“Põe na boca essa água aí”, desafia Paulo Sérgio de Moraes Alves, 34 anos, presidente da Isca (Instituição Sócio-Comunitária da Agrovila), a associação dos moradores da agrovila Gameleira. Obedeço e a língua enrola. A água é sal puro. “Agora você imagina ficar tomando banho com essa água, macho. A pele seca, cheia de ferida. Tem criança que já ficou doente”, protesta Paulo Sérgio.
A revolta é maior porque foi por causa de uma obra de combate à seca que pessoas como Paulo Sérgio perderam, além de suas casas, o acesso à água potável e à luz que tinham antes do reassentamento. Há quase quatro anos – período que coincide com uma seca histórica no Ceará – os moradores foram expulsos de casa e reassentados para dar lugar ao açude Gameleira, localizado na divisa entre as áreas rurais dos municípios de Trairi, Itapipoca e Tururu – distante 150 km da capital, Fortaleza. “Antigamente, a gente morava na beira do rio. Mesmo na época da seca, se o rio secava, dava pra cavar cacimba. Dava pra se adaptar. Aqui a gente tem que ficar usando essa água salgada”, explica Paulo Sérgio.
O Gameleira foi um dos cinco açudes construídos na segunda etapa do PROGERIRH (Projeto de Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos do Estado do Ceará), uma parceria do governo cearense com o Banco Mundial, que há mais de vinte anos realizam juntos programas de combate à seca no estado. Na primeira etapa do PROGERIRH, em 2000, o Banco Mundial emprestou US$ 136 milhões ao governo do Ceará. Nessa segunda etapa, iniciada em 2008, o banco destinou US$ 103 milhões para o programa.
Para a construção do açude Gameleira foram R$ 40 milhões (R$ 18 milhões financiados pelo Banco Mundial e o restante, pelo estado do Ceará, segundo o governo estadual). Das 180 famílias atingidas pela obra, de acordo com dados da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), 91 moravam no local e perderam pelo menos uma parte de suas terras – muitos perderam toda a propriedade. Quase quatro anos depois, a única água a que eles têm acesso é a do poço que o morador me fez provar.
Há um dessalinizador, mas só é possível tirar o sal de cerca de 25% da água utilizada por dia. “Senão, acaba com o motorzinho do poço, que já tá dando problema”, diz Paulo Sérgio. A comunidade foi obrigada a estabelecer um rodízio: cada família tem direito a 36 litros de água para seu consumo diário (segundo a ONU, a quantidade necessária para uma pessoa é 110 litros por dia) e há famílias com mais de dez pessoas. A valiosa água sem sal é usada para beber e cozinhar. O resto é feito com a água salgada mesmo. “O sal gasta o sabão todo. Vai uma barra de sabão aqui pra lavar uma roupa. Essa é a água que tem pra gente”, diz a agricultora Maria Gorete Rodrigues de Souza, de 48 anos.
As condições oferecidas à comunidade para o reassentamento na agrovila de Gameleira ferem frontalmente as salvaguardas obrigatórias do Banco Mundial, estabelecidas para reduzir impactos socioambientais e econômicos sobre as comunidades atingidas pelos projetos de desenvolvimento que financia. Entre elas está a Diretriz Operacional 4.30, criada em 1º de junho de 1990, que exige “atenção especial aos grupos mais pobres que serão reassentados” e determina: “Todo reassentamento involuntário deve ser concebido e executado como um programa de desenvolvimento que proporcione à população reassentada oportunidades e recursos suficientes para participar dos benefícios do projeto”.
A mesma diretriz especifica que o reassentamento “deve garantir recursos suficientes para alojamento, infraestrutura (abastecimento de água, caminhos de acesso) e serviços sociais (escolas, centros de atenção sanitária)”. De acordo com levantamento feito pelo ICIJ, entre 2004 e 2013 pelo menos 10.094 brasileiros sofreram impactos negativos de projetos financiados pelo Banco Mundial, seja por terem perdido suas casas, terras ou empregos. Especificamente nos projetos de combate à seca no Ceará implementados desde o início dos anos 1990, as obras financiadas pelo banco atingiram 4.625 famílias. E, como provam os reassentados de Gameleira, nem sempre as salvaguardas foram cumpridas.
O açude Gameleira e o Banco Mundial no Ceará
Desde os anos 1990, o Banco Mundial financia programas no Ceará como o PROURB (Projeto de Desenvolvimento Urbano e Gestão de Recursos Hídricos), seguido pelas duas etapas do PROGERIRH nas décadas seguintes. O objetivo é fomentar o desenvolvimento da infraestrutura hídrica no Ceará (com a construção de açudes, adutoras e eixos de integração entre bacias hidrográficas) e a formação de um corpo técnico para gerir o sistema, que deve destinar água ao abastecimento humano e ao desenvolvimento econômico.
