Buscar
Agência de jornalismo investigativo
Da Redação

O sócio de Deus

Publicamos com exclusividade um trecho do livro de Gilberto Nascimento sobre a Igreja Universal

Da Redação
27 de janeiro de 2020
12:33
Este artigo tem mais de 4 ano

O jornalista Gilberto Nascimento narra em seu livro, O reino, a trajetória do bispo Edir Macedo e a fundação da Igreja Universal. Leia abaixo, trecho exclusivo concedido à Agência Pública pela editora Companhia das Letras. Leia aqui a entrevista com o autor do livro.

Início dos anos 1990. O bispo Edir Macedo e o pastor Ronaldo Didini ocupavam salas contíguas no prédio da tv Record, na avenida Miruna, próximo ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo. A Igreja Universal do Reino de Deus comprara a emissora havia pouco mais de um ano. O líder da igreja, recém-chegado dos Estados Unidos, passava a dar expediente na empresa das dez da manhã às sete da noite.

Certo dia, ao sair de sua sala, Didini escutou um barulho estranho. Procurou Macedo, não o encontrou. Então ouviu um gemido vindo do banheiro. “Abri a porta e o bispo estava ajoelhado com a cara no chão, orando e chorando. Ele levantou o rosto e olhou para mim. Fechei a porta e saí. Depois ele me chamou, parecia ter chorado muito. Disse que naquela hora estava falando com Deus.” E Macedo contou ao pastor que clamara: “Senhor, eu não sou nada. Sou pior que um verme. Não sei mais o que fazer. Ajude-me. Estou desesperado. Só o Senhor pode resolver”. Então desabafou para Didini: “É humanamente impossível pagar a Record. São problemas de todos os lados. O que vamos fazer? Não sei como resolver”.

Havia várias parcelas a serem saldadas, e a emissora — tecnologicamente obsoleta e precisando de investimentos — acumulava uma dívida astronômica. O poderoso bispo vivia um momento de fragilidade. Ao se prostrar e se humilhar, disse que pretendia demonstrar a Deus a insignificância da criatura diante do criador. Em outros momentos, em cultos e em programas de rádio, Macedo definiu-se como “o estrume do cavalo do bandido”, “um monte de nada, como ser humano”.2 Mas era mestre em virar o jogo: numa postagem em seu blog, anos depois, deu a receita para transformar fraqueza em força. Citando a Bíblia, disse que o poder “se aperfeiçoa na fraqueza”, como pregava o apóstolo Paulo.

O jovem de família católica do município fluminense de Rio das Flores, ex-escriturário da Loteria do Estado do Rio de Janeiro, a Loterj, começou sua igreja em uma funerária e hoje comanda um império religioso, empresarial e midiático. Edir Macedo é um dos raros homens no mundo — e o único no Brasil — a ter sob os seus domínios uma igreja, uma rede de tv, um partido político e um banco.4 Os mecanismos que impulsionaram o crescimento vertiginoso de sua organização foram questionados por adversários e pela Justiça. O bispo se considera perseguido, como Jesus: declara ser vítima de ataques e armações da mídia — liderada pela tv Globo — e da Igreja católica. Contudo, soube fazer da perseguição uma aliada e expandiu a denominação por mais de uma centena de países: “Eu agradeço aos meus adversários, aqueles que me odeiam, aqueles que querem o meu mal. Porque, quanto mais me perseguem, mais eu cresço”.

Certa vez, o bispo disse que ter encontrado Deus foi muito melhor do que fazer sexo. “Foi um prazer tão grande que é até indescritível. Muito mais gostoso do que o gozo de um homem com uma mulher.” Ele crê no que prega: pelo menos é o que afiança o delegado Darci Sassi, que, em 1992, o manteve sob seus cuidados durante onze dias numa cela do distrito policial de Vila Leopoldina, em São Paulo — o religioso fora acusado de estelionato, charlatanismo e curandeirismo.

