Buscar

"O fogo só veio para nos mostrar que a gente tem que se unir mais", diz cacique Mapu Huni Kuin à Pública; Acre decretou emergência por causa do número de queimadas em agosto

Reportagem
29 de agosto de 2019
11:27
Este artigo tem mais de 4 ano

Na última sexta-feira, 23, o governo do Acre decretou estado de emergência por causa do número de queimadas neste mês de agosto – período que, sozinho, registrou 85% do total de queimadas durante o ano no estado. Foram mais de 2.500 focos de queimadas, com maior concentração em áreas particulares, segundo relatório divulgado pela Secretaria de Meio Ambiente do Acre.

Uma das áreas é um terreno de 10 hectares onde moram cerca de dez famílias indígenas da etnia Huni Kuin, também conhecida como Kaxinawá. Em entrevista à Agência Pública, o cacique Mapu Huni Kuin explicou que o fogo destruiu mais de 50% da área que abriga o Centro Huwã Karu Yuxibu, voltado para o fortalecimento da identidade cultural indígena do povo Huni Kuin. “É um projeto também para revitalizar a cultura de parentes que vivem na cidade, não praticam mais comida, rezas, dança, artesanato, medicina etc.”, diz.

O fogo destruiu mais de 50% da área que abriga o Centro Huwã Karu Yuxibu

Mapu suspeita que o incêndio foi criminoso e pede que as autoridades investiguem o caso. Um Boletim de Ocorrência foi registrado pelos indígenas. Em nota, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) afirma que o incêndio “extrapolou todos os limites” e condenou “a ação de agrocriminosos que, também de forma violenta, agridem a natureza e viola direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, em ações que, por fim, prejudicam a todos”. A Pública procurou a Polícia Civil de Rio Branco para saber sobre a investigação do caso, mas não conseguiu contato.

O Centro Huwã Karu Yuxibu, explica Mapu, fica em Rio Branco, e o acesso é pelo quilômetro 36 da Rodovia AC-90. Localizado dentro de uma Área de Proteção Ambiental – a APA do Igarapé São Francisco –, o fogo, conta o cacique, começou no dia 22 de agosto e destruiu tudo em questão de horas. “Não deu tempo de ninguém socorrer nada”, afirma.

Mapu disse que o fogo consumiu as plantações de banana, açaí e mamão, que fazem parte da alimentação dos indígenas. Outras plantas e animais como tartarugas, tatus e macacos também foram atingidos pelo fogo, assim como as mangueiras do local, ele relata. Além disso, o acesso à água foi comprometido. “O fogo só veio para nos mostrar que a gente tem que se unir mais”, diz Mapu, que agora tenta juntar apoiadores para reflorestar o local, que não é um território indígena e foi comprado para construção do centro.

Mapu faz atividades como vivências espirituais indígenas junto a apoiadores em outros países e também no Brasil para levantar os valores necessários para a compra do terreno. “Esse é o projeto, dar continuidade. Só que temos que procurar exatamente que tipo de motivo causou esse tipo de incêndio. Porque a gente sempre tenta fazer o bem, e vamos continuar fazendo o bem. Mas temos que entender o motivo”, desabafa o cacique, que afirma que o “o centro foi destruído” pelo fogo. “Estamos sendo brutalmente atacados”, afirma.

O site Amazônia Real relata em reportagem que o Corpo de Bombeiros afirmou que a área de floresta destruída da comunidade corresponde a cinco campos de futebol. “O sargento André Silva disse que um grupo de indígenas, que forma uma brigada ambiental treinada, tentou apagar as chamas, mas depois buscou o apoio dos bombeiros, que agiram rápido e evitaram que o fogo chegasse às casas. Por isso os moradores da comunidade Huni Kuin não ficaram desabrigados. Os bombeiros suspeitam de crime ambiental para a ocorrência”, diz a matéria.