Os projetos se ancoram – ou deveriam se ancorar – não apenas nas obras, mas na eficiência de gestão de recursos hídricos, como explica o professor de engenharia hidráulica e ambiental da Universidade Federal do Ceará Francisco Assis de Souza Filho, ex-gerente de Planejamento Técnico da COGERH (Companhia de Gestão de Recursos Hídricos) e responsável pela coordenação técnica dos projetos do Banco Mundial na primeira fase do PROGERIRH, e em programas mais antigos como o Prourb e Proágua. “O investimento mais intensivo é na construção de infraestrutura. Mas também há uma lógica constante de promoção do gerenciamento dos recursos hídricos, principalmente a partir da criação de um arcabouço institucional, jurídico e organizacional. O que transparece nos projetos do Banco Mundial é que, no longo prazo, essa capacidade institucional de gerir os recursos hídricos é que vai fazer a diferença”, afirma. Segundo ele, o Ceará é hoje um modelo de gestão hídrica no semiárido. Uma afirmação dificilmente aceitável pelos moradores de Gameleira.
A lei brasileira que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (9.433, de 8 de janeiro de 1997) estabelece que: “em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais”. Mas é a falta de democratização do acesso à água o principal problema da gestão de recursos hídricos no Ceará, segundo ONGs e movimentos sociais locais. Marcos Vinicius Oliveira, presidente da ONG Esplar (Centro de Pesquisa e Assessoria), que desde 1974 atua no apoio à agroecologia e à agricultura familiar no estado, explica: “A água para o agronegócio deveria ser sobretaxada, hoje ela é quase de graça. Os grandes reservatórios não deveriam ter sido feitos; deveriam ter sido feitos mais reservatórios médios ao longo da bacia para facilitar o acesso a essa água para as comunidades”.
O resultado é que “aqueles que efetivamente mais sofrem com a seca”, as famílias que moram em área rural e representam mais de 50% da população do Nordeste, não têm acesso à água, como afirma Cristina Nascimento, da ASA (Articulação pelo Semiárido Brasileiro), uma rede de organizações da sociedade civil. “A água está concentrada e não chega a esses lugares. Nós precisamos debater a democratização no acesso a essa água”, diz Cristina.
“A convivência com o semiárido demanda a garantia de água em essencial para as famílias que moram em áreas mais distantes, na zona rural. A cidade também precisa de água, mas nem sempre essas obras são pensadas de uma forma verdadeiramente planejada na perspectiva de chegar a todos”, ela explica, citando o caso do açude Gameleira, que fica no meio de uma área rural e deixou a população à míngua. “Esse açude foi concluído no ano de 2013, em plena seca, e estocou uma boa quantidade de água [que] está servindo para a área urbana de Itapipoca, o que também é importante. Mas ainda não tem um projeto executado – há a perspectiva de ter, mas não foi efetivado – de uma adutora que leve água para as famílias rurais. As obras precisam ser pensadas também nessa perspectiva das famílias que lá vivem”, diz.
Água encanada só no papel
Nem todos os moradores que hoje vivem na Gameleira foram reassentados na agrovila. Para lá foram as famílias mais pobres atingidas pelo açude: os agricultores que moravam em propriedades alheias sem benfeitorias (obras), ou com benfeitorias avaliadas em menos de R$ 5 mil pela SRH (o teto é R$ 12 mil no caso dos proprietários que tiveram mais de dois terços de seus terrenos alagados). A atenção especial “para os mais pobres”, porém, exigida pelas salvaguardas do Banco Mundial, não garantiu nem os direitos humanos essenciais desses moradores vizinhos à obra. Por sua vez, as obras do Gameleira ainda não foram totalmente concluídas, embora as primeiras famílias tenham sido transferidas em 2011 para a agrovila.
O Plano de Reassentamento da Barragem Gameleira previa, no capítulo 6.10, a construção de uma adutora com capacidade mínima de 30 mil litros para trazer água do açude para a agrovila, mas até hoje essa obra não foi realizada. A empresa I. C. Projetos e Construções foi escolhida por licitação para fazer a obra, ao custo de cerca de R$ 250 mil, mas os trabalhos de construção da adutora nem começaram ainda. Por isso, os moradores continuam dependendo do poço e, de vez em quando, se cotizam para fretar um caminhão-pipa. Mas aí dependem da boa vontade dos mandachuvas locais, como diz o morador Paulo Sérgio: “Tudo aqui a gente meio que depende de falar com alguém, de conhecer alguém… Se você chama um caminhão-pipa, às vezes você fica esperando dias pra ele chegar. Se você fala com um vereador, chega no mesmo dia”.
