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Quando gatos pesam tanto quanto elefantes

O que a perda da biodiversidade tem a ver com o aquecimento global?

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19 de abril de 2024
06:00
Ouça Giovana Girardi

Giovana Girardi

19 de abril de 2024 · O que a perda da biodiversidade tem a ver com o aquecimento global?

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“O balanço da vida na Terra mudou completamente nos últimos 10 mil anos. Se tivéssemos uma balança gigante e pesássemos todos os vertebrados no planeta no início da Revolução Agrícola (10 mil anos atrás), 99% seria de animais selvagens e menos de 1% de humanos. No Antropoceno, os animais selvagens correspondem apenas a 4%, os domesticados pelo homem (vaca, cavalo, cabra, gato), 60%, e o ser humano, 36%.”

“Isso mesmo, todos os animais selvagens do planeta, de ursos polares a elefantes, gorilas ou macacos-prego e saguis, tudo somaria apenas 4% de toda a biomassa de mamíferos no planeta. A biomassa de todos os cães domésticos é hoje igual à biomassa de todos os mamíferos selvagens terrestres, e a biomassa total de gatos é igual à de todos os elefantes selvagens na natureza.”

Se a imagem descrita acima não te fez dar uma chacoalhada na cabeça e pensar: “carambola!!!”, sugiro que você leia de novo. Principalmente o trecho que grifei. É a verdadeira dominação mundial de cães e gatos! E nem vamos entrar aqui no impacto que nossos pets causam diretamente na fauna selvagem.

Retirei essa passagem do recém-lançado Um naturalista no Antropoceno, do biólogo e ecólogo brasileiro Mauro Galetti, professor da Unesp de Rio Claro. Galetti, por sua vez, estava se referindo aos dados do estudo “The global biomass of wild mammals”, publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) em fevereiro do ano passado.

Eu não conhecia esses cálculos e eles me deixaram muito impressionada. Porque é uma imagem cristalina da grandiosidade do impacto que causamos na Terra. 

Galetti me enviou o livro dele há algumas semanas, depois que o debate sobre o Antropoceno foi tema desta coluna por duas ocasiões: aqui e aqui. Como o próprio pesquisador define, a nova obra é uma mistura de autobiografia da sua trajetória como cientista no Brasil, com exemplos de como o ser humano está afetando a biodiversidade e o clima. 

A comparação que eu emprestei para abrir este texto está logo no começo do livro, quando Galetti enumera diversas evidências de que o planeta está mudando por ação da nossa espécie e que justificam, sim, dizer que estamos em um novo tempo, o tempo dos homens, o Antropoceno. 

A mudança no “balanço na vida”, como diz o pesquisador, não se dá só porque criamos rebanhos gigantescos para nos alimentar, mas também porque, no processo de expansão do Homo sapiens pela Terra, fomos eliminando outras espécies. Ele cita uma estimativa da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN): desde o século 16, 800 espécies teriam sido extintas por ações humanas. 

É muita coisa, agora muito pior é a previsão futura: “mais de 42 mil estão caminhando para o mesmo destino se o próprio homem não cessar suas ameaças”, escreve o pesquisador. “Cerca de 41% de todos os sapos e pererecas, 27% de todos os mamíferos, 13% das aves, 37% das raias e tubarões e 21% de todos os répteis estão hoje ameaçados de sumirem do planeta”, detalha.

Galetti tem 57 anos e vem se dedicando, ao longo de sua carreira, a entender os impactos que essa perda de fauna – ou defaunação – causa sobre todo o resto do ecossistema. De forma curta e grossa, pode tudo colapsar, ele explica. 

A extinção de espécies afeta diretamente o bem-estar da humanidade e não é apenas um capricho de ambientalistas. Por isso os cientistas alertam que é fundamental para o nosso futuro evitar que espécies sejam extintas”, escreve o pesquisador, meio que já antevendo comentários do tipo: “Ah, mas qual é o problema de perder uma espécie aqui, outra ali, ainda mais se for em prol do desenvolvimento?”. 