Saka huni kui e Buni huni kui, pai e mãe do cacique Mapu: animais e árvores nativas foram atingidos pelo fogo

Antes do fogo, o conflito em Plácido de Castro

Mapu e a família tentam desde 2015 manter em funcionamento o projeto do Centro Huwã Karu Yuxibu (“o dom das medicinas”, em tradução livre). “Queremos o respeito, estamos trabalhando tanto pra construir algo melhor, contribuir com a humanidade, e a gente está sendo atacado dessa forma. Isso traz uma grande preocupação e a gente vem pedindo apoio. Estamos lutando pela vida, pela sobrevivência, pela preservação da natureza”, diz.

Antes de comprar terras nas proximidades de Rio Branco para o desenvolvimento do centro cultural, o cacique Mapu e outros indígenas da mesma etnia haviam iniciado as atividades do Centro Huwã Karu Yuxibu em Plácido de Castro, a cerca de 97 km da capital. Trazidos pelo ex-vereador e então diretor de Articulação Cultural da cidade, Allison Ferreira, os indígenas ocuparam, entre agosto de 2015 e novembro de 2017, um pedaço do Parque Ecológico da cidade.

Mapu Huni Kuin: “Conversei com a família e falei: ‘Não precisamos mais passar por isso’”

Segundo Mapu, o Parque Ecológico estava abandonado havia mais de 15 anos. “Ninguém cuidava mais, estava servindo para os traficantes e até hoje está tendo muito forte isso de facções. E ao mesmo tempo para prostituição”, conta.

A área do parque destinada ao grupo chegou a abrigar 36 pessoas de sete famílias Huni Kuin. Com a ajuda da Universidade Federal do Acre (Ufac), os indígenas reflorestaram 6 hectares dentro do parque, plantando alimentos e mudas de ayahuasca, utilizada em rituais de cura da etnia. As atividades medicinais dos Huni Kuin atraíram turistas e eles chegaram a produzir um festival no local. Além disso, o grupo articulou parcerias com universidades para a promoção de educação ambiental.

Apesar do apoio inicial da prefeitura, a ocupação dos Huni Kuin no Parque Ecológico nunca chegou a ser regularizada. O cacique Mapu afirma ter sido ameaçado de morte em abril de 2016. A investigação, iniciada após registro de Boletim de Ocorrência pelo indígena, não encontrou os responsáveis pela ameaça.

Os indígenas deixaram o local em setembro de 2017, após desentendimentos do grupo com um ex-vereador da cidade e com o dono de uma granja vizinha ao parque, acusado de cercar a terra onde eles se encontravam e impedir o abastecimento de água pelas famílias. “Chegou um momento que eu conversei com a família e falei: ‘Não precisamos mais passar por isso’”, conta Mapu, que é originário da TI Kaxinawa Ashaninka do Rio Breu. Segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA), os Huni Kuin tem população de 7 mil pessoas que vivem no Acre e no sul do Amazonas. No Brasil, as aldeias, algumas já homologadas, se espalham pelos rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus.

A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

Ramon Aquin
Ramon Aquin
Ramon Aquin
Ramon Aquin
Arquivo pessoal

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Leia também

Queimadas quadruplicam em assentamento mais incendiado do Pará

Por , ,

Nossa reportagem visitou uma das áreas públicas mais incendiadas no estado; aumento de queimadas no assentamento Terra Nossa coincide com o "dia do fogo"

Tapirapé defendem território de invasores por conta própria

Por

Há 16 anos os indígenas aguardam a Justiça expulsar os que desmatam a TI Urubu Branco, em Confresa (MT); recursos judiciais de fazendeiros atrasam desintrusão

Notas mais recentes

STF julga suposto “assédio judicial” do governador de Mato Grosso contra jornalistas


Ministério Público de SP investiga contrato contra a dengue da gestão Ricardo Nunes


“Nosso tempo é agora!”: Indígenas cobram Lula, Congresso e STF por demarcações no ATL


O debate sobre a PEC dos militares na política pode ser retomado em maio


Governo e bancada feminina da Câmara tentam aprovar Política Nacional de Cuidados


Leia também

Queimadas quadruplicam em assentamento mais incendiado do Pará


Tapirapé defendem território de invasores por conta própria


Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes