A Polícia de São Paulo não responde aos pedidos feitos via Serviço Estadual de Informações ao Cidadão (SIC). Pelo menos, não conforme determina a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 2011). O problema aconteceu com o professor de políticas públicas da Universidade de São Paulo (USP), Pablo Ortellado. Em julho do ano passado, ele escrevia um livro sobre as manifestações de junho e enviou à Secretaria de Segurança Pública, via SIC, um questionário sobre a ação, munição, orçamento e efetivo policial destacados para cada dia de manifestação no mês de junho.
De acordo com a Lei de Acesso à Informação, há um prazo de 20 dias para que o órgão se manifeste em resposta ao cidadão, podendo o prazo ser estendido por mais dez dias, com ciência do requerente da informação. Não foi o caso. Depois de 22 dias, o pedido – redirecionado à Polícia Militar – não havia sido respondido. Desde o pedido inicial, passaram-se nove meses até que ele obtivesse uma resposta parcial.
Ao primeiro recurso interposto por Ortellado pela falta de resposta, o responsável pelo atendimento pedia que ele tivesse paciência. “ENTENDA QUE A POLÍCIA MILITAR ESTÁ SEMPRE ABERTA AO DIÁLOGO, DESDE QUE FRANCO E ISENTO DE TENDÊNCIAS E PRECONCEITOS”, segue o texto, sempre em maiúsculas, que ainda conta, brevemente, a história da Polícia Militar e informa que “INDEPENDENTE DA SUA RESPEITÁVEL OPINIÃO, A PM ESTARÁ SEMPRE PRONTA A AJUDÁ-LO SE PRECISO FOR ASSIM COMO O FAZ AO ATENDER AS 45 MIL LIGAÇÕES DIÁRIAS FEITAS À PM”. Não há menção aos nove tópicos enumerados por Ortellado em seu pedido de informação: Efetivo policial, número de viaturas deslocadas, número de armamento menos letal consumido, custo estimado de cada operação, estimativa do número de manifestantes em cada protesto, número de policiais feridos, número de manifestantes feridos e detidos e tipificação dos manifestantes contra os quais foi instaurado inquérito penal.
Um novo recurso foi movido, aprovado pela Corregedoria Geral da Administração. A resposta a esse recurso foi mais coerente com os questionamentos, mas, ainda assim, incompleta (leia aqui o conteúdo). “A coisa mais surpreendente é que a polícia simplesmente descumpre os prazos e descumpre a exigência de dar as informações. Por exemplo, a última notificação que eu tive da Corregedoria, cerca de dez dias atrás, dava cinco dias para a Polícia Militar responder”, conta Ortellado. A resposta veio uma semana depois da data estipulada.
A última resposta recebida por Ortellado, em referência ao terceiro recurso movido por ele, no dia 13 de março, curiosamente contradiz algumas informações divulgadas anteriormente pela própria Polícia Militar de São Paulo. O número de armamentos não letais consumidos foi considerado sigiloso nesse último comunicado (veja aqui), ainda que esses números tenham sido divulgados na resposta anterior (leia box: PM pode ter gasto R$ 180 mil).
De acordo com o artigo 32 da Lei de Acesso à Informação “recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa” constitui ato ilícito. O mesmo consta no artigo 71 do decreto que regulamenta a lei no estado de São Paulo.
Desinformação recorrente
O caso do professor Pablo Ortellado não é isolado. A ONG Artigo 19, que trabalha para garantir as liberdades de expressão, de acesso à informação e de imprensa, realizou quatro pedidos de acesso à informação do fim de 2013 ao início deste ano às polícias de São Paulo. Também houve atraso no cumprimento dos prazos, sem justificativas, além de respostas incompletas. “A gente percebe que a primeira resposta é a que mais atrasa e que é respondida com certo desleixo. O próprio conteúdo da resposta é extremamente confuso, extremamente amplo, nunca responde o que a gente está perguntando e muitas vezes, é abusivo, no sentido de fazer perguntas que não cabem ao órgão questionar”, diz Camila Marques, advogada do Centro de Referência Legal da Artigo 19. Ela lembra de uma resposta da Polícia Civil que menciona “em que pese não conste na solicitação qualquer menção à sua finalidade, deduz-se que seja a atenção aos princípios da legalidade, moralidade, publicidade e eficiência que devem nortear a Administração Pública, razão pela qual se enaltece a iniciativa”. Segundo a legislação os pedidos não precisam de justificativa a sua formulação.
