“Quem é que vai olhar por cada mulher que foi eleita em cada estado desse país?”. Esta é a preocupação pós-eleições de Anielle Franco, irmã de Marielle Franco, vereadora do Psol assassinada em 2018, no Rio de Janeiro (RJ). O temor da jornalista, educadora e cria do complexo de favelas da Maré, que hoje dirige o Instituto Marielle Franco, acompanha as primeiras eleições municipais após a morte de Marielle — que foram marcadas por atos de violência política, como revelou um levantamento inédito da Agência Pública e consórcio de veículos. A preocupação de Anielle também ecoa próximo à data na qual o assassinato de sua irmã e de Anderson Gomes, ainda sem respostas, completa mil dias: 8 de dezembro.
“A sociedade não tem estruturas de acolhimento eficazes para as mulheres negras vítimas de violência política mesmo depois do que aconteceu com minha irmã. A maioria das mulheres não se sentem confortáveis para denunciar. E isso acontece justamente porque a maioria das mulheres que denunciam não vêem resultados nas denúncias”, afirma.
Neste ano, o instituto lançou a Agenda Marielle Franco, uma série de compromissos e pautas para candidatas que se alinhavam com as mesmas práticas e políticas antirracistas, feministas, LGBTQIA+ e populares defendidas pela vereadora. O manifesto angariou mais de 760 assinaturas de “sementes” do legado de Marielle. Destas, foram eleitas 81 candidatas de diferentes partidos, em 54 municípios do país. “Entrar na política não é uma decisão fácil, nossos corpos já nascem mirados”, diz Anielle que, após a morte da irmã, considerou se candidatar. “Eu achava que, se eu fosse eleita, eu vingaria o que aconteceu com a minha irmã. Mas eu comecei a entender, inclusive com mulheres negras mais velhas do que eu, que a Mari é muito maior do que um partido”, afirma.
Animada com a eleição de mulheres negras como Erika Hilton (Psol-SP) e Tainá de Paula (PT-RJ), que assumiram o compromisso com as pautas da irmã, Anielle acredita, no entanto, que as candidaturas negras ainda têm que ser prioridade na agenda dos partidos. Na capital carioca, mesmo com a novidade da cota do fundo eleitoral por critério de raça, os vereadores negros perderam uma cadeira na representação da Câmara, passando de 15 para 14 eleitos. “Acho que enquanto os partidos, principalmente os partidos de esquerda, não pararem e olharem para a questão racial e não debaterem isso de igual para igual, não vamos andar para frente. É inadmissível você pegar uma lista de candidatos e ver que os quatro, cinco, dez primeiros que vão ganhar mais recursos são candidatos brancos.”
Anielle também comenta o crescimento das candidaturas coletivas, que surgiram como novidade em 2018 e ganharam força em 2020, a disseminação de fake news contra Marielle e a reação dos movimentos negros ao assassinato de João Alberto Freitas no supermercado Carrefour, em Porto Alegre, no dia da Consciência Negra.
Passada a eleição, qual foi o saldo do movimento pela Agenda Marielle Franco?
Eu admiro muito essas mulheres que se colocam à disposição de lutar como políticas e se candidatar. Entrar na política não é uma decisão fácil, nossos corpos já nascem mirados. Mas, em primeiro lugar, eu fiquei muito feliz com a adesão à agenda — eu acho que quem tinha que assinar, quem estava ali olhando para o instituto e visando aquele legado da Mari, assinou e se comprometeu.
Foi incrível que tivemos mais de 700 assinaturas espalhadas pelo país e ver aquelas mulheres eleitas, principalmente várias mulheres negras e trans. Isso me deu um sopro de esperança porque é um lugar predominantemente dominado por homens brancos, cis, héteros. Ver essa mulherada entrando me deu alegria, me deu esperança de viver. Então, para mim, o saldo é muito positivo.
Este foi o primeiro ano em que passaram a valer as novas regras do fundo eleitoral, com recursos destinados a candidatos negros. E houve vitórias muito importantes de mulheres negras e trans em todo o país. Ainda assim, a presença de negros subiu pouco em algumas capitais, como São Paulo, e no Rio encolheu de 15 para 14 cadeiras. Qual sua análise da presença das mulheres negras e de favela nessas eleições?
Quando fizemos a campanha [por cotas para os recursos de candidaturas negras] lá atrás, ela foi muito bem aceita. Tivemos a Coalizão Negra por Direitos, a Educafro, movimentos e coletivos que já são marcantes na luta do movimento negro conosco, e foram diversas assinaturas pedindo esse recurso para as candidaturas negras. Os partidos já podiam começar a fazer isso desde esse ano — embora a gente não tenha visto todos os partidos darem de fato o valor para as candidaturas negras. E ainda assim, vemos que realmente que falta muito ainda. Conseguimos nomes como Erika Hilton [mulher mais votada para a Câmara Municipal de São Paulo], por quem eu tenho muita admiração, por exemplo. Mas ainda falta muito.
