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Fazendeiro ligado a conflito agrário em São Félix do Xingu obteve planos de manejo florestal a partir de falso título de terra e com aval do Estado; situação levou à extração ilegal de madeira

Reportagem
18 de outubro de 2016
12:16
Este artigo tem mais de 8 ano

O fazendeiro José Coelho dos Santos usou um título de terras falsificado descoberto pela Pública para aprovar dois planos de manejo florestal que lhe permitiram extrair mais de 100 mil metros cúbicos de madeira nativa de uma área pública em São Félix do Xingu, no sul do Pará.

Coelho dos Santos é apontado como gerente do Complexo Divino Pai Eterno, região de conflito agrário investigado pela Pública em duas reportagens – A espera que sangra o Divino Pai Eterno e A terra das mortes sob encomenda.

Para aprovar as autorizações de manejo, o fazendeiro apresentou à Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) um Título Definitivo de Venda de Terras (nº 208), que funciona como um atestado de que o Estado, por meio do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), órgão fundiário paraense, lhe vendeu a área.

O documento em questão é falso, confirmou o Iterpa à reportagem. “O Iterpa não confirma emissão de Título Definitivo de Venda de Terras nº 208, em nome de José Coelho dos Santos. Não existindo título não há confirmação de validade”, afirmou o órgão fundiário paraense em nota.

Os planos de manejo foram aprovados para a fazenda Flor da Mata II, que está totalmente inserida na Gleba Pública Bacajá, uma área de mais de 80 mil hectares criada em 1983 e matriculada pela União desde 1996. Como se vê no mapa a seguir, a Gleba Bacajá faz fronteira com o território indígena Trincheira-Bacajá.

À época da criação da gleba, já não havia títulos incidindo sobre a área, afirmam o Incra e o Iterpa, o que reforça a ilegalidade do título declarado por Coelho dos Santos à Semas.

Mapa ilustrado da região do sul do Pará mostra o complexo e fazendas e a região do acampamento no Complexo Divino Pai Eterno (Arte: Caco Bressane)
O mapa mostra a Gleba Bacajá e a Fazenda Flor da Mata II na região do Complexo Divino Pai Eterno (Arte: Caco Bressane)

Em Brasília, Terra Legal desconhecia a Bacajá

Durante a apuração, o Terra Legal, órgão federal responsável pelo ordenamento fundiário das glebas federais da Amazônia Legal, informou à reportagem que a área ainda não havia sido destinada pela União para nenhum fim.

Segundo o coordenador-geral de Cadastro e Cartografia do órgão, Robson Disarz, a Gleba Bacajá “estranhamente” não constava nos bancos de dados do Terra Legal em Brasília. Somente após o contato da reportagem, Disarz informou que a área será incluída em um dos contratos que preveem o georreferenciamento de áreas públicas da União na Amazônia.

A Superintendência Regional do Incra em Marabá (SR-27) confirma a informação do Terra Legal. “Existem posses na área que podem ser comprovadas no mapa de navegação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) da Semas, a consulta é pública. Entretanto, não foram emitidos títulos pelo Terra Legal, nem pelo Getat [Grupo Executivo de Terras do Araguaia e Tocantins] e nem pelo Iterpa”, informou o órgão.

Em agosto, reportagens da Pública mostraram que o Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento de regularização ambiental que virou política federal pelo Código Florestal em 2012, tem sido útil a criminosos justamente no que deveria ser uma de suas maiores vantagens: o controle, monitoramento e combate ao desmatamento.

SEMAS se complica

A fazenda de Coelho dos Santos está localizada numa área de mais de 4 mil hectares – cerca de três vezes o tamanho do município de São Caetano do Sul.

Chamada de fazenda Flor da Mata II ela não se enquadra nos parâmetros legais de regularização fundiária em glebas públicas na Amazônia Legal.

Somente imóveis com até 1.500 hectares são passíveis de regularização. A Pública apurou ainda que Edson Coelho dos Santos e Belcina Coelho dos Santos, irmão e mãe de José Coelho, já apresentaram documentos falsos no processo de regularização fundiária do Complexo Divino Pai Eterno.

Os irmãos Edson e José ainda ostentam licenças ativas emitidas pela Semas para a prática de bovinocultura sobre a Gleba Bacajá válidas até maio de 2019. Edson também apresentou uma matrícula para conseguir a licença na Bacajá – o que conflita com as informações dos órgãos fundiários de que a área não foi titulada.

Antes da confirmação da inexistência do título pelo Iterpa, a Semas afirmou que “o interessado [José Coelho dos Santos] apresentou título definitivo outorgado pelo Estado do Pará e pelo seu órgão fundiário, Instituto de Terras do Pará – Iterpa. Além do título definitivo outorgado pelo Iterpa, o interessado juntou manifestação do Iterpa confirmando a emissão do título definitivo”.

Ainda segundo a Semas, Coelho dos Santos apresentou também a matrícula do imóvel com sua cadeia dominial e o CCIR (Certificado de Cadastro de Imóvel Rural), emitido pelo Incra, que comprovaria sua localização geográfica – mas não a legitimidade da posse. Em outras palavras, a Semas não confirmou a veracidade das informações apresentadas por Coelho dos Santos.

