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Ao longo dos séculos, os camponeses dos Andes aprenderam a cultivar mais de 3 mil variedades de batatas. Elas são mais gostosas e mais saudáveis e podem nos salvar da fome em climas extremos. Por que então só falamos em batatas fritas?

Crônica
13 de janeiro de 2017
12:18
Este artigo tem mais de 7 ano

Por Eliezer Budasoff

Julio Hancco é um camponês dos Andes que cultiva 300 variedades de batatas e reconhece cada uma delas pelo nome: a “que faz chorar a nora”, a “cocozinho vermelho de porco”, a “chifre de vaca”, a “gorro velho remendado”, a “sapatilha dura”, a “pata manchada de puma”, a “nariz de lhama negra”, a “ovo de porco”, a “comida para bebê desmamar” e a “feto de cuy” (cuy é um roedor que se come nos países andinos). São nomes escolhidos pelos camponeses para classificar as batatas de acordo com a sua aparência, seu sabor, sua personalidade.

Quase todas as variedades que Julio produz a mais de 4 mil metros de altura, nas suas terras em Cuzco, na parte sudeste do Peru, já têm nome próprio. Mas às vezes ele planta uma nova, ou alguma que perdeu a identidade com o tempo, e então “o Senhor das Batatas” pode nomeá-la. Ele chamou assim a puka Ambrósio – em quíchua, puka significa “vermelho” –, em homenagem a um sobrinho que morreu ao cair de uma ponte. Ambrosio Huahuasonqo era um camponês amável, dócil como um purê de batatas, que seguia o seu tio aonde ele fosse e conquistava as pessoas fazendo piadas. Dizem que o seu sobrenome quíchua definia seu temperamento: Huahuasonqo significa “coração de criança”. Depois da morte, Julio deu um destino ao seu outro nome, grego: Ambrosio significa “imortal”. A batata que agora leva seu nome é alargada, suave, ligeiramente doce, com uma polpa amarelo-clara e um anel vermelho no centro. É uma das favoritas de Julio, um camponês que só fala  quíchua, mas cujo nome, latino, tem entre seus possíveis significados: “de fortes raízes”.

Uma tarde na primavera de 2014, na sua casa, dias depois da semeadura, Julio Hancco levanta sua mão grande e enrugada como a casca de uma árvore:

– Como um filho – diz –, como filho, é a batata.

Na casa de Julio – um quarto de pedra sem janelas com uma mesa velha e um fogão – está tão escuro que não se consegue ver se ele diz isso sorrindo ou com um gesto solene. Sua esposa, sentada sobre um banquinho no chão de terra, revolve uma sopa no fogão. Sobre a mesa da cozinha, um punhado de batatas puka Ambrosio começa a esfriar. São deliciosas, mas a grande maioria dos peruanos nunca chegará a prová-las. Sabemos que a batata nasceu no Peru e que os agricultores dos Andes cultivam mais de 3 mil variedades, mas não sabemos quase nada sobre elas.

Sabemos onde se fabrica um iPhone, quem é o homem mais rico do mundo, de que cor é a superfície de Marte, como se chama o filho de Messi, mas não sabemos quase nada dos alimentos que comemos diariamente. Se é verdade que somos o que comemos, a maioria não sabe o que somos. Para quem vai a qualquer mercado peruano, o maior dilema hoje é escolher entre batatas brancas ou amarelas. Em 2016, no Peru, país que produz a maior variedade de batatas no mundo, se importaram mais de 33 mil toneladas de batatas pré-cozidas: as que são usadas em redes de fast-foods para fazer batatas fritas.