Camila destaca o tom intimidatório de algumas respostas da Polícia Militar de São Paulo ao Serviço de Informação ao Cidadão. É o caso da resposta ao questionamento da Artigo 19 sobre a regulamentação de captação e utilização de imagens e áudio durante manifestações. “(…) PELO DEVER DE CONSCIÊNCIA QUE CARACTERIZA AQUELES COMPROMISSADOS COM A CAUSA PÚBLICA DERIVADO DO JURAMENTO FEITO NA ACADEMIA DE POLÍCIA MILITAR DO BARRO BRANCO, ME EXPONHO A RESPONDER E ACRESCENTAR OUTRAS INFORMAÇÕES COM AS QUAIS PRETENDO AUMENTAR O CONHECIMENTO DO SOLICITANTE SIC. VERIFICANDO O NOME DA PESSOA JURÍDICA E CONHECENDO DA INTIMIDADE QUE A REFERIDA ORGANIZAÇÃO REUNE, FACE A LIDA COM TANTOS PROJETOS RELACIONADOS A DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E LIVRE EXPRESSÃO E COMUNICAÇÕES, COM PATROCÍNIO ATÉ PELA FUNDAÇÃO FORD, JAMAIS PODERIA OCORRER-NOS ACREDITAR SER NECESSARIO ESCLARECER QUE A LEGISLAÇÃO QUE GARANTE A COLETA DE IMAGENS PÚBLICAS NO BRASIL É A PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA”, segue o teor da resposta da Polícia Militar, sempre em caixa alta.
Para a advogada, a Corregedoria Geral da Administração – que responde à última instância dos recursos aos pedidos não respondidos – tem cobrado melhor ação da polícia em relação ao serviço. “A gente tem e-mails de recursos nossos nos quais a CGA fala que a polícia deve responder à organização, porque não é algo sigiloso, não está dentro das escusas da lei, por exemplo. Isso é um ponto positivo, mas mesmo assim a gente tem pedido de que a CGA já mandou dois ou três e-mails cobrando a resposta e a Polícia Militar está ignorando esse tipo de apelo”, revela a advogada.
A ONG Conectas, que atua internacionalmente pela defesa dos direitos humanos, também tem tido problemas em conseguir respostas da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e seus órgãos subordinados. Em janeiro deste ano, a ONG pedia à Secretaria e ao Comando da Polícia Militar informações sobre a atuação das forças de segurança pública nas zonas de exclusão, protocolo de ação e contingente de forças de segurança durante possíveis manifestações nos períodos dos jogos da Copa do Mundo. O acesso a algumas informações foi negado pela justificativa de sigilo (veja aqui). Em julho do ano passado a ONG, junto ao Instituto Sou da Paz, havia enviado oito questionamentos à SSP sobre as operações da polícia, que também requeriam acesso aos relatórios dessas operações, em relação à manifestação do dia 13 de junho do ano passado. Em setembro, as respostas chegaram, mas não respondiam nada. “Páginas e páginas da resposta realçam o importante papel da instituição na ‘preservação da ordem pública’, mas em nada contribuem para a devida satisfação das questões em destaque”, apela o recurso movido pela Conectas. (Leia aqui o pedido original, a resposta da Polícia Militar e o recurso movido pela ONG). A organização continua sem resposta.
“Aqui na Secretaria de Segurança de São Paulo, pela nossa experiência, eles nunca cumprem o prazo. E a impressão que se tem é que eles mandam qualquer coisa para dizer que responderam alguma coisa. Respostas muitas vezes até pouco elaboradas, pouco preocupadas com a satisfação de quem está pedindo a informação”, critica Rafael Custódio, coordenador do Programa de Justiça da Conectas.