Há muitas outras decepções para os moradores expulsos pela obra financiada pelo Banco Mundial. O posto de saúde previsto para a agrovila não passa de uma carcaça de concreto, com cadeiras amontoadas, salas vazias e muita poeira; para conseguir atendimento médico, os moradores têm de ir de pau de arara à área urbana de Itapipoca, a 16 km dali. A coleta de lixo e a construção de áreas de lazer também não saíram do papel. “A agrovila do Açude Gameleira deverá transformar-se em um centro polarizador de serviços e de produção para a região”, diz o plano de reassentamento. Olhando em volta, tudo o que se vê é um conjunto habitacional pobre, com mais carências do que tinham os moradores antes da obra.
“Naturalmente os beneficiários do plano que optarem pelo reassentamento na Agrovila terão sua renda mensal bem mais elevada, de acordo com os planos de atividades econômicas propostos”, prometia o plano de reassentamento do açude Gameleira, que previa o cultivo de culturas temporárias (feijão, milho, melancia e melão) e permanentes (manga e goiaba) nos lotes agrícolas, além de piscicultura na área alagada do açude.
Nada disso virou realidade. Os agricultores continuam lutando com a seca para suas roças de subsistência e racionando a água que bebem.
“Se não tiver inverno [chuva], não tem nada feito. Por quê? A nossa água não veio, a que foi prometida que viria por adutora. A salgada do poço mata a plantação completamente. A doce ninguém pode comprar pra aguar um terreno e sai caro porque o terreno é de cinco hectares, né?”, explica a agricultora Expedita Fernandes de Souza, de 30 anos. Ela conta que, no início do ano passado, trouxe 1.500 pés de caju da sede da Ematerce (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará), em Itapipoca e, com a seca, não sobraram nem 30 pés. Por isso, os moradores exigem da SRH a instalação de uma caixa-d’água à beira dos lotes agrícolas para compensar a perda dos terrenos irrigados naturalmente que cultivavam antes da remoção. “Aqui a gente só trabalha se tiver os invernos. Lá onde eu morava, não faltava serviço pro povo não”, diz o agricultor Valmir Carlos da Silva.
Tribunal de Contas do Ceará: assentamento foi feito em “condições sub-humanas”
Pouco mais de um ano após o início do reassentamento das famílias para a agrovila Gameleira, o promotor Glaydson Alexandre, do Ministério Público de Contas do Estado do Ceará, fez uma inspeção no local, a pedido do promotor Igor Pereira Pinheiro, do Ministério Público Estadual da comarca de Trairi, município em que está localizada a agrovila.
O resultado da visita foi uma representação no Tribunal de Contas do Estado contra a SRH e contra a EIT, a empresa que construiu o açude e a agrovila. “Como se constata, as famílias assentadas vivem em condições sub-humanas, pela falta da infraestrutura prometida pelo Estado, através da SRH, e não realizada pela empresa contratada, EIT, que acaba por colocar aquelas famílias em situação de miséria, ante a falta de água e energia. Frisa-se que, sem água e energia elétrica, os colonos não podem realizar as suas rotinas básicas e ficam impossibilitados de ganhar alguma renda”, escreveu o promotor na representação de março de 2012.
“É importante ressaltar que, no caso em apreço, é nítida a ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que a SRH e a EIT descumpriram o contrato firmado entre ambos, que culminaria na efetivação de benfeitorias aos colonos assentados. Pior, a SRH não logrou em tornar realidade as promessas (contrato implícito) efetivadas às famílias, deixando-as em condições sub-humanas, ante principalmente a falta de água e energia elétrica para a comunidade Gameleira”, destacou o promotor na mesma peça.
Francisco Venílson dos Santos, de 39 anos, lembra que, logo depois que se mudou, se irritava ao olhar a caixa-d’água, sempre vazia, construída no meio da comunidade. “Eles foram lá, fizeram essa caixa só pra boniteza, só pra ficar bem na foto. Água mesmo não tinha não, e não tem até hoje, ali dentro”, comenta. “Sem luz aqui era horrível. A gente passava muita dificuldade. Cozinhava uma coisa e estragava em seguida porque não tinha onde guardar. Não tinha uma água pra gente decentemente tomar, era ruim demais”, relembra a agricultora Maria Cícera da Silva Santos Arruda.
