A partir do dia 30 de julho de 2018, deixamos de usar o selo “distorcido”. No seu lugar, o Truco passa a adotar o selo “Sem Contexto”, cuja definição é: “A afirmação traz informações ou dados corretos, mas falta contexto que é importante para a compreensão dos fatos”. Saiba mais sobre a mudança.
“De acordo com dados constantes do Atlas da Violência de 2017, estudo elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de homicídios cometidos com armas de fogo saltou de 33.419 em 2005 para 41.817 em 2015, um aumento de mais de 25%, o que denota o fracasso da tese que sustenta ser o desarmamento da população civil uma das soluções para a redução da violência no Brasil.” –Wilder Morais (PP-GO), senador, em texto de justificativa do PL 224/2017, divulgado em 14 de julho
Um projeto de lei que visa a autorizar a aquisição de armas de fogo por residentes de áreas rurais está em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado desde 14 de julho. A proposta apresentada pelo senador Wilder Morais (PP) altera a Lei nº 10.826, conhecida como Estatuto do Desarmamento. Na justificativa, Morais afirma que estatísticas do Atlas da Violência comprovariam “o fracasso da tese que sustenta ser o desarmamento da população civil uma das soluções para a redução da violência no Brasil”.
O Truco – projeto de checagem da Agência Pública – entrou em contato com o senador para solicitar a fonte da informação apresentada na justificativa. A assessoria de imprensa do parlamentar apenas reiterou que os dados provêm de um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mas não explicou como tais números comprovam a ineficácia do desarmamento da população.
No entanto, um pesquisador do próprio Ipea afirma que tal conclusão é incorreta, já que há outras estatísticas que demonstram justamente a eficiência do estatuto na redução da violência. Portanto, o Truco classifica a frase com o selo “Distorcido”, já que dados corretos foram usados para produzir uma falsa interpretação da realidade.
O senador cita em seu projeto o Atlas da Violência 2017, publicado em junho pelo Ipea. O estudo de fato mostra que 41.817 pessoas sofreram homicídio em decorrência do uso das armas de fogo no ano de 2015. Morais também acerta o número de homicídios por arma de fogo em 2005 e o aumento percentual em dez anos. No entanto, o senador não inclui em sua justificativa outro dado recente: entre 2014 e 2015, último ano que a pesquisa abrange, os homicídios por arma de fogo caíram 2,2% no país.
Além disso, o estudo também atesta que “há uma larga literatura internacional que mostra que a proliferação da arma de fogo acarreta um aumento na taxa de homicídios na sociedade”. Essa argumentação é contrária à apresentada por Morais. O documento destaca que “conforme indicam as pesquisas científicas, a difusão das armas de fogo é um elemento crucial que faz aumentar os homicídios” e, por esse motivo, é necessário “aprimorar o controle de armas no país” e “restringir os canais que permitem que a arma entre ilegalmente no país”. Segundo o Atlas, no período imediatamente posterior à aprovação do Estatuto de Desarmamento, entre 2003 e 2007, houve redução nas mortes por armas de fogo no Brasil.
Em entrevista ao Truco, Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea e um dos responsáveis pela pesquisa, explica que a conclusão é inversa à do senador. Em sua tese de doutorado, vencedora do 33º Prêmio BNDES de Economia, Cerqueira demonstra matematicamente que a proliferação de armas de fogo é um fator crucial para o aumento da criminalidade. “Um aumento de 1% na difusão de armas de fogo nas cidades causa um crescimento muito maior, de cerca de 2%, na taxa de homicídios do município”, diz.
Cerqueira destaca que é indispensável avaliar o efeito das armas nos índices de criminalidade de forma científica. “Existem vários fatores que influenciam na violência, desde taxas de escolaridade até a proliferação do tráfico de drogas. A violência pode aumentar ou diminuir de acordo com esses aspectos, e isso não tem nada a ver com a eficácia do desarmamento”, esclarece. “É necessário isolar esses fatores em estudos sérios para concluir qual é, de fato, o efeito da arma de fogo nas taxas de criminalidade. Nossos legisladores não podem se basear em ilações pueris como essa, mas em métodos científicos.”
O autor da pesquisa do Ipea cita ainda um manifesto assinado por 56 pesquisadores, entre brasileiros e estrangeiros, contra o desmantelamento do Estatuto do Desarmamento, publicado em setembro de 2016. “Estudos científicos que lograram abordar esse problema de forma estatisticamente adequada geraram evidências empíricas robustas sobre a relação entre armas de fogo e violência. Esses estudos, conduzidos em inúmeras instituições de pesquisa domésticas e internacionais, levam à conclusão inequívoca de que uma maior quantidade de armas em circulação está associada a uma maior incidência de homicídios cometidos com armas de fogo”, conclui o manifesto.
Um relatório feito pela Fundação Friedrich Ebert em parceria com o Instituto Sou da Paz, divulgado em 2015, traz outros dados que sugerem os bons resultados das campanhas de desarmamento. O documento atesta que “entre 1993 e 2003 a taxa de homicídios por 100 mil habitantes, cometidos com armas de fogo, crescia aproximadamente 6,9% ao ano”, mas, a partir de 2004, “houve uma clara reversão de tendência, com o crescimento caindo para 0,3% ao ano”. E conclui: “O Estatuto do Desarmamento foi um fator importante para reverter o crescimento acelerado das mortes por arma de fogo no Brasil.”
Outro relatório, este do Ministério da Saúde, também publicado em 2015, aborda o efeito do estatuto na redução de óbitos por armas de fogo. O ministério conclui que “o primeiro fator apontado nas análises como significativo na redução dos homicídios no Brasil foi o impacto da criação do Estatuto do Desarmamento e das ações de recolhimento de armas nos óbitos por armas de fogo”.
O Truco apurou que a análise de diversos estudos não corrobora a tese apresentada pelo senador na justificativa de seu projeto de lei. Assim, a reportagem classifica o trecho redigido por Wilder Morais como “Distorcido”, já que dados do Ipea mencionados estão corretos mas foram usados para projetar uma falsa interpretação da realidade.