Nos anos 1990, opositores evangélicos viam em Macedo um homem disposto a tudo, determinado a morrer pelo que crê, e dotado de um sentimento messiânico. Sua atuação à frente da Universal fazia dele menos um pastor, o que cuida de suas ovelhas cotidianamente, e muito mais um evangelista — aquele que “abre caminhos”. O bispo defendia a ideia de que seus seguidores, ao ajudarem a igreja a divulgar a mensagem de Jesus Cristo, firmavam um compromisso com o Criador e adquiriam automaticamente o direito de se sentir como “sócios de Deus”.9 Em um de seus livros, detalhou: “As bases de nossa sociedade com Deus são as seguintes: o que nos pertence (nossa vida, nossa força, nosso dinheiro) passa a pertencer a Deus; e o que é d’Ele (as bênçãos, a paz, a felicidade, a alegria e tudo de bom) passa a nos pertencer, ou seja, passamos a ser participantes de tudo o que é de Deus”.

Macedo buscava sacramentar essa “sociedade” no dia a dia, inclusive junto aos familiares. Incentivava-os a se desapegar de seus bens e a entregá-los a Jesus. Amarílio Macedo, seu tio, contou uma história exemplar. Ao morrer, a avó materna deixou como herança o sítio onde a família foi criada, no vilarejo do Abarracamento, em Rio das Flores. O terreno foi dividido em lotes, que foram distribuídos entre todos os filhos. Com o tempo, um deles, Ivanir, irmão de Amarílio, foi adquirindo ou negociando cada lote com os demais. Acabou ficando com toda a área. No início dos anos 2000, Ivanir contraiu um agressivo câncer de intestino. Ao saber da doença, Edir propôs um negócio: prometeu que o tio seria curado se doasse o sítio à Universal, naquele momento uma das principais denominações neopentecostais do país. O doente ouviu a proposta e ficou de pensar. Não pensou rápido o bastante: morreu antes de dar uma resposta ao sobrinho.

Para Macedo, quando o fiel faz sua doação ou paga o dízimo, Deus contrai uma obrigação com ele e repreende “os espíritos devoradores que desgraçam a vida do ser humano nas doenças, acidentes, vícios, degradação social e em todos os setores da atividade humana que fazem sofrer”. Ao dar provas de sua fidelidade a Deus, o fiel pode exigir uma contrapartida divina e expressar o desejo de prosperidade não como quem pede ou suplica, mas como quem reivindica um direito.

Líder carismático, Macedo alimenta o culto à sua personalidade. Amado e odiado, conquista admiradores e rivais com a mesma facilidade. Ambicioso, para alcançar o que deseja é capaz de atropelar quem estiver pela frente.14 Criou a máxima “para Jesus, até gol de mão vale”, segundo o pastor dissidente Carlos Magno de Miranda, o primeiro a fazer denúncias públicas contra ele, em 1990.

Seu perfil é de empreendedor, não de gestor. Não está à frente da administração rotineira dos negócios ou da igreja, mas acima, acompanhando e fiscalizando. E sobretudo exalando autoridade. Delega poderes e confia a condução de tarefas a assessores, tanto que se um subordinado o procura pedindo orientação, pode ouvir uma reprimenda: se um bispo ou pastor ocupa determinado cargo, ele explica, é para tomar conta da instituição, trazendo soluções e não problemas. “De problemas, eu tô cheio. Então não liga para perguntar nada, você resolve”, dizia aos subalternos.

Macedo dá chances a quem vem de baixo e quer crescer. O ex-pastor da Universal Ronaldo Didini afirma ser grato pela ajuda recebida, diz ter aprendido muito com ele. “Foi muito parceiro, durante muito tempo. Me apoiou e segurou minhas broncas na igreja”, disse o pastor, a quem o bispo, em momentos de lazer e descontração, chamava de “malandro”, tratamento que não raro reservava a seu círculo mais íntimo.

Se ajuda quem deseja subir, Macedo pode ser implacável com figuras que ameacem seu brilho. São imediatamente catapultadas. Vão para o “exílio”, ou uma espécie de “geladeira eclesiástica”, como definiu o cientista de religião Leonildo Silveira Campos. O bispo costuma dizer que, ao dar a corda para a pessoa, “ela vai usar para se salvar ou se enforcar”. Não perdoa quem ousa traí-lo ou desobedecê-lo, ou quem abandona no meio do caminho a missão de “salvar almas”.