(Foto: Alonso Molina/Etiqueta Verde)

Guardião

Quando olha o morro nevado em frente à sua casa, Julio Hancco se detém do mesmo jeito que alguns param diante de uma igreja: com uma reverência imperceptível. Julio é um agricultor de quase 65 anos que já foi chamado de protetor do conhecimento, guardião da biodiversidade, produtor-estrela. Foi premiado com a Pimenta de Prata no famoso festival gastronômico Mistura, na capital peruana, Lima, e recebeu pesquisadores da Itália, Japão, França, Bélgica, Rússia, Estados Unidos e produtores de Bolívia e Equador que viajaram até as suas terras na comunidade camponesa Pampacorral para saber como ele consegue produzir tantas variedades de batatas. Vive a 4.200 metros acima do nível do mar, aos pés do monte nevado Sawasiray, em uma paisagem com solos amarelos, colinas áridas e rochas gigantes aonde podem chegar uns pesquisadores europeus, mas não chegam nem os automóveis nem a luz elétrica.

Para chegar até sua casa, é preciso descer na estrada e subir quase um quilômetro a pé por uma ladeira íngreme como uma montanha. Quem viaja para vê-lo desde a cidade anda devagar, ofega, arqueja e se sente mareado pela falta de oxigênio. Lá em cima o sangue corre mais lento e os ventos são mais violentos. No verão, as águas de degelo esfriam tanto que é doloroso lavar o rosto. No inverno, o frio alcança dez graus abaixo de zero, uma temperatura que pode congelar a pele em uma hora.

Para conseguir lenha, Julio tem de percorrer a cavalo cerca de cinco quilômetros até um lugar onde as árvores podem crescer, para daí cortar seus troncos e levá-los à sua casa. Para conseguir gás, tem de descer até a estrada asfaltada e tomar uma Kombi até Lares, o povoado mais próximo, a vinte quilômetros, onde às vezes compra também pão, arroz, verduras e frutas – tudo o que não pode produzir na terra que herdou dos pais. A única coisa que floresce àquela altitude é a batata.

A batata foi o primeiro vegetal cultivado pela Nasa no espaço, por sua capacidade de adaptar-se a distintos ambientes. É o não cereal mais cultivado e mais importante do mundo. É a planta que produz a maior quantidade de alimento por hectare do que qualquer outra. O tesouro-enterrado-dos-Andes que salvou a Europa da fome. O alimento principal das tropas de Napoleão. É a base da tortilha espanhola, dos nhoques italianos, dos knishes judeus, do purê francês, da primitiva vodca russa. O manjar que no século 19 Thomas Jefferson servia frito, cortado em bastões, aos seus convidados na Casa Branca. A raiz da flor roxa que Maria Antonieta usava nos cabelos para passear pelos jardins de Versalhes. O vegetal que tem dedicados a ele três museus na Alemanha, dois na Bélgica, dois no Canadá, dois nos Estados Unidos e um na Dinamarca. O tubérculo que inspirou uma ode de Pablo Neruda – “Universal delícia, não esperava meu canto/ porque és cega surda e enterrada” –, uma canção de James Brown — ♫ “Aqui estou de regresso/ fazendo purê de batatas” ♪ –, duas pinturas de Van Gogh — em uma delas, chamada “Os comedores de batatas”, cinco camponeses as comem ao redor de uma mesa quadrada. A origem de milhares de sementes que se guardam junto a outros milhares de sementes abaixo da terra, em uma montanha no ártico norueguês, para proteger essa riqueza de futuros desastres naturais. O cultivo que Julio Hancco trata como um filho, mas que os seus filhos menores não querem seguir produzindo, para evitar uma vida de sacrifícios em nome da subsistência.

Julio diz que prefere ficar sozinho e que os seus sete filhos vivam na cidade, onde podem conseguir trabalhos mais leves e bem pagos. Se tivesse a idade de Hernán, o segundo, de 29 anos, que agora se faz de tradutor ao seu lado, o Senhor das Batatas diz, brincando, que buscaria uma namorada estrangeira e se mudaria para outro país.

