconselha o uso da hidroxicloroquina “aleatoriamente”. “É um remédio perigoso”, diz. Ela conta que sofre com alguns dos efeitos colaterais mais comuns atribuídos ao medicamento. “Em relação ao coração, eu era normal, e minha pressão sempre foi baixa. Desde fevereiro comecei a sentir o coração acelerar e fiz um ecocardiograma. Este mês comecei a fazer tratamento com o cardiologista, porque estou com arritmia”, diz.
A hidroxicloroquina é contraindicada principalmente para pacientes cardíacos, justamente por aumentar o risco de arritmia. O efeito colateral tem sido um dos principais argumentos contra o uso do medicamento para combate à Covid-19. Outro efeito colateral grave, de acordo com a bula de uma de suas principais marcas, o Reuquinol, são distúrbios oculares que causam “visão borrada”.
“Depois que comecei a tomar a hidroxicloroquina com os corticóides, comecei a ter a vista embaçada. Vai fazer um ano que fiz cirurgia para catarata nos dois olhos e já estou com a visão embaçada novamente. Perguntei para a minha médica e ela disse que a cloroquina dá isso mesmo”, conta Sueli.
Devido aos efeitos colaterais, Sueli tentou dissuadir familiares que também pegaram o remédio nos postos de saúde de Vilhena, mas não teve sucesso. E a própria Sueli se infectou com a Covid-19 e recebeu o kit. “Passei no posto de saúde e me deram o kit com azitromicina, ivermectina e dipirona. Não me deram a hidroxicloroquina porque eu já tomava diariamente”, explica.
Ela chegou na unidade de saúde com sintomas de dor de cabeça e falta de ar e ganhou o kit sem nem mesmo precisar fazer o teste da doença. “Se a hidroxicloroquina prevenisse, combatesse ou protegesse, eu não teria pegado, porque já tomo doses diárias há muito tempo”, conclui.