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Removido a primeira vez em 1967, morador da Vila Autódromo, no Rio, agora luta para não perder a casa para os Jogos Olímpicos

Reportagem
21 de junho de 2013
11:48
Este artigo tem mais de 10 ano

“Eu trabalhei a vida toda nesse país, mas eu passei o tempo todo, desde os meus 14 anos, sendo removido de um lado para outro. Sendo jogado igual peteca, daqui pra ali, dali pra aqui… Você começa a construir a sua vida, a sua casa, aí entra um governo que não vai ficar mais do que quatro anos e fala que você não pode mais ficar ali.”

O cansaço se estampava na expressão contraída de Altair Antunes Guimarães, 58 anos, enquanto conversávamos no Quilombo da Gamboa, na zona portuária do Rio, onde rolava a Copa Popular Contra as Remoções. Disputada por times dos moradores de comunidades atingidas pelos megaeventos no Rio de Janeiro, a “Copa” foi mais uma tentativa bem humorada do Comitê Popular carioca para chamar atenção para os 11 mil moradores ameaçados de remoção em uma das principais cidades-sede da Copa do Mundo, e palco das Olimpíadas de 2016.

Altair Antunes Guimarães corre o risco de, pela terceira vez, perder a casa em que vive. Aos 14 anos, foi removido pela primeira vez, da Ilha dos Caiçaras, na margem sul da Lagoa Rodrigo de Freitas, zona Sul do Rio de Janeiro para a Cidade de Deus, na zona Oeste, criada pelo governador Carlos Lacerda para reassentar os removidos das favelas localizadas nas áreas nobres da cidade. Seu próximo destino foi a Vila Autódromo, hoje vizinha à Barra da Tijuca, uma das áreas mais valorizadas do Rio, e onde a Prefeitura do Rio pretende instalar o Parque Olímpico para 2016.

Da Lagoa Rodrigo de Freitas à Cidade de Deus

Natural de Maricá, cidade de 100 mil habitantes do outro lado da baía da Guanabara, Altair veio para o Rio de Janeiro com um ano de idade e foi morar com a família na humilde comunidade da Ilha dos Caiçaras, vizinha ao Clube dos Caiçaras, de elite, e muito próxima do Jardim de Alá, na divisa entre Leblon e Ipanema, uma das áreas mais nobres da cidade.

“Fui uma das vítimas do embelezamento que o Carlos Lacerda queria fazer”, conta Altair, batendo com uma caneta contra a mesa enquando fala com indignação na voz, no tom de quem sofreu uma injustiça.

Lacerda, um dos principais articuladores do golpe militar de 1964 – depois cassado pelos mesmo militares – promoveu uma série de obras públicas durante seu governo (1960-1965), principalmente no “cartão postal” do Rio de Janeiro, formado pelo entorno da Lagoa, da baía da Guanabara, das praias da zona Sul. Para reassentar os removidos, planejou construir a Cidade de Deus, um enorme conjunto habitacional sem qualquer infraestrutura além das casas, hoje um bairro pobre de 36.500 moradores, também encravado em área nobre, como o Autódromo.

Para Altair, a mudança representou o fim de uma infância feliz: “Eu adorava morar na Ilha dos Caiçaras. Saía de casa e com cinco, dez minutos eu tava na praia. Vivia muito no Jardim de Alá. Brincava muito com os meus amigos, jogava bola”. Hoje, a emoção das lembranças vem impregnada de indignação: “O que o governador Carlos Lacerda disse para justificar a remoção é que a minha comunidade sujava a Lagoa e fazia os peixes morrerem. Hoje a gente vê que isso é uma grande mentira, porque os peixes continuam morrendo. Eles queriam era uma limpeza social, colocar pedalinhos, revitalizar a área da Lagoa Rodrigo de Freitas. Aí tirou a minha comunidade, a Ilha das Dragas, a Praia do Pinto, a Catatumba, o Parque Proletário [todas comunidades na região da Lagoa], e hoje estão tentando tirar o Horto também”, diz, referindo-se a outra comunidade em vias de remoção.

