Com os custos estimados em mais de R$ 40 bilhões, a Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE Belo Monte) teve a última turbina inaugurada no último dia 27 de novembro, em cerimônia que contou com a presença do presidente Jair Bolsonaro.
Desde que a usina barrou um pedaço do rio Xingu, no final de 2015, mais de 200 famílias de pescadores que habitam o trecho de 100 quilômetros entre as cidades de Altamira, Anapu, Senador José Porfírio e Vitória do Xingu viram sua fonte de renda e de alimentação diminuir.
“Quando a gente chegou aqui, pra pegar um peixe, bastava uma vara, uma malhadeira e já podia dizer: ‘Vou ali buscar um peixe pra gente almoçar’. Era rapidinho, pegava até 100 quilos. Hoje, você passa o dia todinho e não pega um peixe, talvez durante a noite você consiga pegar um”, conta o pescador Francisco Fernandes da Silva, de 57 anos. Morador da Volta Grande do Xingu há 18 anos, ele reclama que os impactos provocados por Belo Monte desde o início da obra se agravaram com o barramento definitivo do rio.
Em uma série de vídeos enviados à Agência Pública por moradores da Volta Grande do Xingu, o que se vê são pescadores arrastando barcos em meio a pedras para conseguir chegar até a água. Em partes da região, antigamente navegáveis e repletas de peixes, o caminho agora é percorrido a pé.
Um estudo realizado entre 2014 e 2017 constatou que a produção total do pacu – espécie mais comum da região – caiu nos meses de pico da pesca (janeiro e fevereiro) de 929,8 kg em 2015, para 396,3 kg no primeiro ano de barramento, em 2016, situação também influenciada pelo impacto climático do El Niño
A última turbina e o “hidrograma de consenso”
Para a usina funcionar, foi construída uma barragem principal no rio Xingu, que desviou a água necessária na geração de energia para dois reservatórios – com isso, criou-se um “trecho de vazão reduzida”. Nesse trecho, onde está localizada a Volta Grande, a quantidade de água que passa – a vazão – não é mais a natural do rio, mas a artificialmente liberada pela concessionária de Belo Monte, a Norte Energia S.A.
Com a inauguração da última turbina, Belo Monte agora opera com sua capacidade máxima, e a Norte Energia passará a adotar o chamado “hidrograma de consenso”, que estabelece valores mínimos de água que devem chegar ao trecho de vazão reduzida ao longo de cada mês do ano. A ser testada por seis anos, a partir de janeiro de 2020, a medida tem como objetivo mitigar os danos provocados pelo desvio de água para a geração de energia.
Criticado por especialistas por causa de aspectos ambientais, o “hidrograma de consenso” não é suficiente sequer para garantir a viabilidade energética da usina ao longo de todo o ano. Segundo reportagem publicada do O Estado de S. Paulo na última sexta-feira, a Norte Energia quer erguer uma usina térmica para compensar baixa produção de energia e já consultou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) sobre a possibilidade.
A proposta da concessionária prevê vazões mínimas e que estão abaixo, por exemplo, da menor cheia histórica vivida pelo Xingu – de 9.564 m³/s, em 1951. O plano da Norte Energia propõe dois hidrogramas, que devem se alternar a cada ano: no plano A, a vazão mínima no período de cheia, em abril, deve ser de 4.000 m³/s – o equivalente a 1,6 piscina olímpica por segundo; no plano B, a vazão mínima na cheia deve ser de 8.000 m³/s. A média do rio para o período é de mais de 20.000 m³/s.
Segundo a concessionária, o “hidrograma de consenso” garante as condições de navegabilidade e a sobrevivência dos animais no trecho de vazão reduzida. No entanto, especialistas questionam a ausência de estudos da Norte Energia que confirmem que os hidrogramas vão garantir a manutenção da vida no Xingu. É o caso da pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPa) e bióloga do Ministério Público Federal (MPF) Cristiane Costa Carneiro, coautora de artigo que contesta a viabilidade da proposta.
Segundo ela, a medida de redução de danos é, ela mesma, um impacto, e seu efeito cumulativo pode significar o fim do rio. “Se você aplicar as vazões do ‘hidrograma de consenso’, as condições de vida das populações e a fauna aquática não vão resistir porque não vai ter água suficiente para cumprir todos os ciclos biológicos dessa fauna”.
O ano de 2016, o primeiro do barramento do Xingu, foi considerado pelo povo indígena Juruna como “ano do fim do mundo” pela grande mortandade de peixes – mais de 16 toneladas –, momento em que a vazão do rio, no pico da cheia, não passou de 10.000 m³/s. A quantidade de água, maior do que a proposta pela Norte Energia no melhor dos cenários do “hidrograma de consenso”, à época não foi suficiente para alagar as planícies da Volta Grande.
Segundo as fontes consultadas pela reportagem, a diminuição da água no trecho de vazão reduzida provoca, entre outros impactos, a redução das áreas alagadas, fazendo com que os frutos que servem de alimentação para animais como peixes e quelônios caiam em áreas secas. Com a redução da comida disponível, a fauna aquática da Volta Grande emagrece e tem prejudicadas as reservas energéticas utilizadas no período de reprodução. Além disso, ocorre a sobrepesca de algumas espécies que ficam confinadas em poças de água sem conexão com o rio, o que faz com que suas populações diminuam a longo prazo.
Viver da pesca se tornou insustentável
Acostumados com a fartura do rio, tanto a família de Sara quanto a de Francisco hoje sobrevivem graças ao programa Bolsa Família, já que nunca foram contemplados por compensações da Norte Energia. “Você compra a gasolina para botar no motor, compra o gelo. Aí o peixe que você pega não dá para cobrir o gelo e a gasolina, não tem condições de cobrir as despesas, se tornou insustentável”, diz o pescador.
Outros moradores, sem acesso ao programa de transferência de renda, vendem castanhas e frutas da região, ou até mesmo catam latinhas de alumínio para reciclagem. “Esse cenário hoje em dia é uma tristeza, às vezes dá vontade da gente chorar. Tem muito pescador aqui que já tá passando necessidade, vivendo de cesta básica. Não tem condição mais da gente comer, da gente pagar uma conta. O meio da gente ganhar dinheiro eles nos tiraram, que era o peixe. Eles têm que arcar com as consequências do mal que eles fizeram, eles destruíram a natureza”, afirma Sara.
A redução da oferta de peixes na região fez o consumo de pescados diminuir e o de produtos industrializados “da cidade” disparar na Volta Grande. Segundo relatório da própria Norte Energia, o período pós-barramento teve um aumento de 350% no consumo de leite e de 83% no de industrializados em comparação com o período anterior ao da instalação da barragem.
Além dos pescadores, agricultores também foram impactados
A redução da vazão do rio causada pela usina de Belo Monte afeta também as mais de 250 famílias de pequenos agricultores da Volta Grande do Xingu, que praticam a agricultura familiar e vendem os excedentes nas cidades próximas.
Com um cenário de seca e pedras em boa parte do ano, a navegação fica inviabilizada, o que prejudica o escoamento da produção das famílias que vivem da terra, comprometendo a fonte de renda. Assim como os pescadores, os agricultores não foram contemplados em planos de compensação da Norte Energia
“Para nós que somos agricultores, [a aplicação do ‘hidrograma de consenso’] vai piorar mais ainda, talvez a gente até saia. O poço artesiano já tem 8 metros. Se eles reduzirem a água, vai para 10, 12 metros de fundura”, explica Erasmo Alves Teófilo, de 31 anos, oito deles no Xingu. Presidente da Cooperativa da Volta Grande, Erasmo afirma que tirar do orçamento para cavar um poço semiartesiano custa em torno de R$ 5 mil a 15 mil reais. “Isso é impossível”, diz.
Liderança da região, Teófilo diz que a Norte Energia tem se aproveitado do desconhecimento de alguns agricultores, prometendo construção de estradas, escolas e postos de saúde. Ainda segundo ele, a concessionária de Belo Monte tem realizado reuniões com colonos sem a presença de lideranças ou autoridades. “[A empresa] promete mundos e fundos e, quando eles assinam, é um documento constatando que eles aceitam o trabalho da Norte Energia, que a empresa está cumprindo com o dever dela. É uma forma de justificar as ilegalidades que eles estão fazendo. Sendo que, na verdade, não tem projeto”, afirma.
MPF recomenda suspensão da licença de Belo Monte
No dia 29 de outubro, Sara, Francisco e Erasmo Teófilo reuniram-se com o Ministério Público Federal (MPF) em uma comunidade da Volta Grande. Com eles, mais de cem ribeirinhos levaram vídeos da seca no trecho de vazão reduzida e apresentaram demandas ao MP. Representante do órgão na reunião, a procuradora de Altamira Thais Santi se comprometeu a tomar medidas judiciais com urgência para tentar auxiliar os pescadores e demais moradores da região.
“Nós, companheiros, falamos uns com os outros: ‘Gente, vamos pegar com unhas e dentes, porque esse é o último cartucho que nós temos em mão. Vamos segurar e correr atrás’”, resumiu à Pública o pescador Francisco Fernandes.
Autor de mais de 20 ações judiciais contra a usina de Belo Monte, o MPF já havia realizado outras atividades na região em 2019. Em fevereiro, o órgão promoveu uma vistoria interinstitucional de dois dias em 25 comunidades da Volta Grande, entre territórios indígenas e de ribeirinhos – que alegaram à reportagem que a Norte Energia aumentou artificialmente a quantidade de água liberada no trecho de vazão reduzida, o que seria uma prática constante da concessionária quando a região vai ser inspecionada.
Em agosto, o MP protocolou uma recomendação ao Ibama solicitando que o órgão retificasse a licença de operação concedida à Norte Energia, substituindo o “hidrograma de consenso” por um hidrograma que se mostre “apto a garantir as funções ambientais e a sustentabilidade das condições de vida na Volta Grande do Xingu”. Além disso, o MPF recomendou a suspensão do período de testes proposto pela Norte Energia.
Procurado, o Ibama respondeu que “está analisando os impactos ambientais originados pela operação da usina até o momento, especialmente os incidentes sobre o trecho de vazão reduzida conhecida como Volta Grande do Xingu, e avaliando a implementação do teste de hidrogramas alternados. Nos próximos dias o instituto deve se manifestar oficialmente sobre o início dos testes”.
Para Cristiane Carneiro, que teve seu artigo sobre os problemas do “hidrograma de consenso” utilizado na recomendação do MP, a implementação do modelo é uma “irresponsabilidade tremenda” e pode significar “a morte da Volta Grande do Xingu”.
Ela explica: “Ficou claro que essa proposta de vazão não tem um estudo prévio, detalhado, das manchas alagadas, dos ambientes-chave que serão alagados ou não. Os dados que se tem até agora mostram que o sistema não está suportando as vazões que estão passando antes da aplicação do ‘hidrograma de consenso’. Se a gente quer chegar numa vazão ecologicamente suficiente para o ecossistema, você parte de vazões maiores e vai abaixando, vai testando”, defende a pesquisadora.
A reportagem procurou a concessionária Norte Energia diversas vezes, mas não obteve respostas aos questionamentos enviados até a publicação.