Baía de Guanabara: Patrimônio da Humanidade e cartão-postal do Rio de Janeiro. Ali, no noroeste do seu espelho d’água, em um pequeno afluente conhecido como rio Roncador, uma fileira de canos longos sai das casinhas de tijolo vermelho que beiram a margem.
O pescador Alaildo Malafaia pede para a sua vizinha ligar a torneira da cozinha. Do lado de fora, ele assiste à água fazer o percurso de sempre. Levando a sujeira das louças empilhadas dentro da pia, entra pelo ralo da cozinha e sai do lado de fora, por um cano grosso de cimento que direciona os dejetos direto para o rio.
O rio Roncador, que deságua na baía de Guanabara, está localizado no município de Magé, no Rio de Janeiro. Hoje, não existe tratamento de esgoto em todo o município.
Mas o Roncador não é o único que direciona a poluição para dentro da baía de Guanabara; são 18 mil litros de esgoto não tratado por segundo.
Segundo dados levantados pela engenheira Eloísa Torres, 76% do esgoto do estado do Rio de Janeiro é despejado in natura; apenas 24% dos dejetos que chegam ali recebem tratamento.
“A gente vê em pleno século 21 pessoas lavando louça em um rio onde cai esgoto in natura. A gente se sente sem força nenhuma, a gente fala, reclama, mas ninguém atende”, diz Alaildo.
Do outro lado da baía, as casas nas margens do rio Iguaçu, no município de Duque de Caxias, também não têm o seu esgoto tratado. Os moradores são testemunhas das consequências desse arranjo insalubre. A rede de esgoto improvisada por eles entope toda vez que a maré sobe ou cai um temporal e devolve todos os dejetos para dentro das casas. Com ela, voltam ratos e baratas, que trazem o risco de doenças como leptospirose.
“Vem pelo esgoto, enche o banheiro sai no ralo do banheiro, o boxe vai enchendo”, explica a moradora e agente de saúde comunitária Ana Lúcia Alves de Souza. “A gente tem um problema muito sério de animais. É muito rato, barata. Passa por dentro da rede de esgoto e vai pra dentro das casas”, diz.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a falta de saneamento é uma das principais causas da mortalidade infantil. O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP) adverte que, no Brasil, a falta de saneamento faz proliferar o vírus da zika.
De quem é a culpa?
Foram 22 anos de investimentos e mais de R$ 3 bilhões gastos em programas de grande porte que tinham como objetivo despoluir a baía de Guanabara.
Criado em 1993, o primeiro foi o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), conduzido pelo governo estadual. Contou com empréstimos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica), que somaram na época R$ 2,5 bilhões.
No entanto, segundo um relatório do Artigo 19, ONG que atua na área de transparência e liberdade de expressão, o PDBG deixou uma dívida de R$ 1,19 bilhão.
O projeto foi assinado em 1994 pelo então governador Leonel Brizola (PDT). O próprio governador ficou responsável por coordenar o Grupo Executivo da Despoluição da Baía de Guanabara (Gedeg), que serviria de ponte direta com as fontes financiadoras. Segundo o livro Baía de Guanabara, descaso e resistência, de Emanuel Alencar, o projeto já começou com o pé errado. Embora os contratos tenham sido assinados, as obras só começaram um ano depois, já na gestão de Marcello Alencar (PSDB), que governou o Rio até dezembro de 1998.
O PDBG deixou para trás sérios problemas estruturais. Grandes estações de tratamento de esgoto foram construídas com o dinheiro do programa, mas hoje todas funcionam abaixo da capacidade.
A razão? As obras dos troncos coletores, que levariam o esgoto domiciliar até as estações, nunca foram concluídas. Durante os 12 anos de duração do programa, apenas 56,87% dos troncos previstos foram feitos de fato.