Tradição

Numa madrugada há 15 anos, Julio Hancco acordou Hernán e lhe disse que deveria carregar uma pedra do tamanho de uma bola de futebol desde a sua casa até o porto de Calca, a uma hora e meia de caminhada em direção ao sul. Hernán Hancco tinha então 13 anos e o acompanhava pela primeira vez a vender batatas naquela cidade, o centro comercial mais importante da região. Para chegar a Calca às sete da manhã, tinham de sair às três e caminhar quatro horas, e o “batismo” do menino consistia em carregar aquela pedra enorme até metade do caminho. Era uma prova de resistência e aceitação que os produtores daquela região repetiam com seus filhos. Uma tradição que já não é seguida, explica Hernán Hancco enquanto vende o último saquinho de Sumaj chips — fritas feitas com o tubérculo nativo – em uma feira de produtos orgânicos que ocorre aos domingos em Lima.

O segundo filho de Julio Hancco se mudou para a capital peruana há quase uma década, quando tinha 20 anos, assim que terminou o segundo grau. Chegou a Lima com 400 soles no bolso – cerca de US$ 130 – e a determinação de estudar contabilidade e inglês. Nunca conseguiu porque o trabalho consumia quase todo o seu tempo, mas se tornou uma ajuda fundamental para vender as batatas que a sua família produz na capital. Com Hernán em Lima, seu pai, sua mãe e seu irmão mais velho Alberto evitam a comissão cobrada por intermediários, e eles pagam apenas o transporte das batatas. Assim mesmo, o lucro é mínimo. Mas a situação é pior para os camponeses que não têm quem os ajude.

– Por isso alguns produtores estão deixando de cultivar batatas – diz – e se dedicando ao turismo em vez disso.

Envolver-se em turismo, explica, é se oferecer como burro de carga dos estrangeiros que vão a Cuzco para percorrer o Caminho do Inca. Durante três ou quatro dias de caminhada até Machu Picchu, os camponeses carregam as mochilas e a bagagem dos turistas, que assim podem subir mais comodamente. Podem receber por isso 200 soles, mais 200 de gorjeta. São US$ 130 no total. Por um saco de 12 quilos de batatas nativas, ganham 20 soles; cerca de US$ 6,5.

– E aqui é trabalhar o dia todo, todos os dias – diz.

(Foto: Alonso Molina/Etiqueta Verde)

Olhos

As “covinhas” das batatas se chamam “olhos” em espanhol. Mas nunca olhamos as batatas nos olhos. As batatas têm “sobrancelhas” em cima dos olhos. Têm umbigo, manchas na pele, corpos de forma redonda, comprimida, oblonga, elíptica, alargada. A batata mais popular no norte de Tenerife, na Espanha, é a “bonita de olhos rosados”. A batata cacho negro, do Chile, tem abundantes olhos profundos e as sobrancelhas esmagadas. A batata Asterix, na Holanda, tem a pele vermelha, a carne amarela e os olhos superficiais.

Os catálogos descrevem as batatas do mundo pelos seus traços como de gente, mas uma vez ela já foi uma espécie selvagem, amarga, intragável. Hoje é a civilizada Solanum tuberosum. Assim como o tomate, a berinjela e as pimentas, pertence à família das solanáceas, chamadas assim porque folhas, talo, frutos e brotos têm solanina, uma substância tóxica para proteger-se de doenças, insetos e outros predadores. Em doses elevadas, a solanina pode matar uma pessoa; mas não há notícias de batatas assassinas.

O ser humano domesticou a batata há mais de 8 mil anos na cordilheira dos Andes, quando a Terra saía da Idade do Gelo e o Homo sapiens andava por aí ensaiando a agricultura, sua nova invenção para conseguir alimentos. Os habitantes do altiplano peruano foram os primeiros a aprender a manipular as batatas para que não fossem tóxicas e torná-las maiores e mais suculentas. A batata devolveu a gentileza conquistando o mundo.