O órgão ambiental paraense não respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem sobre que providência irá tomar após a confirmação da inexistência do título emitido pelo fazendeiro. “Uma das grandes causas das ações de fiscalização do Ibama é a aprovação de planos de manejo irregulares pelas secretarias estaduais de Meio Ambiente”, informa o coordenador-geral de fiscalização ambiental do Ibama, Jair Schmitt.

Um crime, dois crimes

Coelho dos Santos cometeu dois crimes. Primeiro, obteve créditos florestais da Semas com o título falso. Em seguida, cometeu um crime ambiental apurado pela Pública e confirmado pelo Ibama em dezembro de 2015. Segundo o instituto, ele repassou esses créditos florestais a outras madeireiras da região sem extrair de fato a madeira de sua fazenda, simulando a venda de toras da mata nativa.

“É uma conduta típica de grupos criminosos que esquentam madeira”, diz Jair Schmitt. Ao repassarem os créditos, as madeireiras podem explorar mais madeira. Quando essas empresas recebem os créditos sem que haja a venda, fica criada a brecha para esquentar madeira de origem ilegal, como, por exemplo, terras públicas. “Essas empresas recebem esse crédito e aí podem esquentar madeira de origem ilícita”, resume Schmitt.

Entre as receptoras dos créditos de madeira de Coelho dos Santos está a madeireira Legno Trade, acusada de envolvimento em um esquema de lavagem de madeira ilegal revelado em 2015 pela operação Tabebuia, do MPF, Ibama e Polícia Federal. Segundo o Ibama, a Legno Trade exporta madeira para os Estados Unidos.

A autorização dos manejos pela Semas ao fazendeiro permitiu exploração de mais de 110 mil metros cúbicos de madeira. Por ocasião da autuação do Ibama, Coelho dos Santos já havia repassado a diversas madeireiras créditos florestais equivalentes a 11 mil metros cúbicos. O restante, 99 mil metros cúbicos, foi bloqueado. “Cabe agora à SEMAS tomar as providências para reaver esse prejuízo ambiental”, conclui Schmitt.

Cálculos da reportagem com base em dados do IBGE estimam que os créditos de madeira transferidos ilegalmente por Coelho dos Santos possam chegar a R$ 2,5 milhões. O total autorizado pela Semas é calculado em mais de R$ 25 milhões.

Investigação da PF aponta elo com políticos

Os créditos florestais que José Coelho dos Santos recebeu para, segundo o Ibama, cometer crimes ambientais também já foram alvo de investigação no campo eleitoral. Em 2010, a Polícia Federal deflagrou a operação Alvorecer, que denunciou o comércio ilegal de madeira no Pará com a participação de funcionários da Semas e políticos do estado.

Para a PF, as interceptações telefônicas e de mensagens de celular colhidas na investigação revelaram um esquema de aprovação de planos de manejo na Semas.

O nome que aparece com mais suspeita em relação ao plano de manejo aprovado para a fazenda Flor da Mata II é de Claudio Puty (PT-PA), atualmente suplente da Câmara Federal.

Diálogos e mensagens de celular foram coletados pela PF em 2010, quando Puty havia pedido exoneração da Casa Civil paraense para concorrer a deputado federal. Para a PF, os diálogos indicam uma ingerência de Puty na Semas para a aprovação de planos de manejo pelo órgão. Um deles é o de Coelho dos Santos, diz a PF.

Ainda segundo a PF, em agosto de 2010, Puty marcou encontro com Aníbal Picanço, servidor da Semas. Antes de encontrá-lo, Picanço escreveu para outro servidor do órgão, Cláudio Cunha: “Tem algum processo do Puty saindo agora?”.

No mesmo dia, Puty enviou mensagem com vários números de processos administrativos referentes a planos de manejo pendentes de aprovação pelo órgão, diz a investigação policial. Segundo a PF, ele intercedeu para que esses processos fossem aprovados pelo órgão ambiental.

O inquérito apresentado da operação Alvorecer, no entanto, não virou processo e foi rejeitado pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal em 2014 . O advogado Pierpaolo Bottini, que representou Puty no STF, não quis comentar o caso. “O Supremo Tribunal Federal já se manifestou e entendeu que não há qualquer fundamento nas acusações. As conversas não fazem nenhum indicativo de nenhuma prática ilícita”, afirma.

Na Justiça Eleitoral, porém, o entendimento é diferente. O Ministério Público Eleitoral (MPE) do Pará pediu o compartilhamento das provas colhidas pela operação Alvorecer e denunciou Claudio Puty em 2010. O MPE ajuizou uma Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, já que ele foi eleito deputado federal em 2010 com mais de 120 mil votos.

Em 2013, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Pará cassou o mandato de Puty por quatro votos a um. Atualmente, ele recorre do processo no TSE. A Pública procurou-o, mas até a publicação não obteve retorno. O advogado que o representa no TSE também não respondeu às ligações.

Crédito da imagem de destaque: Alberto César Araújo/Greenpeace

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