Eu acho que, enquanto os partidos, principalmente os partidos de esquerda, não pararem e olharem para a questão racial e não debaterem isso de igual para igual, não vamos andar para frente. É inadmissível você pegar uma lista de candidatos e ver que os quatro, cinco, dez primeiros que vão ganhar mais recursos são candidatos brancos. E o que me pega muito é ver que são candidatos brancos se debruçando na pauta de uma mulher preta que foi assassinada.
Então você acha que a cota do fundo eleitoral ainda não surtiu o resultado esperado por questões de organização interna dos partidos?
Eu acho que sim. A maioria dos partidos é bem racista. A gente não pode negar isso. Tem partido que bota uma mulher preta ou um cara preto para ganhar voto e dizer que é “o homem do levante negro”. Não é assim. De fato, 30% é o mínimo que poderia ser feito, mas eles poderiam ter feito muito mais. Eles não fazem porque não querem mesmo, é minha opinião.
Em muitas capitais do país houve avanço da presença das mulheres nas câmaras de vereadores, mas ainda assim em nenhuma elas chegaram a compor metade da vereança. Como você avalia isso?
É um lugar muito dominado, como eu falei. Eu acho que a gente tem muito o que caminhar ainda, não é fácil ser mulher no Brasil. Eu acredito que talvez, daqui para frente, talvez a gente consiga ter mais cadeiras. Mas quando chega na hora do vamos ver e de decidir quem vai e quem ganha mais, eles sempre colocam mulheres para trás, inclusive as brancas, e predomina o homem branco, que é o padrão de candidato. Aqui no Rio, com duas mulheres disputando a prefeitura, estamos agora em um segundo turno caótico, que é tiro no pé ou tiro na mão. Para se votar no Eduardo Paes [candidato do DEM] ou no [atual prefeito pelo Republicanos, Marcelo] Crivella.
Eu fico feliz em ver esse crescimento, fico feliz por todo mundo que foi eleita, mas reitero algo que é: talvez não passamos de certo número ideal de mulheres eleitas, mas essas mulheres que foram eleitas precisam ser cuidadas. Quem cuida dessas mulheres? Quem é que vai olhar por cada mulher que foi eleita em cada estado desse país? Ao mesmo tempo que a gente fica feliz por elas, a gente fica preocupada em não acontecer o que aconteceu com a Marielle.
O instituto Marielle Franco, em parceria com a Justiça Global e Terra de Direitos, lançou a pesquisa: “A violência política contra mulheres negras”, que joga luz na violência direcionada a essas candidatas. O que te chamou atenção nos dados e por quê?
O que mais nos chamou atenção na pesquisa é a confirmação de algo que já sentíamos. A sociedade não tem estruturas de acolhimento eficazes para as mulheres negras vítimas de violência política mesmo depois do que aconteceu com minha irmã. A maioria das mulheres não se sente confortáveis para denunciar. E isso acontece justamente porque a maioria das mulheres que denuncia não vê resultados nas denúncias. Isso precisa acabar.
Decidimos fazer o estudo com esse recorte porque sabemos que as mulheres negras estão na base da pirâmide da sociedade. Se temos um ecossistema político seguro e acolhedor para mulheres negras, certamente ele será seguro e acolhedor para todo o resto da população. Entendemos que a violência política alcança outros corpos, mas o Instituto Marielle Franco surge de uma violência política contra uma mulher negra e entender as particularidades desse tipo de violência é fundamental para que possamos proteger as mulheres negras que estão se disponibilizando a seguir ocupando esses espaços.
Assim como Marielle, candidaturas coletivas vêm crescendo e trazendo uma nova cara para a política brasileira. Na tua opinião, qual a importância dessas candidaturas coletivas e qual o impacto essa diversidade pode gerar na política mais “tradicional” para se chegar em um espaço que sempre foi negado a tantos grupos?
Eu acho que as candidaturas coletivas tinham que existir já há muito tempo, que bom que a gente está com essa prática. Eu falava em 2018 que, se algum dia eu fosse candidata, eu queria “um bondão” de mulher atrás de mim [risos]. Brincadeiras à parte, temos muito esse histórico de se apoiar uma nas outras, né. Quando a gente consegue construir coletivamente, e aí no mundo dos sonhos seria ótimo se a gente pudesse construir coletivamente com pessoas brancas dignamente, sem que elas tentassem nos passar para trás, seria um grande ganho. Mas eu não sinto muito isso.