Uma tarde o escritor estadunidense Michael Pollan estava no seu jardim plantando uma batata que havia comprado por catálogo e se perguntou se realmente ele a havia escolhido ou a batata o seduzira para que a semeasse. Pollan, autor que mudou a forma como vemos nossa relação com a comida, acredita que “a invenção da agricultura” pode ser pensada como a maneira que as plantas encontraram para fazer com que nós nos movamos e pensemos por elas. Do ponto de vista das plantas, escreve Pollan no livro A botânica do desejo: a visão do mundo através dos olhos de um planta (ainda sem tradução para o português), o ser humano poderia ser pensado como um instrumento de sua estratégia de sobrevivência, não muito distinto do zangão que é atraído por uma flor e tem a função de disseminar o pólen com os seus genes.

Técnica

Numa manhã do inverno de 2014 nas terras de Julio Hancco, diante de uma pilha de esterco de lhama, é mais justo pensar nos agricultores andinos como sócios da batata do que como seus domesticadores. Às 7h30 de um sábado, Julio, seus filhos mais velhos e seu vizinho Julián Juárez mastigam folhas de coca e tomam aguardente antes de começar a tarefa do dia: levar esterco até uma área semeada com batatas, a quase um quilômetro, para fertilizar a terra.

As lhamas que esperam ao nosso lado já conhecem a rotina. Os homens pegam pás e carregam o fertilizante em sacos que chegam até a cintura de tão altos. Enchem 39 sacos, costuram para que não se abram, amarram cada saco sobre o lombo de uma lhama, levam os animais até a área, desatam os sacos, espalham o esterco, dobram os sacos, recolhem as cordas, enviam as lhamas de volta até a pilha de esterco e voltam ao ponto de partida para repetir o roteiro. Quatro homens, duas mulheres, três cachorros e 40 lhamas conseguem fertilizar dois hectares em seis horas de trabalho. Depois de ver como agricultores semeiam um pedaço de terra durante seis horas, qualquer um sente que deveria se pôr de joelhos toda vez que mastiga uma batata.

A natureza não tem cura

Julio Hancco descende de várias gerações de Hanccos que viveram nesta zona de Cuzco “quase desde o princípio do mundo”. De seus pais herdou as terras, os animais e mais de 60 variedades de batatas. Nos últimos 15 anos, multiplicou a herança e chegou a produzir 300 variedades. Sua decisão de resgatar e cultivar mais variedades foi um exercício de destreza. Como quase todos os camponeses nos Andes, suas terras produtivas são a soma de pedaços irregulares espalhados a distintas alturas. A maestria dos agricultores alto-andinos provém desta dificuldade: em um território governado pelas encostas, cada rincão cultivável recebe sua parcela de sol, umidade e vento.

A terra que é exposta à luz em um lado do morro permanece na sombra do outro lado. Uma rocha gigante impede a passagem de chuva em uma franja cultivável, mas protege outra do vento. Para sobreviver nesse território, os camponeses tiveram de multiplicar suas chances de alimentar-se. Plantaram distintas batatas em cada pedaço de terra, aprenderam com a observação minuciosa de cada planta, provaram e criaram milhares de variedades e se tornaram os reis da riqueza genética em terras hostis. Foi uma forma de conjurar o futuro: mais batatas significava mais possibilidade de assegurar comida ante as pragas e doenças, as geadas, o granizo e as secas. Em vez de tratarem de controlar a natureza, que é o que faz a nossa agricultura industrial, os camponeses dos Andes se adaptaram a ela.

– A natureza não tem cura –, diz Hancco enquanto olha para o nevado Sawasiray e se agacha para recolher do solo um punhado de terra. Acaba de esvaziar o último saco de esterco sobre o solo semeado, numa franja coberta por um musgo verde que se afunda quando apertada. É um pedaço em declive, no meio de uma ladeira, sem nenhuma proteção natural. Julio pode usar suas técnicas de cultivo e pesticidas naturais para as doenças e as pragas, mas não tem maneira de resguardar suas batatas do granizo nem das geadas. Nos últimos anos tem sido pior, diz: o clima se tornou mais caprichoso e imprevisível.