Foi quando Paulo Sérgio Alves, o mesmo que está hoje na associação dos moradores, resolveu fazer algo para ajudar a comunidade. “Aí eu conversando com um colega, a gente viu um dia a equipe da Coelce [Companhia Energética do Ceará] mexendo nuns fios. Aí eu virei pra ele falei: ‘Bora arrumar uns fios e vamos colocar um gato’. Não dava mais pra ficar sem luz”, conta, referindo-se à instalação ilegal de luz (o “gato”). Paulo subiu num dos postes da rede elétrica das comunidades próximas e puxou um fio para dentro das casas dos reassentados. “Nas casas que tinha gente, eu consegui colocar em todas. Todas mesmo. Aí a gente conversou aqui e eu pedi pra eles que acendessem só um bicozinho de luz por casa, que não abusasse da energia. Geladeira, essas coisas, não tinha como ligar. Porque, se desse problema, ia tirar a luz de outros moradores que pagavam, né?”, diz.
O “gato” durou mais ou menos nove meses, até que, em janeiro de 2012, a Coelce cortou a gambiarra, como lembra, ainda revoltada, a agricultora Expedita. Moradora da área do Cipó, comunidade à beira do rio Mundaú, ela tocava com o marido um bar na própria casa de taipa em que viviam para complementar a renda familiar. “Lá eu tinha a minha venda, fazia minhas serestas, festinhas de alpendre assim. Eu e meu marido somos agricultores desde que nascemos, mas a gente tinha montado esse negócio pra ver se dava uma rendinha diferente pra gente viver. E tava dando certo. Aí, quando foi pra vir pra cá, nós vendemos tudo. Tive que desfazer tudo pra vir pra cá, tive que vender barato as nossas coisas pra sair rápido. E vendi todas as minhas coisas pela metade do preço: a mesa de som, caixas, DVD, as cadeiras…”, diz. “Foi duro depois ver que eu tinha tido tanta pressa, mas aqui as coisas não estavam nem prontas ainda. Saímos lá do nosso canto pra vir pra cá passar aperreio.”
Dois meses após a primeira manifestação, o Ministério Público de Contas voltou a criticar a SRH e a EIT em outra representação oficial – a essa altura, em março de 2012, a primeira representação no TCE havia se tornado um processo. Depois de ter analisado a documentação referente ao caso e as explicações da SRH, o promotor Glaydson Alexandre reafirmou que “a comunidade de Gameleira foi exposta a uma situação de total miséria, sem direito sequer a água e a energia. Neste ponto, tal contexto é agravado diante da verificação de que tais famílias detinham, antes da atuação estatal, fonte hídrica e energia elétrica em suas residências, conforme ficou assente no Plano de Reassentamento da Barragem Gameleira”.
A energia da Coelce só veio no fim de 2012, segundo os moradores – quase dois anos após a realização do reassentamento. Foi quando a Superintendência das Obras Hidráulicas (Sohidra) instalou o poço com dessalinizador na comunidade. O processo no TCE ainda não foi apresentado ao pleno do Tribunal para julgamento.
Banco Mundial: atrasos e problemas
O Banco Mundial também reconheceu que houve atrasos e problemas no processo de reassentamento da Gameleira, no Relatório de Conclusão de Implementação e Resultados do PROGERIRH, publicado em dezembro de 2012. “As famílias foram reassentadas em janeiro de 2011, mas só tiveram acesso a água e energia em dezembro de 2012, apesar das muitas recomendações e alertas dadas pelo Banco em diferentes missões de supervisão em 2011 e 2012. Os atrasos se deram por problemas financeiros de algumas empreiteiras e pela falta de coordenação entre a SRH e a Companhia de Energia”, diz o texto, que não menciona a falta da adutora nem explica que a água disponível vem do poço e é, em sua maior parte, salgada. Os problemas na Gameleira foram um dos fatores que contribuíram para que a avaliação geral do projeto fosse rebaixada para “moderadamente insatisfatória”.
Indenização ou “agrado”?
Seguindo um pouco mais pelas estradas vermelhas e pedregosas no meio da caatinga, chegamos ao distrito do Deserto, já no município de Itapipoca. No alpendre de sua casa, o agricultor Antenor David de Araújo, de 36 anos, nos olha curioso e desconfiado. Ele faz parte do grupo dos atingidos pela obra do açude Gameleira que receberam indenização pela casa inundada.
Cerca de cinco anos depois de receber a indenização, Antenor vive em uma casa simples. “Na época eu recebi uma indenização de R$ 7 mil”, lembra. “O dinheiro deu pra levantar a casa mal né? Ainda tô pelejando pra terminar”, diz. Ele comenta que estranhou o valor da indenização já na época. “Achei baixa, mas a gente não tinha direito de reclamar nada, né? Porque o que eles diziam é que se pegou, bem, se não pegou, o trator passa por cima e tchau e bença. Era assim que eles diziam pra gente, que a gente tinha que receber”, conta.
Do outro lado da estrada, está a casa da agricultora Maria Socorro, de 50 anos, a quem pergunto se foi uma das indenizadas para a construção do açude Gameleira. “Indenizada não, a gente foi agradado pra poder sair de lá”, faz questão de dizer. Ela era dona de um terreno com algumas casas onde morava com a família. “O engenheiro que fazia a medição dizia ‘vocês têm três casas, vocês vão ganhar um dinheiro bom’. Eu acho apenas que ele enganou a gente, ele devia ter dito o valor de quanto era a casa. Como engenheiro ele saberia dizer. Aí, quando veio a indenização, foi R$ 5 mil por casa. E o dinheiro ainda veio no nome do tio do meu marido. Aí deu um trabalho muito grande pra receber, a gente pedia pra liberar o dinheiro e eles não liberavam porque não tava no nome da gente”, relembra. E compara: “Lá a gente tinha uma casa de morada que não era pequena, uma garagem de caminhão que também não era pequena, tinha uma casa com dois compartimentos que era pra gente guardar farinha e outras coisas, tinha curral do gado, tinha casinha de galinha, pé de coqueiro, pé de mamão. O pessoal dizia que tudo ia ser pago, mas quando veio a indenização só foram pagas as casas que a gente morava”, lamenta Maria Socorro.
A agricultora diz que as propriedades foram obtidas com muito sacrifício, o que a fez sofrer mais com a enganação. “Eu já morei numa casa de taipa só com uma porta de entrada e saída. Depois faleceu uma filha minha e eu tive outros filhos, não tinha como ficar lá. Com muita luta, a gente fez outra casinha de taipa já com três quartos. O meu marido é muito trabalhador e muito seguro com dinheiro: levava o povo pra fazer feira de bicicleta e ia ganhando dinheiro, depois comprou um caminhão pra levar mais gente. Aí a gente ficou lá e ele ficou guardando sempre um dinheirinho que dava até a gente conseguir fazer as casas de tijolo lá no Rio do Inácio. Só que aí veio o açude Gameleira e a história da indenização”, relembra com tristeza.
No distrito do Deserto, onde moram Antenor e Maria Socorro, também não há água no açude (só nos distritos urbanos da cidade de Itapipoca). A fonte de água que consomem é um trecho do rio Mundaú, afetado pela seca. “O governo pra onde ele tivesse botado a gente ele podia ter levado a água junto, já que eles tiraram nós de lá onde a gente tava. Eles podem fazer isso, quem não pode fazer isso somos nós. Hoje a gente sofre por água também. Onde eu morava antes tinha água perto, não era água tratada, mas tinha. Se secasse, a gente cavava cacimba. Agora eu tô pedindo socorro aos outros pra me dar água”, conta Maria Socorro.
“Gameleira foi caso atípico”, diz SRH
Francisco Dário de Silva Feitosa, ex-orientador de Célula de Controle Socioambiental da SRH – ele foi exonerado depois das últimas eleições estaduais e aguarda para tomar posse no novo governo –, foi responsável por acompanhar o reassentamento das famílias atingidas pelo açude Gameleira. “O caso do Gameleira foi meio atípico. Tinha um cronograma de conclusão porque a agrovila é feita antes de o açude terminar. Precisávamos tirar todo mundo da bacia, antes de o açude encher. Como deu um problema com a empresa vencedora e tivemos que contratar outra empresa para concluir, a empresa não cumpriu o cronograma de execução para terminar a obra. E atrasou a conclusão porque eles sublocaram a construção da agrovila. Não deu tempo de tirar o pessoal da bacia e levar pra lá com a agrovila concluída”, afirma.
De fato, durante a construção da agrovila, a empreiteira responsável pela obra, a EIT, entrou em recuperação judicial e não pode concluir os serviços. Em agosto de 2011, por determinação judicial, a SRH suspendeu os pagamentos à empreiteira e as obras foram paralisadas em dezembro de 2011, mas as famílias já estavam sendo reassentadas desde janeiro daquele ano.
“A gente reuniu o pessoal e falou que estava acontecendo esse problema na agrovila e demos a eles a opção: ou nós alugamos casas pra vocês morarem, ou vocês vão pra lá faltando a energia e a água. Estava tudo feito com essa parte da energia, mas faltou a Coelce fazer a ligação, demorou muito para eles aprovarem o projeto. Os moradores insistiram para ir pra agrovila”, diz, tentando se justificar.
O presidente da associação de moradores da agrovila Gameleira, Paulo Sérgio, não se lembra do oferecimento de opção por casas alugadas.
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Sobre a pobreza e o abandono que vive a agrovila, Francisco Dário Feitosa responde: “Nós tentamos fazer projetos para melhorar a vida deles. Nós falamos com eles e vimos a aptidão de cada um. Nós levamos pra lá curso de corte e costura, bordado, tanto pra ocupar as mulheres como pra ocupar os jovens. Nós contratamos outras secretarias pra fazer esse trabalho, levamos a SDA [Secretaria do Desenvolvimento Agrário], a de Pesca… Nós demos as opções, mas se a pessoa quer continuar ou não costurando, bordando, aí é uma opção dela. Foi feito um curso de bordado, corte e costura, hortaliça, castanha… Nós tentamos desenvolver a agrovila”, argumenta. Quanto ao posto de saúde em ruínas e os demais equipamentos públicos jamais entregues, o ex-funcionário afirma que as obras foram repassadas à prefeitura de Trairi e que não eram responsabilidade da secretaria.
O mesmo argumento se repete à pergunta sobre a falta de um projeto de irrigação para as roças dos moradores da agrovila. “A obrigação da irrigação não é nossa, é de outra secretaria. Nossa obrigação era pegar as pessoas impactadas pela obra e dar condições de eles continuarem a vida deles”, afirma. E diz que as pessoas que não ficaram satisfeitas com as indenizações deveriam ter optado pela via judicial. “Nós temos um valor em tabela que é definido dentro da SRH e depois publicado no Diário Oficial para consulta. Aqueles proprietários que não concordarem com o valor, entram na justiça. Temos muito poucas contestações judiciais”, insiste.
Procurado, o Banco Mundial afirmou que “acompanhou de perto a situação da agrovila Gameleira” e que fez as três últimas visitas ao local entre setembro e dezembro de 2012. Segundo a instituição, “essas missões concluíram que o suprimento de água para a comunidade era adequado àquela época, tanto em termos de quantidade como de qualidade”. Eles ainda afirmam que “embora a adutora fosse a primeira opção prevista no plano de reassentamento para o suprimento de água para a comunidade, o governo do Ceará decidiu substituir essa opção pelo poço. Em seguida, o Banco supervisionou essa alternativa por um ano e concluiu que o suprimento de água era adequado”. A afirmação de que a adutora foi substituída pelo poço contrasta com a versão da SRH e com o próprio Diário Oficial do Ceará, onde todas as etapas da licitação da adutora foram publicadas.
Mesmos financiadores, mesmos problemas
Prosseguindo a viagem pelo sertão do Ceará, constata-se que o caso de Gameleira não é tão “atípico” como disse o ex-funcionário. Os moradores atingidos pelo açude Aracoiaba, cerca de 200 km de Itapipoca, também não foram protegidos pelas salvaguardas do Banco Mundial. Indenizações baixas, agrovilas incompletas, falta de diálogo eficiente com o poder público: o enredo é o mesmo. E esse açude foi concluído bem antes de Gameleira, em dezembro de 2002, durante a primeira etapa do PROGERIRH, ao custo de cerca de R$ 14 milhões. Ali foram atingidas 608 famílias – 333 moravam no local e perderam todas as suas terras ou parte delas, segundo dados da própria SRH.
A família da agricultora Vanderléia Aparecida Maciel da Costa vivia havia três gerações em um lugar que desapareceu embaixo das águas do açude. “O açude mudou tudo”, lembra. “A indenização foi muito injusta pras famílias, foi pago R$ 5 mil por casa. A casa que a gente construiu depois a gente não conseguiu fazer com esse dinheiro, tivemos que nos desfazer de terras, pés de fruteiras, gado, porque com R$ 5 mil você não faz uma casa.” Os reassentados passaram também por um período de privação de água. “Eles diziam que o projeto da barragem, do açude Aracoiaba, era para a acumulação de água pra população mesmo. Mas nós passamos cinco anos sem ter essa água na nossa casa. Era só com jumento, carro de mão, pra ir buscar onde desse”, conta.
Mas, se as carências desse reassentamento não serviram de alerta nem ao Banco Mundial nem ao governo do Ceará, a mobilização dos assentados de Aracoiaba – amparados pelo Movimento de Atingidos por Barragem (MAB), uma articulação nacional entre as comunidades afetadas – serve de exemplo para os assentados de Gameleira.
Em 2004, após uma marcha de 100 km e uma semana de duração entre a cidade vizinha, Baturité, e a capital Fortaleza, os moradores atingidos pelo açude Aracoiaba começaram a ver suas reivindicações atendidas. “A partir daí as coisas começaram a andar: saiu a água que a gente não tinha antes, cestas básicas, projetos produtivos pras famílias, como o Projeto São José [que também conta com financiamento do Banco Mundial]… A gente só não esperava que ia ter que lutar tanto pra conseguir as coisas. Eles disseram que iam dar tudo que a gente tinha antes, mas não foi isso que aconteceu durante um bom tempo”, conta Vanderléia. “Nós só conseguimos os nossos direitos pela luta. Se não fosse a luta, acho que a gente estaria como era no começo. E tem famílias que até hoje lutam na Justiça pra receber indenização”, diz.
