Penduradas na parede do meu escritório estão cópias de duas das várias ameaças de morte recebidas por Óscar Arnulfo Romero Galdámez, o monsenhor Romero, durante seus três anos de arcebispado em São Salvador, capital de El Salvador, entre 1977 e 1980. Uma delas, assinada pela “União Guerreira Branca” e dirigida ao “Assim Chamado Arcebispo Romero” o condena à morte “assim como temos matado a tantos padres comunistas”. A outra, assinada por A Falange, é de maio de 1979 e traz uma enorme suástica, “símbolo do inimigo acérrimo do comunismo” além de um texto no qual avisam que ele “está à cabeça de um grupo de clérigos que em qualquer momento receberão uns 30 projéteis na cara e no peito”.
Desde o assassinato do padre jesuíta Rutilio Grande em 1977 até 1989, mais de vinte religiosos católicos foram assassinados em El Salvador por membros das forças de segurança do governo ou por forças paramilitares (esquadrões da morte); outros foram expulsos do país; ainda outros, detidos e torturados. Todos aqueles da igreja católica salvadorenha dispostos a assumir as conclusões do Concilio Vaticano II e das conferências de Medellín e Puebla – que defenderam a opção preferencial pelos pobres na América Latina – se converteram em inimigos de quem queria manter um sistema de privilégios para uns poucos, e sofrimento e injustiça para a maioria.
Monsenhor Romero foi assassinado por um franco-atirador enquanto celebrava a missa, em 24 de março de 1980. A Comissão da Verdade de El Salvador estabeleceu que os autores intelectuais do crime foram o major Roberto D’Aubuisson, um militar reformado que fora treinado na Escola das Américas; e Mario Molina, filho do ex-presidente e general Arturo Molina. O assassinato encerrou a última possibilidade de evitar uma guerra civil; logo El Salvador foi tomado por um conflito armado que durou doze anos e deixou 100 mil mortos.
Como os assassinos de Romero eram gente de extrema direita, e sobretudo porque o major D’Aubuisson – fundador dos Esquadrões da Morte, grupos paramilitares cujo objetivo era eliminar qualquer suspeito de ser comunista ou apoiar à guerrilha de esquerda – se converteria depois em um renomado político, fundador e líder histórico do partido conservador Arena e em presidente da Assembleia Legislativa, o crime caiu na impunidade. A importância de Romero foi minimizada durante as duas décadas em que a Arena governou El Salvador. No resto do mundo, no entanto, parece que a figura de Romero seguiu crescendo.
Hoje em dia, a barbárie do assassinato é tão evidente que até o atual presidente da Arena reconheceu o monsenhor Romero como líder espiritual do país, e o seu candidato a prefeito de São Salvador incluiu entre as promessas de campanha erigir uma praça em homenagem ao arcebispo. Eles ainda estão longe de assumir também a responsabilidade do seu líder histórico neste crime (e em muitos outros) mas o reconhecimento da importância de Romero é um grande sintoma que vem de mãos dadas com o reconhecimento oficial do seu martírio pelo Papa Francisco. O Vaticano já anunciou que o beatificará o mais rápido possível; provavelmente ainda este ano.
À semelhança do fundador da Igreja
Sei que este é, ou deveria ser, um dia de celebração para todos os membros da comunidade católica salvadorenha. Mas falar da sua beatificação ou sua canonização desde uma perspectiva puramente católica me parece muito pouco. O martírio de Romero deve ser uma festa ecumênica na qual participem católicos, evangélicos, judeus, muçulmanos, agnósticos e ateus. (Conheço algumas pessoas que não creem em Deus mas acreditam, sim, no monsenhor Romero e rezam para ele. Por mais incongruente que pareça, não chega a ser anormal aqui na região. No México há mais devotos da virgem de Guadalupe do que católicos.)
Trata-se de uma festa de todos porque, para além do aspecto religioso, o reconhecimento do martírio de Romero é uma reparação histórica: o estabelecimento inequívoco de que, na sua defesa dos pobres e indefesos, e na sua denúncia das graves violações de direitos humanos, ele agiu inspirado na doutrina social da Igreja e não no marxismo, como acusaram seus inimigos para justificar o ódio que os levou a assassiná-lo.
Romero se manteve apegado aos princípios mais elementares do cristianismo e do humanismo. Mediante a sua defesa dos mais desprotegidos, mediante o seu sacrifício pelos mais pobres, agiu à semelhança do fundador da sua igreja.
Isso se converteu em uma ameaça para todos aqueles que pretendiam manter os seus privilégios às custas da eliminação sistemática de qualquer um que os pusesse em risco. “Se me matarem”, ele disse, “eu ressuscitarei no povo salvadorenho”.
Entre os seus inimigos estavam não somente a ultradireita e os chefes militares daqueles anos. Havia também outro grupo, muito mais obscuro e do qual pouco se fala: vários bispos e sacerdotes que, em uma alta traição aos princípios cristãos e humanos mais elementares, bendisseram literalmente a repressão, conspiraram contra Romero, levaram a conspiração até Roma e se calaram diante do assassinato de seu próprio irmão. Abandonaram o seu arcebispo.
A História é lenta para colocar tudo em seu lugar. Mas sempre termina colocando. Enquanto o monsenhor Romero é objeto de reconhecimento universal, os então todo-poderosos da cúpula militar, os coroneis Guillermo García, Eugenio Vides Casanova e Nicolás Carranza – que protegeram D’Aubuisson e o liberaram quando foi capturado com o plano da operação para assassinar o monsenhor – foram condenados nos Estados Unidos por crime de lesa humanidade.
Vinte militares, entre eles quase toda a cúpula da geração militar conhecida “La Tandona”, esperam ainda um julgamento em Madri pelo assassinato de outros padres, incluindo os seis jesuítas massacrados pelo Batalhão Atlacatl em 1989. Devido a uma ordem de captura internacional, eles não podem sair de El Salvador, único país no qual agora estão (haja paradoxo!) em segurança.
Em 2010, o ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter revisou o diário de seus anos na Casa Branca e fez uma observação, trinta anos depois, que considero pertinente citar: “Quando cheguei à presidência, a maior parte dos regimes na América do Sul e Central eram ditaduras militares. Historicamente, os presidentes estadunidenses, tanto Democratas como Republicanos, apoiaram os ditadores e se opuseram energicamente – às vezes com a ajuda de tropas estadunidenses – a qualquer levantamento popular indígena ou de minorias que ameaçassem o statu quo. As razões para isso eram óbvias. Muitos desses líderes haviam sido treinados em West Point ou Annapolis, falavam inglês, eram familiarizados com o nosso sistema de livre comércio e estavam dispostos a formar sociedades lucrativas com corporações estadunidenses que tinham interesse nos recursos naturais desses países. Estes incluíam bananas, abacaxi, bauxita, ferro, estanho, madeiras exóticas. Era politicamente conveniente tachar os indígenas ou outros grupos de comunistas, ou simplesmente revolucionários. Os sacerdotes católicos que apoiavam os cidadãos pobres e subjugados eram condenados pelo Vaticano como praticantes da teologia da libertação…”
A História tarda, mas chega
Hoje contamos com suficientes provas testemunhais e documentais contra D’Aubuisson, incluindo as confissões de seu chefe de segurança, de seu chofer e uma testemunha incidental. Mas não foi D’Aubuisson o único responsável pelo crime. Escondidos à sua sombra permaneceram sempre os outros dois mandantes do assassinato: o Capitão Eduardo Ávila Ávila, que se suicidou anos depois, atormentado pelos seus incontáveis crimes; e Mario Molina, um piloto civil que segue vivo, filho do ex-presidente Arturo Armando Molina.
Escondidos também estão aqueles que financiaram essa e outras operações dos chamados esquadrões da morte: empresários milionários, poderosos, impunes. Que se aproveitaram do seu dinheiro, do seu poder e da impunidade para dispor da vida de muitos outros seres humanos. Nenhum deles pagou pelos seus crimes.
Mas sempre chega o julgamento da História. Por isso é tão importante a declaração do Papa Francisco.
Em maio de 1977, Romero realizou a missa de exéquias para o sacerdote Alfonso Navarro, assassinado poucos dias antes por um esquadrão da morte autodenominado Unión Guerrera Blanca (o mesmo autor de uma das ameaças que guardo pregadas na parede).
Naquele dia se cumpriam dois meses do assassinato do seu amigo pessoal, o padre Rutilio Grande. Ali Romero disse: “Se não se pode crer na Igreja, se estão confundido padres com guerrilheiros; se estão confundindo a nossa missão evangelizadora com marxismo e comunismo, isso não é justo, irmãos. Mas se a calúnia chegar a se propagar, perguntemos então às outras forças que restam no mundo: e vocês, o que fazem?”.
A sua própria Igreja tardou trinta e cinco anos a responder. Agora Francisco o fez.
Texto originalmente publicado por El Faro. Leia aqui o original em espanhol.