(Foto: Alonso Molina/Etiqueta Verde)

Estigma

Nos anos 1960, quando Julio Hancco era criança e começava a cultivar batatas junto ao seu pai, o seu vício era o pão: o menino trabalhava os próprios pedaços de terra para juntar dinheiro e poder comprar sacos de pão de vendedores que passavam oferecendo a mercadoria. Um peruano nessa época consumia em média 120 quilos de batata ao ano. Nas décadas seguintes, o consumo decresceu, e a queda se acelerou nos anos 1980, quando os camponeses começaram a migrar para a cidade a fim de escapar das guerrilhas. Nos anos 1990, durante a presidência de Alberto Fujimori, o consumo de batatas havia chegado a um piso histórico: 50 quilos ao ano por pessoa. Essas batatas sumiram, explica a engenheira Celfia Obregón Ramírez, foram substituídas por alimentos como arroz e macarrão.

– Como o macarrão tem mais status e uma coxa de frango é mais status que comer cuy, as pessoas começaram a esconder as suas batatas – diz Celfia, presidente da Associação para o Desenvolvimento Sustentável (Aders) do Peru e criadora do Dia Nacional da Batata.

Diante do arroz branco, do talharim amarelo e do frango pálido, as batatas com as suas peles escuras renovavam o estigma de atraso e pobreza que tiveram durante os séculos, desde que foram descobertas pelos conquistadores e chegaram à Europa no século 16, supostamente na despensa de um barco espanhol. Levaria cerca de 200 anos para que a batata fosse consumida como um alimento habitual em todo o Velho Continente.

Em cada país europeu, ela teve sua história de rechaço e sedução: a batata foi considerada impudica e afrodisíaca, causadora de lepra, alimento de bruxas, sacrílega e comida de selvagens. Mas a Irlanda não duvidou em adotá-la desde o começo: os camponeses daquele país, expulsos pelos ingleses das poucas terras cultiváveis que tinham, morriam de fome tentando extrair alimento de umas terras miseráveis. Quando a batata chegou no final do século 16 – supõe-se que pelas mãos do corsário inglês Walter Raleigh –, os irlandeses descobriram que com um pouco de terra quase inútil podiam produzir alimento para toda a família e seu gado. No começo, a batata salvou a Irlanda da fome. Depois foi acusada de causar a pobreza daquele país: em um século, a população cresceu de 3 milhões para 8 milhões, porque os pais podiam alimentar os filhos com o pouco que tinham.

O escritor estadunidense Charles Mann conta que o economista Adam Smith, um admirador da papa, se impressionava ao ver que os irlandeses tinham uma saúde excepcional embora quase não comessem nada além de batatas. “Hoje sabemos por que”, escreveu Mann em seu livro 1493: uma nova história do mundo depois de Colombo, “a batata é capaz de sustentar a vida melhor que qualquer outro alimento se é o único da dieta. Contém todos os nutrientes básicos, exceto as vitaminas A e D, que podem ser obtidas do leite”. E a dieta dos irlandeses pobres consistia basicamente em batatas e leite.

A batata que hoje se cultiva em mais de 150 países produz uma quantidade de alimento por unidade de superfície maior do que o arroz ou o milho. Uma só batata contém metade de vitamina C de que um adulto necessita por dia. As batatas nativas peruanas alimentam mais do que o dobro de uma batata comum e têm grandes quantidades de ferro e zinco e vitamina B. Mas nós ainda acreditamos no mito falso de que as batatas engordam e não compreendemos por que deveríamos pagar mais por uma batata, mesmo que tenha cor ou forma exótica se uma batata é uma batata.

Mudanças climáticas

As numerosas pesquisas sobre a batata peruana insistem na necessidade de proteger as variedades e técnicas de cultivo por uma razão evidente: foram criadas pelos camponeses durante séculos para assegurar comida nas condições mais extremas do clima.