Quem aqui se lembra de quando o presidente Lula, em seu segundo mandato, se queixou do parecer do Ibama contra hidrelétricas no rio Madeira? “Agora não pode por causa do bagre, jogaram o bagre no colo do presidente. O que eu tenho com isso?”, reclamou nos idos de 2007, como recorda este texto do site O Eco.

Galetti não chega a falar sobre os bagres no livro, mas ele traz uma história sobre uma ave que responde bem o que todos nós temos a ver com isso. Ele conta da jacutinga. Não consigo me recordar se já vi uma na natureza, mas a descrição que ele faz no livro já me deixou triste por nunca ter tido essa oportunidade. 

“Essa ave, que parece uma enorme galinha que saiu do salão de beleza, é uma das mais belas de toda a Mata Atlântica. Sua cabeleira branca destoa com as pálpebras azuis e um papo vermelho”, conta. 

O problema é que, além de bonita, ela era também “abundante e saborosa como uma galinha”, diz o pesquisador, o que a tornou alvo fácil de caçadores. “E assim foi o destino da jacutinga. Milhares delas foram caçadas sem piedade”, escreve. De mais de 1 milhão que se estima que existissem no começo do século passado, hoje há menos de 4 mil na Mata Atlântica.

Bem, mas e daí que a jacutinga está sendo extinta? Uma galinha gostosinha e abundante deve ter alimentado muita gente. É a lei da selva, não é? – pode pensar o leitor menos afeito aos apelos da conservação. Então, só que não é bem assim. Galetti conta que a jacutinga é o que ele chama de “megacomedora e dispersora de sementes, uma máquina de comer frutos e plantar árvores”. 

Ele e um colega registraram mais de 40 espécies de árvores plantadas pelas jacutingas, inclusive algumas medicinais, como a espinheira-santa (Maytenus ilicifolia), famosa por aliviar gastrites e azia. 

“Tenho certeza de que você já ouviu falar do chá da espinheira-santa. Dê graças à jacutinga por termos muitas espinheiras-santas na mata. Se extinguirmos as aves dispersoras de sementes como a jacutinga, perderemos não apenas uma ave, mas também a espinheira-santa”, faz graça o pesquisador.

Mas não para por aí. “A jacutinga e outras aves que comem e dispersam sementes de árvores podem também nos ajudar a resolver o aquecimento do planeta”, escreve. Aula básica de biologia, lembra? Árvores se alimentam pelo processo de fotossíntese, em que absorvem gás carbônico (CO2) da atmosfera. E esse carbono fica armazenado em suas folhas, troncos e raízes.

Como é o excesso de CO2 na atmosfera, proveniente, principalmente, da queima de combustíveis fósseis, o principal fator por trás do aquecimento global, estratégias para absorvê-lo são fundamentais. Entre elas: plantar floresta. Mas e a jacutinga?

“Pois bem, essa ave é uma verdadeira máquina de comer e dispersar sementes de árvores, incluindo aquelas de madeira bem dura que capturam muito carbono. A cajati [ou canela] (Cryptocarya mandioccana) é uma árvore que pode atingir 35 metros de altura e possui frutos redondos e amarelados que são adorados por macacos e jacutingas. Então, a jacutinga e os macacos, ao comer e plantar canelas, ajudam a reduzir o CO2 na atmosfera do planeta.”

Não é demais? Confesso que não sabia. Fiquei encantada. 

Tenho sentido um pouco de dificuldade em escrever esta coluna nas últimas semanas. Não porque falte tema para tratar aqui – considerando a premissa que coloquei desde o começo, de que falar sobre a crise climática é falar basicamente sobre tudo, assunto tem até demais. Mas às vezes é inevitável sentir que estou chovendo no molhado. A saída, então, é buscar inspiração. O livro de Mauro Galetti – que está disponível para download gratuito no site da Editora Unesp – traz uma boa dose disso.

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