“Durante um bom tempo, aqui só vinha água de um açude particular de um fazendeiro aqui de cima da agrovila. E a água que vinha pra gente era muito pouca por dia: 300 litros d’água. Era muito pouco. A minha mulher passava dias e dias sem lavar roupa porque não tinha como”, lembra o agricultor aposentado Antônio Pereira de Abreu, 65 anos, ex-presidente da Isca do açude Aracoiaba. Ele conta que chegou a fazer um “gato” para trazer água até as casas dos moradores. Hoje, porém, as casas da agrovila estão ligadas à rede da Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará (Cagece), garantindo o abastecimento da comunidade.
Alguns problemas semelhantes aos enfrentados pelos assentados de Gameleira, porém, ainda persistem na comunidade de Aracoiaba. “Aqui já tá com catorze anos que a gente não tem documentação das nossas terras. A gente estando com isso em mãos, a gente pode ter a segurança que é da gente. Ainda hoje a gente espera por isso e não tem”, explica o aposentado Antônio.
Antiga parceria entre o Brasil e o Banco Mundial visa ao desenvolvimento do país
O Banco Mundial começou a investir no Brasil em 1949, quatro anos após sua criação. Segundo a instituição, sua estratégia é “ajudar o Brasil a promover crescimento sustentável e de longo prazo, que garanta oportunidades de desenvolvimento para a população”, tendo como principais objetivos: aumentar investimentos públicos e privados, melhorar a oferta de serviços para os mais pobres, fortalecer o desenvolvimento regional e nacional e apoiar o gerenciamento efetivo dos recursos naturais e do meio ambiente.Projetos de diversas áreas são financiados pelo Banco Mundial no Brasil, incluindo gestão pública, desenvolvimento rural, transporte e meio ambiente. Alguns destaques são o Bolsa Família, o Programa de Áreas Protegidas da Amazônia e a construção das linhas 4 e 5 do metrô de São Paulo.
Entre 2004 e 2013, o Banco Mundial aprovou o financiamento de 153 projetos no Brasil, dando prioridade, em ordem, aos setores de “Administração pública, administração da lei e da justiça”; “Agricultura, pesca e silvicultura”; e “Água, saneamento e proteção contra inundações”.
Em 42 projetos, 27,5% do total, há evidências de que pessoas perderam suas casas, terras ou empregos. Desses, 57% projetos são ligados ao setor de água, saneamento e proteção contra inundações.
Pelo menos 10.094 brasileiros sofreram as consequências negativas desses projetos, que custaram cerca de US$ 7,4 bilhões ao banco.
As informações são de um levantamento realizado pelo ICIJ com dados disponíveis no site do Banco Mundial. De acordo com a pesquisa, o Brasil é o segundo país com maior número absoluto de projetos que foram financiados pelo banco em que pessoas sofreram impactos negativos, ficando atrás apenas da China, com 112 projetos. Já em termos relativos, o Brasil ocupa o vigésimo lugar no ranking, ao lado de Quênia, Vietnã e Nigéria – nos quatro países, cerca de 30% do total de projetos teve impactos negativos. Com 66% dos projetos causando danos às populações locais, a China novamente lidera o ranking, seguida por Irã, Kiribati, Zâmbia, Malavi e Moçambique. A Argentina é o único país latino-americano em situação pior que a do Brasil, já que ocupa o 12º lugar e teve 34% dos projetos financiados pelo Banco Mundial prejudicando de alguma forma sua população.
Para o Banco Mundial, é natural que haja impactos negativos em grandes obras de infraestrutura. “Neste momento, a necessidade de infraestrutura em países em desenvolvimento é enorme. Mais de US$ 1 trilhão por ano. E infraestrutura muito frequentemente precisa de reassentamento. Nós tentamos fazer isso de uma forma que assegure que, depois do reassentamento, todos tenham um padrão de vida que é, ao menos, tão alto quanto ou mais alto do que era antes. Aliás, de acordo com as nossas regras, mesmo se você não tem direitos de propriedade, mesmo se você for um invasor, nós providenciamos serviços de reassentamento. É um padrão muito alto que nós tentamos manter. Nós fazemos projetos difíceis e complexos em alguns dos países mais pobres do mundo, então problemas vão existir”, justificou o presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, em entrevista coletiva realizada em março na Alemanha, em resposta à pergunta da jornalista Julia Stein, da emissora alemã Norddeutscher Rundfunk (NDR), colaboradora do ICIJ no projeto sobre o Banco Mundial.
