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Responsáveis pela vigilância dos territórios indígenas, guardiões relatam à Pública cotidiano de ameaças e agressões provocadas por madeireiros, grileiros e traficantes invasores

Reportagem
12 de novembro de 2019
12:28
Este artigo tem mais de 5 ano

Na semana passada, entre os dias 4 e 8 de novembro, durante encontro de indígenas vindos dos quatro territórios do norte do Maranhão, o tema do assassinato do guardião da floresta Paulo Paulino Guajajara pairava no ar. Emboscado por madeireiros dentro do território Guajajara no começo do mês, sua morte está sob investigação da Polícia Federal.
A maior parte dos indígenas presentes nas oficinas de primeiros socorros e manutenção de motores na aldeia Maçaranduba, uma das quatro que compõem a Terra Indígena (TI) Caru, eram guardiões da floresta que, assim como Paulino, realizam o monitoramento e a proteção territorial de suas áreas – territórios Alto Turiaçu, Awá-Guajá, Caru e Rio Pindaré.

Abalados pela morte de Paulino, os Guajajara que residem na TI Araribóia cancelaram sua participação na oficina, que contou com guardiões dos povos Ka’apor, Awá-Guajá e os Guajajara que habitam as TIs Caru e Rio Pindaré.

Neles, o abatimento também estava presente, mas escondido sob o fardamento militar, os coturnos e as pinturas negras feitas com extrato de jenipapo na pele. Sobre o efeito da morte de Paulino na continuidade dos trabalhos de monitoramento do território, os cerca de 15 guardiões entrevistados pela Agência Pública assumem um tom de voz colérico.

Para eles, a morte de Paulino só serve de combustível para seguir na luta. “Isso só vai fortalecer o nosso trabalho”, afirmou Marcilene Liana Guajajara, integrante do grupo de Guerreiras da Floresta da TI Caru, grupo de mulheres que, além dos trabalhos de monitoramento, realiza palestras em cidades e povoados próximos para conscientizar os kaar’iws (como os indígenas nomeiam os não índios) sobre a importância da preservação da floresta para os indígenas. Ela conta que no último dia 5 de novembro compareceu a uma audiência pública no município de Imperatriz (MA) com um grupo de Guajajara.

A audiência foi organizada pelo secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Nabhan Garcia, para discutir projetos de interesse do governo federal. “Na audiência, eu falei que o Paulino não morreu. A luta dele continuará, muitos Paulinos surgirão. Aqueles que morreram defendendo seu território, eu tenho certeza que as sementes germinarão, crescerão e darão frutos”, afirma Marcilene. Durante as oficinas, os indígenas revelaram à reportagem o desejo de visitar a TI Araribóia e prestar apoio aos Guajajara que lá vivem nas ações de monitoramento do território. “Nós vamos reunir os guardiões de três territórios próximos e prestar auxílio aos parentes [Guajajara] de lá [TI Araribóia]. É uma região de muitas ameaças”, disse o cacique da aldeia Maçaranduba, Antônio Wilson Guajajara.

Nos últimos quatro anos, a TI Araribóia registrou três grandes incêndios – o pior deles ocorreu em 2015, quando cerca de 50% dos 415 mil hectares da área foram consumidos pelas chamas. Dados do Instituto Socioambiental (ISA) apontam que só em outubro deste ano foram abertos 105 quilômetros de estradas clandestinas para a extração ilegal de madeira na TI Araribóia. Desde que o monitoramento do ISA começou, em setembro de 2018, foram emitidos 4.863 alertas de desmatamento ilegal e detectada a abertura de mais de 1.200 quilômetros de ramais para a exploração madeireira.
Por seu trabalho de denúncia aos invasores de sua terra, Paulo Paulino estava ameaçado.

Há cerca de um mês, quando participou de uma oficina do projeto Todos os Olhos na Amazônia, encabeçado pelo Greenpeace, chegou com colete à prova de balas. “Ele era um cara que chegava e encarava mesmo, se preocupava com o desmatamento que tava muito avançado. Por isso, era muito ameaçado pelos madeireiros”, relata Kakayu Guajá, cacique da aldeia Cocal, da TI Alto Turiaçu, que também participa das missões dos Guardiões da Floresta. Ao todo, 20 indígenas estão no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do estado do Maranhão, boa parte deles atuando como guardiões.

Atualmente, cerca de 17 grupos de guardiões monitoram as terras indígenas maranhenses.Todos os guardiões entrevistados pela reportagem relatam viver contextos semelhantes aos que Paulino enfrentava antes de morrer. Alguns mostraram cicatrizes que ficaram de ações de fiscalização passadas. “Cada um de nós aqui tem uma história igual à do Paulino. Podia ter sido com a gente”, relata um guardião Guajajara que não quis se identificar, mostrando a cicatriz que um tiro de espingarda deixou nas suas costas após uma ação de repressão a madeireiros, em 2015.

“Uma vez Guardião, Guardião para sempre”, diz coordenador dos Guardiões da TI Rio Pindaré, Renildo Guajajara

Guardiões em ação

A Pública teve acesso a vídeos gravados pelos próprios guardiões que mostram a atuação dos indígenas no monitoramento dos territórios. Eles fazem rotinas periódicas – cerca de oito por ano – em suas terras munidos de caminhonetes 4×4, quadriciclos, drones, aparelhos de GPS, espingardas e arcos e flechas. Frequentemente, identificam áreas de atividade criminosa de caçadores, madeireiros e traficantes de drogas e atuam conjuntamente com o Ibama, a Polícia Federal e a Polícia Militar, guiando-os na repressão aos invasores. Em ações isoladas, os indígenas também identificam pontos onde estão invasores, marcam as coordenadas e enviam relatórios às autoridades.

