No encontro das avenidas Washington Luiz e Roberto Marinho, perto do aeroporto de Congonhas, na zona sul de São Paulo, o cenário é de guerra. Destroços de casas que formavam as comunidades do Buraco Quente e do Comando se misturam ao entulho e a lama, dificultando a caminhada de Iraildo Lira Araújo, um técnico de informática, de 32 anos, que resiste na terra arrasada.
“Tá vendo aí? É aqui que eu tô morando”, conta Iraildo, que vivia na comunidade do Buraco Quente desde que nasceu, quando ainda era de casinhas de madeira. Depois de um incêndio, em 2004, “o pessoal conseguiu algumas ajudas de custo da prefeitura e reconstruiu a comunidade em casas de alvenaria”, conta, exibindo o Boletim de Ocorrência do acontecido, que ainda guarda. Iraildo ajudou a construir a casa da mãe, Celina Lira, e foi morar com a filha, Celine, hoje com oito anos, no cômodo de cima.
“Vivi bem aqui, minha filha também. Tinha muita gente, muitos amigos para brincar, se divertir”, relembra, em meio à desolação.
Ironicamente, entre suas melhores lembranças estão os campeonatos de futebol que disputava contra comunidades próximas. Não imaginava que o dia que o Brasil fosse escolhido para sediar a Copa do Mundo, sua vida se desmoronaria.
O fim das comunidades do Buraco Quente do Comando foi decretado quando ainda se imaginava que a Copa seria disputada em território vizinho, o Estádio do Morumbi, do São Paulo Futebol Clube. Para unir o estádio ao aeroporto de Congonhas, planejou-se a construção do monotrilho da Linha 17-Ouro do Metrô, então anunciado como grande legado da Copa do Mundo para São Paulo, entre as obras de mobilidade urbana.
A Copa acabou se transferindo para Itaquera, na zona Leste, com a construção do milionário estádio do Corinthians, mas quase todas as famílias que moravam nas comunidades do Comando e do Buraco Quente já foram removidas. A ligação do aeroporto com a zona Sul – que corta uma região empresarial de São Paulo e chega ao bairro do Morumbi, zona nobre da cidade onde também fica o Palácio do Governo do Estado – continuou nos planos, mesmo depois de retirada do rol de obras da Copa.
Aos moradores, foram oferecidas duas opções: aceitar indenizações com o teto de R$ 120 mil por família, ou se virar com o auxílio-moradia de R$ 400 do governo estadual enquanto esperam por conjuntos da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), prometidos para 2015.
Iraildo não saiu porque não concordou com as condições oferecidas pelo governo, nem com o valor da indenização. A CDHU (Companhia de Desevolvimento Habitacional e Urbano), responsável pelo cadastramento das famílias, concedeu uma indenização única de R$ 105 mil pelo imóvel – embora ele considerasse a casa dele e da filha como uma residência, e a da mãe, outra: “Disseram que, como não tinha banheiro ali, no cômodo superior onde eu morava, eu era agregado à minha mãe”, conta.
A mãe mudou-se para Parelheiros, no extremo da zona Sul a cerca de 25 km da comunidade, mas Iraildo não pode acompanhá-la pois ficaria sem renda: técnico freelancer, a maioria de seus clientes fica em Campo Belo, outro bairro nobre da região. Além disso, a filha perderia a escola que estuda desde pequena. Por isso, acabou ficando com a filha, de favor, em uma das poucas casas que restam da comunidade – que agora não tem nem água – ele tem que ir à comunidade vizinha, o morro do Piolho, para tomar banho.
Iraildo está pedindo a reavaliação de seu caso via Defensoria Pública, argumentado que ele e a filha formam um núcleo familiar independente da mãe para assim ser incluído na fila para um futuro apartamento da CDHU e ter direito a um auxílio-aluguel. Enquanto isso, segue morando no entulho.
Viagem de 40 quilômetros para a casa nova
A maioria dos que optaram pela indenização, como a mãe de Iraildo, foram para bem longe dali, muitas vezes deixando no bairro outras raízes, além das lembranças soterradas no despejo. Werley Juan Ramos Araújo, de 14 anos, viaja cerca de 40 km todos os sábados e domingos para ir da Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo, até a Igreja Independente Vida Nova, em Santo Amaro, zona sul, que antes a ficava a 2 km de casa, na favela do Comando, no Brooklin.
“Eu levo umas três horas. Pego a perua para Guaianazes, depois o trem até a estação Luz. De lá eu pego a linha amarela do metrô para Pinheiros. Aí eu pego outra linha de trem até o Grajaú e mais um ônibus.”
Quando Juan não consegue voltar para casa na Cidade Tiradentes, vai para o Grajaú, onde moram hoje os avós, que antes viviam com os familiares em um mesmo terreno no Comando: incluindo Juan, a irmã e os pais dele, duas tias e onze primos.
Dessas 19 pessoas, 15 foram para o terreno no Grajaú, a 20 km dali, ainda assim conquistado a duras penas. “Se as quatro famílias não se juntassem, ia ficar todo mundo na rua. Com a indenização que a CDHU pagou para cada uma, 52 mil, 85 mil, não dava nem para comprar um barraco na favela”, relata a tia de Juan, Severina Pereira de Oliveira – o terreno com duas casas custou R$ 170 mil. “Aqui só tem duas casas e outra de um cômodo, que é onde eu moro. Vamos ter que construir mais duas e reformar as que estão prontas, tirar o mofo das paredes e trocar janelas”, explica ela. No total, as indenizações somaram pouco mais de 300 mil reais.
O mais triste, porém, é que nem todos os familiares puderam ficar juntos, diz Ana Cristina Ramos, a mãe de Juan, hoje instalada na Cidade Tiradentes com os filhos mais novos – a mais velha ainda mora no Comando. “Eu me sinto muito triste, muito sozinha. O Juan e a Daphne (11 anos), sentem muito a falta da família porque morava todo mundo junto com a família do pai deles.”
Os avós de Juan, que moraram 42 anos no Comando antes da mudança para o Grajaú, também sentem falta da estrutura do bairro em que moravam. “Tudo era bom: os vizinhos eram bons, posto era 5 minutos de casa, o supermercado Extra era 10, a condução era pertinho”, lembra o avô Luiz Pereira de Araújo, carpinteiro de 73 anos.
Aluguel de 400 reais? Onde?
O dilema se repete entre as famílias: como comprar uma casa com as indenizações recebidas sem ir para tão longe ou esperar um apartamento próprio sobrevivendo com 400 reais para pagar um aluguel?
Lucilene Lelis dos Santos, de 29 anos, preferiu enfrentar o auxílio-moradia de 400 reais – “uma mixaria”, como define – e se acomodar em um barraco de madeira na comunidade vizinha do Piolho e esperar por um imóvel por escritura, o prometido apartamento do CDHU. “Eu conheço pessoas que conseguiram a casa, mas por esse valor, é sem escritura. Pra mim ofereceram 97 mil. O que eu consigo com isso?” , pergunta.
Por enquanto, ela vai tentando se acostumar à vida sem sua casinha de alvenaria e sem a vizinhança que conhecia desde menina: “Favela igual à do Comando, onde tem respeito, segurança, eu não vou ver nunca mais. Eu criei minha vida lá. Como você vai sair do seu mundo para ir para outro? É tudo estranho, a gente não confia em ninguém”, lamenta.
Outros têm que passar de uma favela para outra como Gildásio Silva de Almeida, de 59 anos, 23 deles vividos no Buraco Quente, que recebeu 91 mil reais de indenização, depois de recusar duas ofertas menores da CDHU. “Em 15 dias caiu a primeira parcela e eu comprei uma casinha em outra comunidade, no Jardim Selma. Casa não é ruim não. Pra pobre, né?”, brinca. “Não deu para comprar uma casa assim, porque tem que ter escritura. Uma casa com escritura eu não vou comprar por 55 mil em lugar nenhum”, diz.
Jessica Mayara de Brito, de 18 anos, com 87 mil reais de indenização, preferiu enfrentar a distância e, como a mãe de Juan, mudou-se para Cidade Tiradentes. Conseguiu a casa própria mas ficou desempregada. “Pra gente foi bom, porque compramos um apartamento da COHAB quitado e agora temos casa própria”, diz. “Aqui na zona leste é muito mais barato do que na zona sul. Mas em questões de emprego, oportunidade, é difícil porque é muito mais distante”, conta.
Legado adiado
Essas remoções são ainda mais complicadas em uma região – a da ex-avenida Água Espraiada – onde outras obras, como a atual avenida Roberto Marinho, já deixaram muitos desabrigados: 50 mil pessoas foram desalojadas ali entre 1995 e 2006, segundo levantamento da arquiteta e urbanista Mariana Fix, do Instituto de Economia da Unicamp.
No caso da obra do monotrilho, orçada em R$2,8 bilhões na Matriz de Responsabilidades da Copa, em janeiro de 2010, há o agravante de a Linha Ouro, com 18 km de extensão, conexão para 3 linhas do metrô e uma de trem, ter sido planejada para ficar pronta até a Copa do Mundo, o que teoricamente compensaria o alto investimento. Mas a história acabou sendo bem diferente.
