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Dos quase 14 mil conflitos registrados no país desde 2010 pela Comissão Pastoral da Terra, 2019 bateu o recorde negativo: cinco conflitos por dia

Reportagem
17 de abril de 2020
10:06
Este artigo tem mais de 3 ano

Aumentaram os conflitos no campo durante o primeiro ano do Governo Bolsonaro: para cada quatro conflitos diários registrados em 2018, houve cinco em 2019. E esses conflitos têm local preferencial: a Amazônia brasileira, alvo de garimpos e expansão agropecuária, áreas que contam com apoio do presidente Jair Bolsonaro. É na Amazônia legal, região que engloba nove estados, que estão mais da metade dos conflitos registrados em 2019.

Os dados antecipados à Agência Pública são resultado do levantamento anual realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT): “Conflitos no Campo Brasil 2019”, lançado nesta sexta-feira, 17 de abril, Dia Mundial de Luta Camponesa. A 34ª edição do relatório indica que a quantidade de conflitos rurais no primeiro ano do governo Bolsonaro é a maior dos últimos cinco anos.

“A política de desmonte do governo federal para o campo reflete o aumento dos conflitos. É o maior número [de conflitos] desde que publicamos o caderno. A região da Amazônia tem sido o foco durante muito tempo”, diz Jeane Bellini, coordenadora da CPT.

Em relação ao total de conflitos no campo no país, são quase 14 mil desde 2010, segundo levantamento exclusivo da Pública com base nos dados da própria CPT. Além disso, entre 1985 e 2018, 1938 pessoas foram executadas em conflitos por terra, água e trabalho no Brasil e 1789 desses casos (92%) continuam sem qualquer responsável julgado ou preso, diz a Comissão.

Já os números do relatório de 2019 revelam a dimensão das pessoas afetadas: foram mais de 100 mil famílias atingidas apenas nos estados da Amazônia Legal em 2019. Dessas, mais de 6 mil foram expulsas ou despejadas de suas terras.

É o caso de seu D. O., 58 anos, refugiado de Anapu, no Pará, que vivia na mesma gleba onde a missionária Dorothy Stang foi assassinada há 15 anos e que relatou à Pública por que os agricultores continuam a ser acossados por pistoleiros na região. “Alguns companheiros sentiram o choque da nossa saída. Mas, por outro lado, eles olharam e se conscientizaram que eu precisava sair. Ou eu saía ou eu morria. Eles iam me perder de qualquer maneira”, afirmou em agosto do ano passado.

A saída de seu D.O do território está relacionada com a morte de outra liderança, Marciano dos Santos, assassinado a tiros por pistoleiros da região — seu caso está registrado no atual relatório da CPT. Além deste, o caso da execução do sindicalista Carlos Cabral também integra o novo relatório.

A expulsão de famílias na Amazônia brasileira não acontece de forma pacífica: oito em cada dez assassinatos no país envolvendo conflitos de terra ocorreram nos estados da Amazônia Legal. É na região onde também ocorrem a maioria das tentativas de assassinato e as ameaças de morte. Uma das regiões onde os assassinatos são mais frequentes é Anapu, Pará, que desde 2015 registrou mais de uma dezena de mortes, duas delas ocorridas em dezembro: a do líder sem-terra Márcio Rodrigues dos Reis e do conselheiro tutelar Paulo Anacleto, também nos registros do atual relatório.

Além disso, a CPT indica quase 6 mil casos de pistolagem em situações de conflitos de terra na Amazônia e mais de 33 mil ocorrências de invasões em terras de famílias que vivem no campo — o número de ocorrências de pistolagem e invasões também aumentaram em relação a 2018, situação retratada por nossa reportagem, que detalhou um conflito no Pará que se arrasta há 13 anos e no ano passado viveu escalada de violência com famílias atacadas a tiros e suas casas, queimadas.

Além disso, a cada três dias uma mulher sofreu violência em conflitos no campo. Em 2019, o levantamento aponta três assassinatos de mulheres, três tentativas e 47 ameaças de morte. Situação vivida por Maria Márcia Elpídia de Melo, presidente da Associação dos Produtores e Produtoras Rurais Nova Vitória, uma das cinco associações de assentados do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, assentamento de reforma agrária situado entre as áreas rurais de Novo Progresso e Altamira, no Pará.

Em entrevista aos repórteres da Pública, Márcia afirmou que vem sofrendo ameaças constantes por causa de denúncias que fez contra a exploração ilegal de recursos naturais (sobretudo madeira e ouro), venda de lotes e os assassinatos no interior do assentamento. “Eu sei que eu vou morrer. Eu me conformo com a minha morte. Eu só não quero que matem meu filho”, disse emocionada em setembro de 2019.

“Ao longo dos anos nós vimos que quando o estado se faz presente garantido a integridade física das pessoas, o poder privado recua. E na hora que o Estado se afasta, o poder privado avança e expulsa. E o discurso de Bolsonaro dá coragem para quem estava com vontade de adquirir mais terra ilegalmente seguir em frente”, diz a coordenadora da CPT.

Assassinato de indígenas bate recorde sob Governo Bolsonaro

O primeiro ano do Governo Bolsonaro também registra o maior número de lideranças indígenas assassinadas dos últimos 11 anos, situação já apontada em outro relatório, o do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Segundo Roberto Antônio Liebgott, coordenador do CIMI, o garimpo é o carro-chefe dos problemas no agravamento da ofensiva sobre as terras indígenas, além de invasões, roubo de madeira e minérios, grilagem e até mesmo loteamentos.

A CPT aponta sete líderes indígenas assassinados no ano. Houve também dois indígenas não-líderes que foram mortos, o que elevou o número total de indígenas assassinados em conflitos no ano passado para nove.

“Temos visto ao longo dos anos que é quase um processo cíclico, como em 2019, os assassinatos foram seletivos. Por exemplo, entre 9 indígenas assassinados, sete eram lideranças. É uma estratégia de desmobilizar o grupo maior através do assassinato de lideranças”, avalia Jeane, da CPT.

Um dos casos é o de Emyra Waiãpi, da Terra Indígena Waiãpi, assassinada em julho de 2019, com 69 anos. Ela foi morta a facadas em meio a um contexto de invasão de garimpeiros. O corpo foi encontrado em um rio. Segundo a Comissão, há processos minerários na região para mineração de tântalo e ouro.

Além dos assassinatos, os indígenas ainda sofreram nove tentativas de homicídio e 39 ameaças de morte, além de dezenas de agressões e intimidações. Famílias de indígenas são uma a cada três famílias envolvidas em conflitos por terra no ano passado. Foram quase 50 mil em todo o país. Além disso, houve 930 despejos de famílias indígenas e 320 expulsões por proprietários de terras e grileiros.

Segundo o CIMI, também os indígenas Guajajara, no Maranhão, vivem uma escalada de violência com ameaças e mortes — mais de 40 indígenas Guajajara foram assassinados em decorrência de conflitos com madeireiros entre 2000 e 2019, alguns dos casos investigados no especial Amazônia sem Lei, que contou a história da morte de Paulo Paulino Guajajara, 26 anos, assassinado com um tiro no rosto durante emboscada no interior da terra indígena Arariboia. No ataque, Laércio Souza Silva Guajajara também foi baleado no braço e nas costas mas sobreviveu para contar o que viu.

“O discurso e ação do presidente Bolsonaro nos leva a acreditar que a tendência é piorar. E, além disso, nós temos ouvido de nossas equipes, principalmente na Amazônia — mas em outras regiões do Brasil também —, que enquanto os órgãos públicos estão trabalhando numa intensidade menor, por causa da pandemia de coronavírus, os grileiros, madeireiros ilegais, garimpeiros, estão indo a todo vapor”, finaliza Jeane.

Conflitos por água são maior desde 2002

Em 2019, o Brasil também registrou outro recorde: o maior número de conflitos por água desde o primeiro levantamento da CPT, de 2002. Foram 489 conflitos, envolvendo mais de 69 mil famílias.

A maior parte desses conflitos envolveu empresas de mineração. A Comissão registrou mortes, relatos de ameaças e agressões envolvendo conflitos com mineradoras, além de registros de contaminação por mercúrio. A maior parte desses conflitos ocorreu em Minas Gerais.

Dentre a população mais afetada em disputas por água estão pescadores, ribeirinhos, pequenos proprietários e quilombolas.

A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

Bruno Fonseca/Agência Pública
Bruno Fonseca/Agência Pública
Bruno Fonseca/Agência Pública
Bruno Fonseca/Agência Pública

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