Foi em 1967, já no governo Negrão de Lima, sucessor de Lacerda, que Altair subiu com a família em um antigo caminhão, apelidado de “Coração de Mãe” (por caber sempre mais um), sem saber o que esperar do novo destino, a Cidade de Deus. “Eu ficava olhando as matas, as casas bonitas no alto do Joá e ficava me perguntando, com 14 anos, para onde eu estava indo. Até eu chegar na Cidade de Deus e ver aquele monte de casas, mas não tinha quase ninguém, parecia uma cidade fantasma”, lembra com amargura.

Cidade de Deus, símbolo da exclusão

As famílias foram espalhadas em bairros diferentes, em áreas afastadas da zona Sul. “Eles separaram toda a minha turma de amigos; uns foram para Cordovil zona norte do Rio], outros foram para outros lugares… E eu achei aquilo muito ruim porque até você novamente criar um laço de amizade, isso é muito ruim na sua infância. A Cidade de Deus é enorme, até eu achar as crianças demorou. Mas a gente acabou se acostumando, porque a gente se acostuma a tudo”, diz.

Também se acostumou a trabalhar ainda menino. Aos 15 anos, limpava azulejos para que fossem rejuntados pelos pedreiros durante as obras, foi pedreiro, carpinteiro e até hoje trabalha na construção civil, como encarregado de obras. Enquanto isso, a Cidade de Deus ganhava mais e mais moradores, mergulhada no abandono do poder público, e a violência crescia.

“Aí, irmão, fiquei dos meus 14 anos até os meus 35 anos ali na Cidade de Deus, que era para ser uma cidade modelo que na verdade virou um verdadeiro arsenal de guerra. Tu sabe o que é eu, já casado, ter que deitar com as minhas filhas no chão por causa de bala traçante?”, pergunta.

Mas o pior ainda estava por chegar: “Até que um dia a gente é surpreendido de novo com a remoção por conta da Linha Amarela (via expressa construída nos anos 1990). Eu tava ali no meio do caminho e tinha de sair. De novo”, diz.

Foi nesse segundo despejo que despertou para a política, conta, lembrando da revolta que sentiu quando soube que os apartamentos que eles receberiam depois da remoção não tinham laje nem escada. Começou a participar de núcleo interno de luta social da CDD (apelido carinhoso da Cidade de Deus), o Comocid (Conselho de Moradores da Cidade de Deus). Lá conheceu o ex-ministro da Igualdade Racial e hoje deputado federal Edson Santos (PT-RJ), que era um dos líderes locais.

“Acordei tarde para quem está na minha situação, por isso que eu sempre carrego a pequena junto comigo”, comenta, olhando para a menina que acompanha atenta o time de Vila Autódromo na Copa Popular. Naomi, 11 anos, é a filha mais nova de Altair, adotada com um ano de idade, quando ele já tinha três filhas: Flávia, hoje com 32 anos, Flaviane, 28, e Jennifer, 20.

“Faço questão de levá-la em todos os lugares que eu vou para que ela crie uma consciência de que a gente para viver nesse país a gente tem que estar politizado, tem que ter a noção de como os nossos governos tratam as comunidades”, continua, concluindo com desânimo: “Ela vai entender que as coisas para o trabalhador não são lá grande coisa. Você luta a vida toda sem quase sair do lugar. Porque quando você consegue alguma coisa eles vem lá e te tiram o que você conseguiu”.

Vila Autódromo, alvo da cobiça

Hoje com cerca de 500 famílias, a Vila Autódromo – para onde Altair foi, já separado, ao sair de Cidade de Deus nos anos 1990 -, surgiu como uma vila de pescadores da Lagoa de Jacarepaguá, na década de 1960. Ganhou o nome atual a partir de 1975, quando foram incorporados à comunidade alguns dos trabalhadores da construção do Autódromo. Os moradores ocupam uma área entre o Autódromo e a Lagoa.

Parece obra do destino, mas assim que Altair se estabeleceu no local, o poder público encasquetou com a Vila Autódromo. Em 1992, a prefeitura anunciou que pretendia remover a comunidade por razões ambientais.

As justificativas mudaram, mas a intenção de remover continua a mesma

“A justificativa exata que a prefeitura do Rio usou nessa época foi de que a comunidade causava dano ao ambiente natural, urbano, estético e visual” afirma Gisele Tanaka, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ, que acompanha de perto a situação da comunidade e participou ativamente da elaboração de um plano feito pelos moradores para urbanizar a área, ao invés de remover os moradores.