E é isto que se espera do mundo com as mudanças do clima: fome e condições extremas.

Mas há uma razão mais egoísta para querer cuidar delas: porque são deliciosas. Diferentemente da produção de batatas comerciais em grande escala, os camponeses dos Andes cultivam as suas batatas pensando em comê-las, em alimentar primeiro as suas famílias e vender o resto.

No Peru, um país que converteu a sua gastronomia em motivo de autoestima, mais de 70% do que se come – suas frutas e hortaliças, seus cereais, seus tubérculos e suas leguminosas –, é produzido por pequenos agricultores. O boom da gastronomia peruana que encheu de orgulho os discursos políticos durante a última década é o boom dos ingredientes da gastronomia peruana. Mas o governo transforma este boom em fogos de artifício: no orçamento nacional aprovado em 2015, foram destinados para a agricultura familiar só 2,3% dos fundos, a porcentagem mais baixa desde 2010.

O estudo “O setor das batatas na região andina”, do Centro Internacional da Batata, aponta este paradoxo: os produtores das zonas de maior altitude, aqueles que mais riqueza de variedades possuem, são também os que vivem na maior pobreza.

(Foto: Alonso Molina/Etiqueta Verde)

Alimento

A verdadeira pátria de um homem não é a infância: é a comida da infância. Um domingo às sete da manhã, antes de começar o dia de trabalho, a esposa de Julio Hancco nos serve o café: arroz com leite, pão com ovo frito, batatas da sua terra, costelas de alpaca e sopa de chuño – umas batatas amargas desidratadas em campo aberto – com um pouco de carne de ovelha. Julio Hancco e seus filhos Hernán e Wilfredo, que devem trabalhar a terra durante todo o dia, repetem a sopa duas vezes. Hancco mostra os pratos, me olha e volta a falar em seu espanhol:

– Carne natural é. Batata natural. Água natural. Tudo natural é.

Julio brinca dizendo que, se fosse mais jovem, iria se mudar para outro país. Mas, se perguntam a sério, ele responde que não: não deixaria os seus animais. Além disso, diz, nas suas terras pelo menos come o que quer. Ali come batatas, porco, lhama, alpaca, cuy, coelho. Já na cidade, tudo é macarrão, arroz, biscoitos.

—Isso não é alimento. Muitos químicos – diz em quíchua, enquanto seu filho traduz.

O Senhor das Batatas esteve duas vezes na Itália. Foi convidado pelo movimento internacional Slow Food, que se opõe à comida industrial e os sabores artificiais e busca recuperar o gosto e a produção tradicional de alimentos. Julio e seus filhos puderam fritar e empacotar centenas de saquinhos com salgadinhos de batatas nativas peruanas para vender durante o festival Salão do Gosto.

Suas técnicas de cultivo são agora reconhecidas como sistemas de produção agroecológicos. Julio Hancco não chama as suas sementes de “baluarte da agrobiodiversidade”, mas toda vez que participa de um evento escuta que o seu trabalho é importante para todos. Nos últimos 15 anos, ele e os produtores da região têm recebido apoio de ONGs para produzir e vender suas batatas, obter água, se adaptar aos efeitos das mudanças climáticas e criar normas que favoreçam a agricultura familiar.

Julio Hancco colheu reconhecimento, reportagens de jornal que estampam as paredes dos quartos dos seus filhos, muitas visitas de estrangeiros, uma foto com o famoso chef peruano Gastón Acurio, mas não colheu ações reais do governo peruano. Nada mudou muito em suas condições de trabalho, nem na de outros produtores que, como ele, são admirados no mundo todo. Da sua viagem à Itália, o Senhor das Batatas recorda que gostou do salmão e do avião.

Crônica publicada originalmente em espanhol na revista Etiqueta Verde e traduzida por Natalia Viana. A apuração foi possível graças ao apoio da organização Oxfam.

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