Esse trabalho, que começou a ser estruturado em 2010, vem na esteira do enfraquecimento da Fundação Nacional do Índio (Funai), que representa o Estado na proteção dos indígenas, e do não cumprimento do artigo 231 da Constituição, que prevê a demarcação e proteção das terras indígenas.

Em entrevista à Pública, o governador do Maranhão, Flávio Dino, afirmou que o governo vai criar uma força-tarefa para acompanhar a segurança pública nas terras indígenas do estado – o anúncio oficial será feito, segundo ele, no próximo dia 18 de novembro. “Criamos uma força- tarefa permanente com um corpo de policiais militares, policiais civis e bombeiros com esse espírito de agir em parceria com os órgãos federais. Nós instituímos isso porque percebemos que, infelizmente, os povos indígenas estavam ficando com um encargo que ultrapassa as suas responsabilidades”, avalia.

“Veio pistoleiro aqui pra me matar”, diz guardião da TI Caru

Após uma ação de repressão a madeireiros em 2016, grupo de pistoleiros foi à TI Carú para assassinar o coordenador dos Guardiões da área, Cláudio Silva

Após uma operação realizada em 2016 em conjunto com o Batalhão de Polícia Ambiental, da Polícia Militar do Maranhão, e a Funai, o coordenador dos Guardiões da Floresta da TI Caru foi ameaçado. “Na ação, nós destruímos um trator e um caminhão de madeireiros. As pessoas sabem que eu coordeno o grupo de guardiões. Nesse dia veio um grupo de pistoleiros aqui na beira do rio pra me matar”, relembra Cláudio José da Silva, coordenador-geral dos Guardiões da Floresta da TI Caru desde 2013. A caminho da TI, os madeireiros pararam um indígena na estrada e perguntaram por Cláudio. Ele respondeu que o coordenador não estava na aldeia. “Eles disseram pra ele: ‘Ele vai pagar o prejuízo que deu pra nós, custe o que custar’. Mandaram quatro pessoas dentro de uma Hilux para me buscar aqui na beira do rio”, relembra.

Além de madeireiros, caçadores, pescadores e fazendeiros, a TI Caru é constantemente invadida por pequenos traficantes que plantam roças de maconha no interior do território. “No ano passado, nós fizemos uma grande operação aqui com intermédio da Polícia Militar e conseguimos localizar oito roças de maconha”, relata Cláudio. “Em um sobrevoo em 2017, nós fizemos um trabalho de monitoramento com a Polícia Federal em uma aeronave e encontramos 18 plantios de maconha dentro do nosso território com dois policiais federais do nosso lado. Esperamos oito meses para ter uma resposta deles e nada. Foi quando corremos para a PM”, diz Cláudio Silva.

“Em 2015, a minha cabeça tava valendo pros madeireiros de R$ 60 mil. Acredito que hoje o valor deve estar bem maior, porque de lá pra cá a gente já apreendeu muita coisa. O tempo todo vem mensagem, aviso de que os madeireiros tão atrás da gente”, relata o cacique da aldeia Maçaranduba, Antônio Wilson Guajajara. Ele relata que entre 2010 e 2012, antes do início do trabalho dos guardiões, havia mais de 70 tratores e 100 caminhões no interior da TI Caru tirando madeira diariamente. Quando os trabalhos começaram, as ameaças vieram junto. “Eu já andei escoltado pela polícia em 2014. Depois que nossos trabalhos começaram, a Funai botou a polícia pra ficar aqui dentro. As autoridades queriam que eu saísse daqui. Tem muita gente correndo risco aqui no Maranhão, uma delas sou eu também. Não posso andar pintado, usar meus artesanatos, as fardas. Já me juraram nos povoados, está morrendo muita liderança por aí”, relata o cacique. Neste ano, Antônio Wilson gravou um vídeo em frente a uma serraria no povoado Conquista, no município de Zé Doca (MA), próximo à TI Awá-Guajá, dizendo que a serraria recebia madeira de terras indígenas. “Chegaram uns áudios no WhatsApp pra gente dizendo que ia chegar a minha hora. A gente é como se fosse os policiais dos brancos. Quando a gente sai, está em risco porque os bandidos querem nos pegar”, relata.

Apesar dos riscos, os guardiões comemoram os êxitos de seu trabalho. Muitos indígenas opõem-se ao fato de os parentes assumirem funções do Estado, como a proteção territorial, mas os guardiões desejam seguir desempenhando esse trabalho. “Hoje não tem mais madeireiro grande aqui na TI Caru. A gente acha muito estaqueiro por aí, cara que entra pra serrar madeira e fazer estaca de cerca, mas caminhão e trator é muito mais raro. Cansamos de esperar uma resposta do Estado e resolvemos assumir a proteção das nossas terras”, afirma Cláudio Silva. “A gente tem que proteger o nosso território, mesmo que às vezes não tem apoio. O que aconteceu com o Paulino poderia acontecer com a gente também, mas a ideia nossa é nos unir mais para fortalecer o nosso trabalho. Nosso sonho é deixar o nosso território para as crianças conhecerem”, diz Akadjurichã Ka’apor, coordenador dos Guardiões da Floresta da TI Alto Turiaçu. “Nós fizemos um juramento: uma vez guardião, guardião pra sempre. Temos uma preocupação enorme com o que pode acontecer. A gente vai tomar mais cuidado, andar em silêncio e fazer uma estratégia para que tudo aconteça bem”, avalia Renildo Guajajara, coordenador dos Guardiões da Floresta da TI Rio Pindaré.

Fotógrafo:

A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

Jocy Guajajara
Jocy Guajajara

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