“Ainda há uma demagogia grande em torno de acesso à informação. Há um discurso de abertura, de transparência, mas ainda há inúmeros casos de restrição ao acesso”, diz o advogado Rafael Valim, consultor da Artigo 19, que pesquisa temas referentes à Lei de Acesso à Informação. Ele vê uma disparidade entre a aplicação da lei nas diferentes esferas de governo. “Há órgãos que estão bem avançados, a gente precisa reconhecer, mas outros órgãos, sobretudo nas esferas estadual e municipal, resistem, e muito, à aplicação dos comandos da Lei de Acesso”.
Para Eduardo Pannunzo, consultor da Artigo 19 e pesquisador do Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, a lei em si não basta se não houver a organização da informação. “Acesso à informação pressupõe que se tenha informação organizada, sistematizada, para que possa ser disponibilizada ao cidadão. É o que se chama de publicidade ativa. Em geral, nisso se andou muito pouco”, explica, referindo-se ao fato de que ele mesmo, como pesquisador, já enfrentou dificuldades na obtenção de dados das esferas estaduais.
Para Valim, apesar de haver punições previstas no decreto que regulamenta a Lei de Acesso em São Paulo, é preciso que a população cobre dos agentes públicos sua aplicação. “Se os agentes não forem responsabilizados pelo descumprimento da lei, ela não se tornará efetiva”, diz. O Decreto nº 58.052 prevê advertência, multa e até rescisão do vínculo do funcionário com o poder público.
Informação pode permanecer secreta até 2029
A Pública também teve negado o pedido de acesso à informação à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sobre os contratos ou valores de armamento não letal adquiridos desde 2013. Na justificativa do governo do Estado, essa informação é considerada imprescindível à segurança da Sociedade ou do Estado e, portanto, passível de classificação de sigilo.
Segundo a tabela de classificação de sigilo utilizada pela PM, essas informações podem ficar longe do conhecimento público por até 15 anos.
Em um dia de protesto, PM de SP pode ter gastado R$ 180 mil em gás lacrimogêneo
A Polícia Militar de São Paulo pode ter gastado cerca de R$ 180 mil em bombas de gás lacrimogêneo em apenas um dia de protestos. O uso das granadas ocorreu em 13 de junho de 2013, quando houve a repressão policial mais foi violenta contra as manifestações do ano passado. Foi nessa data que a jornalista da Folha de S.Paulo, Giuliana Vallone, teve o olho direito atingido por uma bala de borracha.
Naquele dia foram utilizadas, segundo a PM, 938 bombas de gás lacrimogêneo. O fato tornou-se público após pedido de acesso à informação feito por Pablo Ortellado, escritor e professor da Universidade de São Paulo. Baseando o cálculo no valor unitário de R$ 191,31 de uma GL 203, tipo de cápsula de gás lacrimogêneo da fabricante brasileira de armas não letais Condor, vendido ao Exército em 2012, chega-se a um valor total de R$ 179.279.
A reportagem da Pública, que acompanhou a manifestação nesse dia, recolheu cápsulas vazias da munição que confirmam se tratar do modelo GL 203/L, o mesmo vendido ao Exército.
Ainda de acordo com as informações da PM, no mesmo dia 13 de junho a PM disparou 506 balas de borracha. Como a Condor fabrica diversos tipos de balas, é difícil avaliar o custo dessa munição.
A PM também informou que o efetivo empregado naquela data foi de 900 “profissionais de segurança pública” e que mais de 200 pessoas foram detidas por dano e depredação, sendo registrados 20 boletins de ocorrência. Foram feitas apreensões de máscaras contra gás, coquetéis molotov, rojões, álcool, cachimbos de crack, balaclavas (máscaras), facas, latas de spray, machadinhas, martelos e canivetes.
Entretanto, há disparidade sobre números divulgados pela própria PM. Em outra resposta ao mesmo pedido de acesso à informação, enviada este mês, a PM afirmou que o efetivo na mesma manifestação era de 498 policiais, e que deteve 199 pessoas.
Em ambas as respostas, a polícia não divulga dados sobre protestantes feridos. Já os policiais feridos chegam a 13.