Em 16 de junho de 2010, a CBF soltou uma nota oficial dizendo que o Morumbi estava fora da Copa. O projeto de mobilidade urbana da Copa foi mantido, mas o edital de licitação do monotrilho só foi lançado quatro meses depois, em outubro. Menos de dois meses depois, porém, no dia 2 de dezembro, o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual assinaram conjuntamente uma recomendação pedindo a suspensão da concorrência internacional para a construção do monotrilho e dos financiamentos da Caixa previstos para a obra, que contava com recursos dos três níveis de governo. Não havia um projeto básico para o empreendimento, o que é obrigatório, segundo a Lei de Licitações.
O alerta do MPF, no entanto, não foi suficiente para interromper a obra da Copa. A licitação prosseguiu e, em 30 de julho de 2011, o Consórcio Monotrilho Integração (liderado pela construtora Andrade Gutierrez, com participação das empresas brasileiras CR Almeida S/A, MPE – Montagens e Projetos Especiais S/A e da empresa Scomi Engineering BHD, da Malásia) assinou o contrato com o Metrô paulista.
O legado de mobilidade da Copa começou a cair a partir daquele momento. Já na assinatura do contrato, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) anunciou que apenas dois terços da obra do monotrilho ficariam prontos no prazo original. O terceiro seria entregue em 2015.
Quatro meses depois, outra notícia: apenas 7,7 dos 17,7 quilômetros ficariam prontos até a Copa, da estação Morumbi da CPTM ao Aeroporto de Congonhas. O discurso oficial era o de que a obra ainda era prioridade para a Copa por interligar o aeroporto à rede metroferroviária e por passar em uma importante região hoteleira, próxima ao aeroporto. O restante do traçado do monotrilho ficaria para 2016.
Começa o drama das famílias
Os moradores das comunidades atingidas ouvidos pela Pública, dizem que os primeiros avisos do Metrô sobre as remoções vieram no início de 2012, quando funcionários da CDHU realizaram a aferição técnica, como parte do convênio firmado entre o Metrô e o CDHU. Os recursos para que a CDHU fizesse o cadastramento das famílias atingidas e gerenciasse o pagamento das indenizações ou dos auxílios-moradia viriam do Metrô.
Em 12 de junho de 2012, o MPF e o MPE fizeram nova recomendação para o Metrô, afirmando que as informações e os documentos entregues em decorrência daquela primeira recomendação, feita em 2010, não eram suficientes para anular os questionamentos. Mais ou menos na mesma época, os moradores das comunidades atingidas formaram uma comissão para procurar o MPE, alegando falta de informações claras por parte dos funcionários do metrô e da CDHU. Além disso, o Metrô tinha pressa, diziam os moradores. Segundo o metrô, todos os que moravam a menos de 8 metros do local onde seriam instaladas as vigas do monotrilho teriam de ser removidos já em setembro de 2012.
Curiosamente, porém, um hipermercado Extra e um condomínio de luxo, ambos próximos à comunidade e localizados no perímetro condenado, foram poupados, como comprova uma matéria do repórter Rodrigo Gomes e do fotógrafo Raoni Maddalena, da Rede Brasil Atual.
O anúncio seguinte que chegou aos moradores, porém, era ainda mais radical. A informação agora era de que as duas comunidades inteiras seriam removidas para construir os conjuntos habitacionais da CDHU.
Medo e desconfiança
Os primeiros acordos haviam sido feitos antes de 26 de setembro de 2012, quando a promotora Karina Keiko, do Ministério Público do Estado de São Paulo, promoveu a primeira audiência pública entre os moradores das comunidades atingidas, o Metrô e a CDHU. Segundo a ata dessa audiência, já haviam 286 famílias cadastradas e consideradas “vulneráveis” nas duas comunidades, ou seja, que tinham renda individual ou familiar de até 3 salários-mínimos ou até 6 salários-mínimos no caso de pessoas com deficiência, com doença crônica ou idosos. São esses os que têm direito ao atendimento pelo programa habitacional da CDHU.
Na mesma ocasião, a CDHU disse que 15 famílias já haviam aceitado a indenização – segundo os representantes das comunidades, porque não confiavam que, de fato, receberiam os conjuntos prometidos pela CDHU. Outra audiência foi marcada para o dia 29 de setembro, mas o Metrô e a CDHU não compareceram. Enquanto isso, mais e mais famílias passavam a aceitar as indenizações, com medo de ficar sem nada, e o trator transformava as comunidades em cidades-fantasma: após a indenização, o Metrô inutiliza a casa para que não volte a ser habitada, tirando as portas, a janela, o telhado. O entulho, porém, ficou por lá mesmo.