“Essas obras têm uma série de problemas”, diz a geógrafa Ana Lúcia Britto, doutora em planejamento urbano que trabalha na área de saneamento desde 1997. “Você contrata uma obra com uma empresa, a empresa terceiriza, aquela terceiriza para outra e você tem uma dificuldade muito grande de controle dessa obra.”
Ana Lúcia responsabiliza o governo fluminense pela falta dos troncos coletores. Segundo ela, as estações de tratamento de esgoto foram financiadas com capital estrangeiro, mas era o governo do estado, em parceria com os governos municipais, que construiria a rede coletora. Os recursos seriam aportados pelo Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano (Fecam). “Foi uma opção do programa deixar as redes de coleta por conta da contrapartida do governo do estado. Na realidade, você tem estação de tratamento de esgoto e não tem rede de coleta”, diz.
O PDBG está sendo investigado agora no Ministério Público Federal (MPF). O órgão informou que o objetivo do inquérito civil em andamento é apurar possíveis irregularidades referentes à implementação do programa e investigar especialmente a construção das redes de esgoto – ou a falta dela. O MPF requisitou informações sobre o caso à Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), que opera as estações de tratamento. A Cedae pediu prorrogação do prazo para resposta e tem até o fim de maio.
A promessa da Olimpíada
Em 2011, quando a Olimpíada do Rio já era uma realidade no horizonte, um novo programa de despoluição, batizado de Programa de Saneamento Ambiental dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara (PSAM), recebeu mais um voto de confiança do BID e R$1,1 bilhão para resolver os problemas herdados pelo programa anterior. O financiamento foi aprovado pelo governador Sérgio Cabral (PMDB), hoje preso pela Operação Lava Jato. O ex-governador prometeu repetidas vezes que este seria o maior legados dos jogos: reduzir em 80% a poluição da baía até 2016.
A promessa não foi cumprida.
Embora o programa não tenha sido oficialmente descontinuado até hoje, ele caminha a passos lentos, e as obras que eram previstas para 2018 não foram finalizadas – entre elas, as obras do Sistema de Esgotamento Sanitário de Alcântara, em São Gonçalo, e a obra da Estação de Tratamento de Esgoto de Pavuna.
Mas o governo do Estado não é o único responsável. Quase todos os municípios no entorno da baía de Guanabara, com exceção de Niterói, delegam a gestão do saneamento no Rio de Janeiro para a Cedae, a companhia estadual de saneamento. “A Cedae tem uma dívida muito grande com a população, ela tem um problema de descontinuidade de obras seríssimo”, diz Ana Lúcia. “Eu acho que tem uma má gestão da companhia. E junto tem uma desresponsabilização dos municípios que não assumem o seu papel de titular de serviço.”
A empresa de tratamento de esgoto que não trata
Hoje a Cedae gerencia a operação de 15 estações de tratamento no entorno da baía de Guanabara, mas juntas elas tratam apenas 34% do planejado.
“A Cedae sempre foi uma empresa ineficiente. Nunca investiu em saneamento. Tudo que foi investido nessas estações e nessas redes foi com recurso do Fecam, não com recursos próprios da Cedae”, diz o deputado estadual Carlos Minc (PSB), ex-ministro e ex-secretário estadual do Meio Ambiente
Uma das obras mais emblemáticas é a do coletor-tronco Cidade Nova. O investimento inicial foi de R$ 81 milhões. Em julho de 2014, um comunicado do governo do estado afirmava que só com a conclusão dessa obra “a baía de Guanabara deixaria de receber 216 milhões de litros de esgoto in natura por dia, o equivalente a 90 piscinas olímpicas”. Faltavam dois anos para os Jogos Olímpicos do Rio, por isso a parábola esportiva.
Em nota enviada à Pública, a Cedae informou que a obra, cuja conclusão estava prevista para dezembro de 2018, não será entregue – e se desresponsabilizou pela quebra de mais essa promessa.
Segundo a nota, a ampliação da estação de tratamento de Alegria “foi declarada deserta por falta de empresas interessadas em participar do certame licitatório”. A empresa acrescenta ainda que “devido à crise financeira do Estado” não foi possível captar recursos públicos para terminar a obra e que “no presente momento, está sendo estudada pela CEDAE nova fonte de recursos, de origem do Governo Federal”.
Esse jogo de empurra e a insistência em colocar a culpa na crise financeira é uma das principais razões pelas quais a situação do saneamento no Rio permanece na inércia.
Para Carlos Minc, faltou também uma articulação maior entre os diversos responsáveis pela implementação dos programas de despoluição da baía.
“A gente não conseguiu fazer uma autoridade única da baía. Os países que conseguiram resolver problemas de baías poluídas criaram uma autoridade que envolvesse as indústrias, as prefeituras, o governo, os empresários, o governo federal também. Isso aqui foi uma guerra”, diz.
Segundo o ex-ministro, “nós tínhamos uma empresa [a Cedae] que não funcionava direito, os municípios que não trabalhavam em conjunto, não havia uma autoridade de bacia única e não havia parcerias público-privadas, que são necessárias, porque a gente está falando de recursos muito grandes para cobrir 50 anos de falta de saneamento”.
Injustiça ambiental
A obra inacabada do tronco coletor Cidade Nova fazia parte de um projeto de ampliação da estação de Alegria, que fica no Caju, bairro da zona portuária da capital. Recebendo o esgoto de 785 mil pessoas, Alegria é uma das maiores estações de tratamento do Brasil.
O projeto de ampliação previa a construção do Faria-Timbó, uma rede de troncos coletores que aumentaria a coleta para as favelas da Maré, Alemão, Manguinhos e Jacaré.
Enquanto as obras do Faria-Timbó permanecem inacabadas, a estação de Alegria coleta os esgotos de São Cristóvão, do centro da cidade e da Tijuca, áreas frequentadas pela classe média carioca – onde os troncos coletores, sim, foram construídos. Pesquisadores acreditam que existiu um recorte social na decisão.
“As principais veias que recolhem exatamente das favelas, aquelas áreas com maior vulnerabilidade socioambiental, não foram executadas”, diz Alexandre Pessoa, engenheiro especialista em saneamento e pesquisador na Fundação Oswaldo Cruz. “A tubulação para exatamente quando chega na favela. Nós entendemos isso como um problema de justiça ambiental.”
Quem sente na pele as consequências é a população de baixa renda. Hoje, em cinco dos dez municípios localizados no entorno, menos de 4% da população tem o seu esgoto tratado.
O pescador Alaildo Malafaia sente o descaso duplamente: como morador e como usuário da baía. “Eu sou nascido e criado na beira do rio e tive a felicidade de ver esse rio com água transparente, com água de cachoeira. Hoje ele já não é mais assim”, diz.
“Mas a gente poderia voltar a ver o fundo do rio”, acredita. Vendo a falta de interesse do poder público, Alaildo Malafaia decidiu se envolver com projetos de conservação ambiental.
Hoje, ele dedica a sua vida à restauração de manguezais dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim. Localizada no noroeste da baía de Guanabara, abarca 60 km2 do último reduto de manguezal do estado.
“Eu trabalhei dentro do manguezal a vida toda catando caranguejo e tinha uma visão que era um monte de lama e mosquito. E hoje eu sei que 60% da vida marinha depende do manguezal para sobreviver”, diz. “Pescador artesanal desenvolvendo metodologia é coisa que a gente se sente muito orgulhoso.”
Em uma luta constante pela baía onde cresceram, Malafaia e outros colegas parecem enfrentar sozinhos os estragos causados pela ineficácia do poder público. “O pescador é o símbolo da baía, porque, quando os europeus chegaram, os índios já pescavam. Hoje pescador é símbolo de resistência, que não era pra ser. Eu e pescadores mais antigos preferimos que nossos filhos não virassem pescador porque é uma luta desigual: o pescador contra a poluição.”
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