Desde os anos 1980, o Banco Mundial investe na modernização da gestão de recursos hídricos no Ceará
Além de emprestar recursos para o governo federal, o Banco Mundial firma contratos diretamente com estados e municípios. No Ceará, o banco já financiou projetos de agricultura familiar, administração pública, transporte e educação. O início da inserção do banco na área de recursos hídricos no Ceará coincidiu com o primeiro dos três mandatos do ex-governador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que assumiu o cargo em 1987 com o lema “Governo de Mudanças”.
Algumas condições favoreceram a aproximação entre o estado e o banco no setor de recursos hídricos, como a capacidade financeira e o fato de o Ceará ter desenvolvido um Plano Estadual dos Recursos Hídricos antes mesmo do Plano Nacional. Essa é a opinião da coordenadora do Laboratório de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará, a professora Francisca Silvania de Sousa Monte, cuja tese de doutorado é sobre o uso das águas no processo de modernização do estado. “Tais atributos ensejaram o surgimento de uma política original de gestão dos recursos hídricos, cujos princípios estavam de acordo com o consenso internacional sobre a questão, compartilhado e preconizado pelo Banco Mundial”, detalha Monte.
“O ‘governo das mudanças’ utilizou a seca para justificar a implantação de ambiciosos programas hídricos, pensados principalmente como instrumento não só para atrair indústrias, mas fundamentalmente para dar suporte para as indústrias que iriam promover o desenvolvimento e a modernização do estado”, opina a professora.
A geógrafa Cíntia dos Santos Lins, que estudou os impactos socioespaciais do modelo cearense de gestão dos recursos hídricos em seu mestrado pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), concorda: “O discurso da seca sempre foi utilizado para mostrar que o estado não se desenvolvia porque não tinha água. Então seriam necessárias essas obras para que o estado pudesse se desenvolver, para que ele pudesse crescer economicamente e atrair mais investimentos”, explica Lins.
Esses “ambiciosos programas hídricos” foram o Prourb e o PROGERIRH. Ambos previam a construção de reservatórios e adutoras para armazenar e transportar água e, ao mesmo tempo, o fortalecimento das instituições responsáveis pela gestão dessas infraestruturas hídricas, como explicou Francisco Assis de Souza Filho, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) que foi responsável pelo gerenciamento técnico do Prourb, do PROGERIRH e do Proágua, enquanto era funcionário da COGERH.
O Prourb focou a construção de açudes de médio porte e a implantação de adutoras de água tratada para abastecer sedes municipais. Criado em 1993, aprovado em 1994 e implementado a partir de 1995, o programa promoveu a construção de 13 açudes e 23 adutoras no estado, financiada em parte graças a um empréstimo de US$ 140 milhões concedido pelo Banco Mundial ao estado do Ceará. Já o PROGERIRH teve como objetivo construir eixos de integração que interligassem bacias hidrográficas, possibilitando a transferência de água de áreas úmidas para áreas de escassez hídrica dentro do estado. “Além da construção de reservatórios mais regionais e adutoras, o PROGERIRH teve como foco também a transposição entre bacias. O canal que hoje abastece a cidade de Fortaleza, o Eixo da Integração, que traz água do Jaguaribe para o sistema metropolitano, foi construído dentro do escopo do PROGERIRH”, exemplifica Assis. Como a água transportada pelo famoso Eixão das Águas se destina à população urbana da capital, ao agronegócio e às indústrias, as famílias que vivem ao longo do canal também ficaram sem água, como a Pública relatou em julho de 2013, na reportagem “Tem água para ver, mas não para beber”, feita pelo Coletivo Nigéria, na segunda edição das Microbolsas.
Criado em 1997 e aprovado em 2000, o PROGERIRH, em sua primeira etapa, custou US$ 247,27 milhões, US$ 136 milhões do Banco Mundial e US$ 111,27 milhões do governo do Ceará, como contrapartida, parte dela (R$ 126 milhões) financiada pelo BNDES. Com esses recursos, foram construídos seis açudes e três eixos de integração. Em 2008, o Banco Mundial aprovou um financiamento adicional ao PROGERIRH no valor de US$ 103 milhões, que permitiu a construção de mais cinco açudes e cinco adutoras. Dois outros açudes cearenses foram financiados pelo Banco Mundial fora desses programas: o Açude Sucesso (construído em 1988 como parte do programa Açudes Regionais) e o Açude Arneiroz II (construído em 2005 como parte do programa nacional Proágua).
Desde 1988, o Banco Mundial financiou a construção de 26 açudes no Ceará – 10,6% dos 245 construídos no estado desde o início do século XX. Segundo dados dos planos de reassentamento das obras, fornecidos pela SRH, as construções financiadas pelo banco atingiram pelo menos 4.625 famílias. Desse total, 2.266 famílias viviam no local e perderam todas as suas terras ou parte delas.