No dia 18 de outubro de 2012, houve outra audiência pública promovida pela promotora Karina Keiko, essa com a presença do diretor presidente da CDHU, Antônio Carlos do Amaral. Foi então que, como registra a ata da audiência, os moradores foram informados de que os três conjuntos habitacionais que seriam construídos nas áreas das comunidades do Comando e do Buraco Quente não seriam destinados exclusivamente a eles, mas também a moradores de outras comunidades próximas. Além disso, segundo Amaral, o prazo mínimo para a entrega dos conjuntos, seria de três anos a partir daquele dia. Ou seja, as pessoas que quisessem os apartamentos da CDHU teriam que sobreviver todo esse tempo com os R$ 400 de auxílio-moradia.
Três dias depois, no dia marcado para ocorrer nova audiência pública, as 142 pessoas das comunidades do Comando, Buraco Quente, Buté e Piolho que compareceram, levaram um bolo homérico. Nenhum representante dos órgãos responsáveis, nem mesmo do Ministério Público, apareceu. As negociações com as famílias, no entanto, seguiam implacavelmente, assim como a destruição das casas nas comunidades.
Finalmente, no dia 24 de outubro de 2012, o MPE instaurou um inquérito civil público para fazer o “acompanhamento do reassentamento dos moradores das comunidades do Comando e do Buraco Quente”, como consta na portaria nº 436/2012. A essa altura, porém, muitas famílias já haviam saído das comunidades semi-destruídas. As questões relativas ao reassentamento das comunidades atingidas foram juntadas ao inquérito 223/2012, assim como uma série de questões urbanísticas relativas à obra do monotrilho – da interrupção da ciclovia da Marginal Pinheiros ao uso paisagístico e do traçado do monotrilho. O inquérito, porém, já foi concluído segundo o MPE.
“Foram feitas várias reuniões com as comunidades, o Metrô, com o serviço social do Ministério Público, da CDHU e fomos resolvendo os casos. Resolvemos todos, falta apenas um caso de uma senhora a ser resolvido. Isso não quer dizer que todas as pessoas saíram satisfeitas”, afirma o promotor do MP Maurício Lopes, que assumiu o inquérito aberto pela promotora Karina Keiko quando voltou de férias.
Apesar dos protestos dos moradores ouvidos pela Pública e do Comitê Popular da Copa, o promotor considera que as famílias foram atendidas “satisfatoriamente”, e garante que os prédios da CDHU serão construídos nas áreas prometidas, e que os conjuntos já estão licitados. “Nós recomendamos que as famílias aceitassem os conjuntos habitacionais, que estarão em posição privilegiadíssima, na boca da estação do monotrilho, mas nem todas puderam”, afirma o promotor, ignorando os problemas apontados pelos moradores, como a dificuldade de sobreviver do auxílio-moradia até a conclusão da obra e o baixo valor das indenizações.
A CDHU informa que irá construir dois empreendimentos no local que somariam 432 apartamentos no total e seriam concluídos em outubro de 2015. Segundo a Companhia, os projetos estão em fase de aprovação na prefeitura de São Paulo e serão ocupados preferencialmente pelas famílias que foram removidas das favelas do Buraco Quente e do Comando.
Em dezembro de 2012, a obra do monotrilho foi retirada da Matriz de Responsabilidades da Copa e incluída no PAC de Mobilidade Urbana, do governo federal, embora o MPF continue questionando a regularidade da obra; agora através de um inquérito civil instaurado em 27 de dezembro do ano passado, após o descumprimento das duas recomendações anteriores.
Outro processo ainda em andamento é o de usucapião coletivo movido pela comunidade do Comando desde 2007, e ainda em trâmite na 2ª Vara de Registros Públicos – Foro Central Cível da Justiça de São Paulo. Com a remoção da comunidade, porém, essa ação não deve ter consequências.
A CDHU informou que 488 famílias foram removidas e que, dessas, 429 já teriam sido atendidas. Mas os números não batem com os do Metrô: segundo o órgão, apenas 383 famílias receberam atendimento. As duas entidades estaduais também divergem quanto ao número de pessoas que permanecem vivendo entre os escombros. Para o Metrô são 10 famílias, enquanto para a CDHU, são 48 famílias, que ocupam 37 edificações.