“De fato uma pequena área da comunidade está em área de preservação ambiental, mas seria possível urbanizar retirando apenas as casas que estão nessa área. Eles usaram esses termos para conseguir a remoção completa”, ela explica, acrescentando que o plano popular sairia até mais barato para os cofres públicas do que a remoção. “Não tem espaço mais na cidade, naquele miolinho deles então [a zona Sul], nem pensar. Agora as construtoras só querem saber da Barra e de Jacarepaguá”, acrescenta a pesquisadora.

Em 1996, o poder público passou a afirmar que a comunidade estava em área de risco, mas depois de uma longa batalha na Justiça, isso também não foi comprovado. Em 2005, quando o Rio se preparava para o Pan-2007 (os jogos Panamericanos), a área voltou a ser cobiçada. “Desde o Pan o papo de remoção ficou muito mais forte, mas isso vem com a dupla César Maia e o Eduardo Paes que já queria a remoção quando era subprefeito da Barra da Tijuca”, afirma a pesquisadora.

A comunidade resistiu ao Pan mas voltou a ser assediada nos preparativos para as Olimpíadas de 2016. Mesmo sem apresentar nenhum projeto pronto, nem mesmo do Parque Olímpico, a Prefeitura anunciou desta vez que a comunidade teria que ser removida para dar lugar a um Centro de Mídia para as Olimpíadas. Em 2010, novamente a alegação para o despejo, mudou: agora o problema era o risco para a segurança dos atletas por sua proximidade da Vila Olímpica, assim como diversos condomínios de luxo que não foram sequer mencionados pela prefeitura.

O objetivo final não é o Parque Olímpico, e sim residências de alto padrão

Em outubro de 2011, o então secretário de habitação do município do Rio de Janeiro, Jorge Bittar, esteve na comunidade, disse que a remoção era uma exigência do Comitê Olímpico Internacional (COI), para a construção do Parque Olímpico, e a Prefeitura começou a cadastrar os moradores que receberiam o aluguel-social até a construção de conjuntos habitacionais do Minha Casa Minha Vida. Os moradores se organizaram, resistiram e o cadastramento foi interrompido.

No mês seguinte, a Prefeitura lançou um edital de licitação para a concessão do terreno público e a definição de uma PPP para erguer o Parque Olímpico. No edital consta a informação de que após a realização dos jogos, 75% da área do Parque Olímpico, de 1,18 milhão de m², poderá ser destinada pela concessionária a “um empreendimento residencial de alto padrão”.

“Então por que o rico pode morar ali e o pobre não? Por que a Carvalho Rocha pode construir e a comunidade não pode ficar?”, se indigna Altair, que desde 2007 preside a Associação de Moradores da Vila Autódromo.

Os moradores conseguiram suspender na Justiça o edital de licitação até que o poder público esclarecesse o destino que seria dado às famílias da Vila Autódromo e a Prefeitura arrumou outra desculpa: agora a Vila Autódromo teria que sair dali por causa de uma alça ligando os BRTs (corredores de ônibus) Transcarioca e Transolímpica que seria construída exatamente em cima da comunidade. E iniciou um processo de aquisição de um terreno a 1,5 km por cerca de R$ 20 milhões para o reassentamento da comunidade. A alça viária, porém, não consta no Relatório Ambiental Simplificado do BRT Transcarioca.

Em fevereiro deste ano, segundo o Comitê Popular do Rio, a Prefeitura voltou a afirmar que a comunidade teria que ser removida por conta do Parque Olímpico, e os moradores continuam lutando para permanecer em suas casas, apesar da pressão do poder público e dos interesses privados. “Alguns moradores já cederam. Entendo eles, estão cansados de isso tudo”, constata Altair que afirma já ter recebido propostas indecentes em troca de afrouxar a luta da comunidade. “Sempre bati de frente com os políticos, tanto que eles nem tentam me comprar mais”, diz.

“Eu acho que o esporte é saudável, não sou contra os Jogos”, explica o líder comunitário. “Mas eu acho que a gente não pode pagar com as nossas casas, com a nossa vida, o preço de uma Olimpíada de 27 dias”, afirma.

O blog Copa Pública é uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora.

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