O lado autoritário parece penetrar também na esfera privada. Embora sempre ao lado da esposa, Ester, a quem muito elogia — “A gente depende muito um do outro. […] Sem ela eu viro um legume”, confessou —, e mesmo com a relativa liberalidade nos costumes em sua igreja, mantém uma postura patriarcal. A mulher diz ser submissa a ele. Na visão do bispo, o homem deve mandar em casa e a mulher precisa ser boa mãe e dona de casa, além de falar pouco e ser discreta no vestir. No templo, exerce um completo domínio da plateia. Como comunicador, chegou a ser comparado a animadores de auditório, ao estilo de Silvio Santos. “Eu não tenho o sorriso dele, eu não tenho a gargalhada dele, eu não tenho o jeito dele, não. Ele é um excelente comunicador, e eu tenho a minha fé”, rebateu. No púlpito, é uma pessoa dócil e tranquila; fora dele, se exaspera, fica nervoso, e tenso quando contrariado.

O poderoso conglomerado Universal, com suas rádios, tvs e empresas de ramos diversos, foi erguido, apesar do grande poder delegado em atividades rotineiras, sob o estilo autocrático de Macedo. Suas ordens e orientações, transmitidas de qualquer parte do mundo, a qualquer momento, são imediatamente cumpridas, sem qualquer contestação.26 O bispo adota um pensamento cartesiano, binário: busca sempre o sim ou não.27 Maquiavélico, também alimenta intriga entre os subordinados.

A rotina de Macedo começa às oito horas da manhã, já pendurado ao telefone cuspindo ordens. Quando busca resolver um problema, tudo tem de ser decidido na hora, diz a mulher. Não se constrange em acordar bispos, pastores ou assessores às quatro da madrugada para tirar uma dúvida ou cobrar o resultado de alguma tarefa. Seu poder imperial, sua obstinação e a fixação por grandes conquistas garantiram o crescimento de seu reino na terra.

A estrutura da Universal é montada em torno do bispo. Funciona como uma pirâmide, de cujo topo Macedo exerce o poder supremo e se impõe como figura mística, o grande e único líder. A centralização da autoridade exige súditos obedientes e leais, e foi assim que o bispo manteve a unidade da instituição, facilitou a rapidez das decisões e a expansão de seu projeto.29 “Eu não fundei igreja. Eu fundei uma escola, eu fundei uma universidade que ensina a vida. Que ensina os caminhos da salvação, os caminhos da eternidade.”

Se, como diz Didini, a estrutura centralizadora da Universal foi copiada da Igreja católica, ela conseguiu ir além de Roma no âmbito da outorga de poderes à figura máxima: seu líder tem poderes maiores que o papa. Os bispos da Universal podem brigar entre si, mas a instituição não quebra, com Macedo no manejo das rédeas, inconteste. Embora os católicos tenham como figura máxima o sumo pontífice, há grande fragmentação entre eles, a começar pelas diversas ordens religiosas. Macedo já atribuiu a diáspora de fiéis da Igreja católica ao fato de o catolicismo possuir “um braço esquerdo e um direito”, referindo-se às suas correntes políticas: “Jesus disse: nenhuma casa dividida poderá permanecer”.

No início dos anos 1990, o bispo causava polêmica ao defender que o dinheiro não é vil, ao contrário, deve ser usado a serviço de Deus, constituindo um “veículo de felicidade”. Seria elemento precípuo da vida espiritual, a ser sacrificado para a aquisição de bênçãos. Segundo ele, o dinheiro possibilita atingir determinado ponto na escala de poder, o qual só pode ser superado por meio da política. Quando dinheiro e política se cruzam, atinge-se um patamar superior na estrutura de poder. Elegendo representantes para o Legislativo e o Executivo, a igreja obteria maior participação e mobilização dos fiéis, acarretando um crescimento da denominação, com a aquisição de mais veículos de comunicação. Encontros de bispos e pastores enfatizavam o caminho a ser trilhado. Macedo ressaltava que quanto mais emissoras de rádio e tv a igreja tivesse, mais ela seria respeitada.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes