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Cidade do litoral de São Paulo utiliza medicamentos sem eficácia comprovada contra o coronavírus; protocolo começou restrito e foi ampliado para pessoas com sintomas leves

Reportagem
13 de outubro de 2020
12:03
Este artigo tem mais de 3 ano

No início da pandemia, Márcia*, professora em São Sebastião, no litoral paulista, estava desesperada com a possibilidade de contrair a Covid-19. O home office e o isolamento quase total – ela conta que só saía de casa para ir ao mercado – aumentaram a proteção, mas não foram suficientes para afastar o vírus. Em julho, ela começou a apresentar os primeiros sintomas de gripe, como cansaço e o corpo febril. Quando, no quinto dia, parou de sentir qualquer cheiro ou gosto, decidiu entrar em contato com o atendimento médico virtual do município para casos suspeitos de Covid-19, via Whatsapp. 

Após dois dias de acompanhamento no sistema da prefeitura, ela contou ao médico que estava bem, mas se sentindo um pouco ofegante. A sugestão do plantonista com quem conversou a deixou assustada. “Ele disse para eu procurar o posto de saúde e pedir para tomar a hidroxicloroquina. Nesse momento, parei a conversa porque achei estranho”, narra.

No dia seguinte, Márcia comentou com o médico que não estava sentindo falta de ar, apenas cansaço ao respirar. “Ele repetiu que eu deveria começar a tomar a medicação o quanto antes. O que mais me assustou é que, em nenhum momento, ele pediu para que eu fosse ao posto primeiro para ser examinada. Pediu para que eu fosse direto solicitar a medicação e tomar com urgência. Não dei tantos detalhes assim para ele me indicar diretamente [a hidroxicloroquina], então imagino que estava seguindo algum protocolo”, opina.

O medo de que fosse, de alguma forma, pressionada a tomar o medicamento afastou Márcia do pronto socorro. “Depois de ver muitos médicos na televisão avisando sobre os riscos da cloroquina, fiquei assustada. Alguns diziam que não tinham dados científicos que comprovassem que ela ajuda no tratamento da Covid, e, no pior dos casos, podia causar efeitos adversos no paciente. Então não fui ao posto, fiquei com medo de exigirem que eu tomasse a medicação”, afirma. Em entrevista à Agência Pública, o prefeito de São Sebastião Felipe Augusto (PSDB-SP) disse que não tem conhecimento do caso de Márcia por não se tratar de um relato oficial, mas garantiu que orientações foram dadas aos médicos sobre como agir em relação à pandemia. 

O uso da hidroxicloroquina contra a Covid-19 tem sido defendido por políticos mundo afora: a história começou em março com o presidente norte-americano Donald Trump, que pouco tempo depois a abandonou – prova disso é que, no início deste mês, quando teve a Covid-19, não foi tratado com o medicamento. No Brasil, o grande garoto-propaganda é o presidente Jair Bolsonaro, que segue firmemente empunhando essa bandeira. No fim de maio, o Ministério da Saúde lançou um protocolo que orienta o uso do fármaco em pacientes no estágio inicial da doença.

No entanto, tanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) como associações médicas nacionais se opõem ao uso da hidroxicloroquina para o coronavírus. Em julho, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) emitiu uma nota em que diz ser  “urgente e necessário” que o remédio seja abandonado no tratamento de “qualquer fase da Covid-19”. O posicionamento se deve ao fato de que os estudos realizados até hoje não identificaram benefícios clínicos da hidroxicloroquina para pacientes com a doença.

UPA no centro de São Sebastião funciona como ponto de atendimento a pessoas que apresentam sintomas de Covid-19

Protocolo começou tímido e foi ampliado

A suspeita da professora sobre a atitude do plantonista tem base na realidade. A indicação da hidroxicloroquina para tratamento precoce da Covid-19 faz parte do protocolo adotado pelo município, como explica o médico hematologista Leonel Nulman Szterling, diretor clínico do Hospital de Clínicas de São Sebastião. 

“Nosso primeiro protocolo incluía o uso de determinadas drogas, como a hidroxicloroquina, apenas nos doentes já em fase um pouco avançada. Após os primeiros meses, começamos a ler opiniões de médicos e casos de outros municípios, estados e países e, apesar de a grande mídia e alguns atores não aprovarem o tratamento precoce com essas drogas, redesenhamos o protocolo médico”, explica Szterling, integrante do comitê criado pela prefeitura para elaboração das estratégias de combate à Covid-19 em São Sebastião. 

Se antes a aplicação da hidroxicloroquina era focada em pessoas a partir de 50 anos, com comorbidades, ou em pacientes acima de 65, com ou sem fatores de risco, desde 1º de julho o município orienta a prescrição do medicamento para “pacientes com sintomas leves que levantam qualquer suspeita”, de acordo com ele. Os médicos, porém, têm autonomia para receitar ou não – todas as unidades de saúde da cidade dispõem da medicação.

Prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto diz que hidroxicloroquina e outros medicamentos ajudaram a frear a pandemia na cidade

Szterling conta que São Sebastião recebeu uma doação de “alguns milhares de comprimidos” do laboratório Apsen, fabricante do Reuquinol, principal marca da hidroxicloroquina no Brasil. Assim começou o tratamento precoce da população da cidade, com o medicamento associado ao antibiótico azitromicina – combinação prevista nas diretrizes expedidas pelo Ministério da Saúde. 

Em agosto, o comitê desenhou um protocolo para o uso do vermífugo e antiparasitário ivermectina, que também não tem eficácia comprovada contra a Covid-19, e que, como a hidroxicloroquina, foi contraindicado pela OMS. No início, de acordo com Szterling, o medicamento era receitado como estratégia de prevenção apenas para os funcionários do Hospital de Clínicas, mas depois seu uso foi expandido para o resto da população.

A falta de comprovação científica da eficácia das drogas não incomoda o médico, que acredita que os órgãos da imprensa criticam o medicamento por oposição política ao presidente Jair Bolsonaro. Para Szterling, é impossível produzir um estudo que comprove cientificamente o efeito de qualquer medicamento contra a Covid-19 no meio de uma pandemia. “Qualquer estudo científico leva meses ou anos para ter sua publicação”, afirma. 

“Prefeitos ficaram à própria sorte”

Ao receber a Pública em seu gabinete no início de outubro, o próprio prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB-SP), revelou não ter “entrado no debate” sobre a hidroxicloroquina exatamente por considerar que não há um “posicionamento científico claro” sobre a questão. Realmente, ele não costuma defender a droga em entrevistas à imprensa. No entanto, o assunto foi bastante abordado nas lives semanais que passou a promover para falar sobre as ações de combate ao vírus na cidade. Na transmissão do último dia 8, ele informou que 5 mil cápsulas de hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina já haviam sido distribuídas na rede municipal de saúde.

No domingo (11), ele anunciou em seu Facebook que está com suspeita de Covid-19. “Já estou em quarentena domiciliar e sob o protocolo do Ministério da Saúde, tomando hidroxicloroquina e o antibiótico azitromicina”, escreveu. Aos 44 anos, o prefeito concorre à reeleição.

Mesmo reconhecendo a falta de evidência científica, ele é taxativo: pela experiência de São Sebastião, a hidroxicloroquina “funciona”. “O número de casos desabou e muito se deu em função dessas medicações. E o estancar dos óbitos também foi importante pela utilização dessas medicações, tanto nos casos ativos internados quanto nos casos ativos em recuperação domiciliar.” Até 8 de outubro, segundo dados do Ministério da Saúde, São Sebastião somava 1.571 casos confirmados e 41 óbitos por Covid-19, uma média de 46 mortes a cada 100 mil habitantes, abaixo das taxas brasileira (70 por 100 mil) e paulista (80 por 100 mil). 

Até 8 de outubro, segundo dados do Ministério da Saúde, São Sebastião tinha uma média de 46 mortes a cada 100 mil habitantes, abaixo das taxas brasileira (70 por 100 mil) e paulista (80 por 100 mil)

Mas o próprio Augusto também atribui a atual situação da pandemia na cidade a outro fator, que considera importante. “São Sebastião, durante toda a pandemia, teve alta taxa de isolamento social. Se houve essa adesão ao isolamento, isso também ajudou que não houvesse um contágio ainda maior e o número de óbitos crescendo na mesma proporção.” De fato, o município se destacou nesse quesito e até hoje tem a maior taxa de isolamento (51%) em todo o estado. O ápice foi atingido no começo da quarenta, em 4 de abril, quando 75% da população de São Sebastião estava em casa. Para se ter uma ideia, a capital São Paulo nunca ultrapassou o patamar dos 59%.

O político ainda afirma que, pela falta de coordenação dos governos federal e estadual no enfrentamento à pandemia, “os prefeitos ficaram literalmente à própria sorte”. “E aí tiveram que contar com os seus corpos técnicos e médicos, que tomaram as decisões. Os prefeitos assumiram o risco, isso é fato”, afirma, referindo-se à adoção da hidroxicloroquina. “Mas é compreensível, você está no meio de uma pandemia, o mundo está perdido e não chega a um consenso em nada. Um fala que a cloroquina é ruim, o outro fala que é bom, são divergências o tempo todo.”

Para o médico do Hospital das Clínicas de São Paulo Evaldo Stanislau, diretor da Sociedade Paulista de Infectologia, o “risco” assumido por São Sebastião e muitos outros municípios e estados brasileiros não é justificável. Ele concorda que o Ministério da Saúde falhou em seu papel de liderar nacionalmente o combate ao coronavírus, o que dificultou a situação de gestores municipais, mas argumenta que havia outras fontes confiáveis nas quais era possível basear. “Se eu preciso de uma evidência, recorro à sociedade – às Sociedades Brasileiras de Infectologia, de Pneumologia, de Terapia Intensiva. A Sociedade Paulista de Infectologia, por exemplo, tem em seu site uma série de aulas que fizemos sobre o tema”, aponta.

Sobre a conclusão de que os casos e mortes pelo coronavírus caíram devido às medicações, ele diz que é um “argumento enviesado e falacioso”. Em sua análise, a queda dos óbitos entre pacientes internados e hospitalizados é decorrente “dos avanços de conhecimento da doença e de como a gente trata“. “Nós, médicos, aprendemos a tratar melhor a Covid. A gente usa hoje anticoagulantes e anti-inflamatórios de uma maneira mais adequada e precisa, conseguimos identificar os sinais de complicação mais precocemente, estamos fazendo intervenções mais pontuais e precoces. A gente entendeu os mecanismos de ventilação mais ajustados para os pacientes, estamos sendo menos invasivos – antes, a gente intubava mais precocemente e isso traz complicações”, explica. 

Felipe Augusto passou a fazer lives durante a pandemia, nas quais muitas vezes se fala sobre o tratamento com hidroxicloroquina contra a Covid-19

Efeitos colaterais

Uma das grandes preocupações dos especialistas em relação à administração da hidroxicloroquina para tratar a Covid-19 são os efeitos colaterais que ela pode causar. A paciente Vitória* sentiu na pele alguns deles. No final de agosto, ela visitou uma UBS em São Sebastião apresentando enjoo e dores no corpo e suspeitando estar com Covid-19. Saiu do posto levando um kit com azitromicina, e, após alguns dias sem melhoras, voltou à unidade, onde receitaram a ela a hidroxicloroquina. Foi então que seus sintomas se diversificaram, sem que os anteriores desaparecessem.

“Senti muita dor na barriga e ânsia de vômito. Além disso, comecei a ter muita acne na pele e meu cabelo começou a cair”, conta. Vitória tomou a hidroxicloroquina durante seis dias, mas diz que sente o gosto do remédio até hoje. O pior efeito que apresentou após o início do tratamento com o medicamento, no entanto, foi um quadro depressivo. 

Os sintomas depressivos que vem sentindo desde agosto ficaram tão graves que Vitória contou que tinha que se convencer diariamente a continuar lutando pelo tratamento. Ela escreveu “coragem” em caneta na parede de seu quarto, como um estímulo para seguir em frente, e, embaixo da palavra, colou as etiquetas dos medicamentos que tomou. Vitória não sabe se a piora no seu estado de saúde foi resultado da própria Covid-19 ou da hidroxicloroquina. Na bula da medicação, entretanto, a perda de cabelo (alopécia) está presente entre os efeitos colaterais, apontada como adversidade “incomum.” Já a labilidade emocional (mudança rápida de humor) é apresentada como reação adversa comum para quem toma o medicamento. 

Vitória desenvolveu depressão depois de ter Covid-19 e se tratar com hidroxicloroquina e azitromicina. Escreveu “coragem” na parede do quarto como um estímulo para seguir em frente

Já a cuidadora de idosos Priscila Stucker, de 39 anos, sofreu um sério efeito colateral, segundo seu médico, por causa de outro medicamento utilizado em São Sebastião para o tratamento precoce da Covid-19. Portadora de angina, doença cardíaca, e de artrose degenerativa do fêmur, ela teve os primeiros sintomas de Covid-19 em meados de agosto. Por representar um caso de alto risco devido às suas comorbidades, logo foi medicada no Hospital de Clínicas, onde costuma trabalhar de forma autônoma. 

Sabendo de seu quadro cardíaco, a médica que atendeu Priscila não lhe receitou a hidroxicloroquina, já que um dos efeitos colaterais mais comuns do remédio é arritmia. A cuidadora de idosos foi para casa com uma receita de azitromicina em mãos e, logo após iniciar o tratamento, começou a sentir muita dor nas panturrilhas. “No segundo dia eu não conseguia nem pôr os pés no chão mais, eles ficavam azulados, parecia que minha perna estava quebrada. Voltei para o pronto atendimento e fui encaminhada com urgência para um médico vascular. Ele disse que eu não podia ter tomado a azitromicina, que em quem tem angina ela pode causar embolia [pulmonar]”, explica. 

Priscila sofreu uma trombose e desde então tem que usar meias de compressão. “Vou ter que usar para sempre”, conta. Apesar do ocorrido, ela afirma ter sido tratada de forma “decente e humana” pelos médicos do hospital. 

Infografista: ,

*As identidades verdadeiras foram protegidas a pedido das entrevistadas

Colaborou Raphaela Ribeiro

Anna Beatriz Anjos/Agência Pública
Reprodução/Facebook
Bruno Fonseca/Agência Pública
Reprodução/Facebook
Arquivo pessoal

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