E toda candidatura coletiva que eu vi, eu achei incrível a representatividade que tinha dentro mesmo dos movimentos negros, com pessoas trans, mulheres, às vezes uma mulher ou um homem mais velhos. Eu fiquei contente com o que vi, eu acho que são candidaturas importantes. E eu acho que isso vai ser uma tendência, quanto mais o tempo passar.
Mas por quê? O que elas trazem de diferente nessa forma de se inserir na política?
Na minha humilde opinião, eu acho que dá mais força e segurança de lutar. Eu vou dizer isso porque a minha irmã era uma mulher super, hiper segura, mas eu cansei de ver a Mari chegar a casa e pensar: “caraca, como é que vai ser isso? O que eu posso fazer?”. E falar não só com a coordenação dela, mas falar com outras pessoas: falar comigo, falar com a minha mãe, enfim, porque ficava naquela coisa da pressão de ter que resolver tudo. Existe uma pressão. Primeiro, por ser num lugar muito tóxico. E aqui eu estou dizendo sobre a Câmara de Vereadores do Rio [de Janeiro]. Mas eu acredito que em outros estados não seja muito diferente, como no âmbito nacional político que a gente vive hoje. Porque de fato é assustador.
Concorrendo ao segundo turno à Prefeitura do Rio estão os candidatos Eduardo Paes (DEM) e o atual prefeito Marcelo Crivella (Republicanos). Parte dos movimentos sociais de esquerda tem se manifestado com “apoio crítico” à candidatura de Eduardo Paes, mas esse não é um posicionamento unânime. Qual a sua posição em relação ao segundo turno?
Eu acho que eu nunca vou assumir em quem eu vou votar [risos]. É aquela coisa: tiro na mão ou tiro no pé, como eu disse. Mas, eu acho que a gente não aguenta mais quatro anos de Crivella, não tem a menor condição.
Ele foi um incompetente neste mandato. Um pequeno exemplo: eu acompanhei a Marielle na campanha de 2016 na maternidade Maria Amélia, onde eu cogitei ter a minha primeira filha que nasceu em 2016. Eu ia fazer vaquinha pra ter em outro lugar, porque as mulheres estão parindo no chão. Um total descaso. O Eduardo Paes, não é lá isso tudo, eu tenho várias críticas a ele, mas, por exemplo, na área da educação e na saúde foi um pouquinho menos pior. Então, eu não dou meu voto para o Crivella. Não dou mesmo. Sei que tenho muitas críticas ao Eduardo Paes, mas eu prefiro o boêmio ao pastor.
Você comentou que, caso fosse se candidatar, você viria com um “bondão”. Você chegou a pensar na possibilidade de sair candidata? E por que desistiu da candidatura?
Eu cheguei de fato a pensar em se candidatar. Pensei muito em 2018 e 2019 porque eu estava muito tomada de raiva, sendo bem honesta. Eu achava que, se eu fosse eleita, eu vingaria o que aconteceu com a minha irmã. Mas eu comecei a entender, inclusive com mulheres negras mais velhas do que eu, que a Mari é muito maior do que um partido.
O segundo ponto de lucidez é que eu não nasci para ser fantoche de partido. Então eu não iria me candidatar para ter que ficar obedecendo homem branco, hétero nenhum achando que ele poderia mandar no meu mandato ou no que eu tinha que decidir, eu não nasci pra isso. E o terceiro ponto foi a segurança, porque, sem saber o que houve com a minha irmã, de onde partiu; porque que fizeram isso; quem mandou fazer… Eu tenho hoje duas filhas pequenas, eu tenho uma sobrinha e dois pais que a gente cuida, que são muito importantes pra mim.
E a gente tem o gênio e a personalidade muito parecida. E não chegaria lá para aceitar calada as violências que sabemos que acontecem, eu repensei isso. E aí, como todo esse sentimento veio a intenção do Instituto [Marielle Franco], que tem dado muito certo. O ano de 2020 foi muito bom, pra gente entender que a gente pode fazer coisas enormes como sociedade civil e que a gente não precisa resumir a Marielle num único partido. E é óbvio que eu não estou aqui desmerecendo partido nenhum ou quem está nesse papel, mas eu estou querendo mostrar que nem sempre é só a política institucional que resolve. Como, por exemplo, um auxílio emergencial que não chegou e a gente carregou cesta básica e ajudou muitas mil mulheres nas favelas dos Rio de Janeiro, durante muitos meses no ano de 2020.
E pensando do ponto de vista do Instituto, que tem essas vertentes de ação de legado e memória, quais são as ações prioritárias, depois da eleição?
A partir do Instituto, uma das coisas que a gente fez que foi mais prioridade de ação desse ano de 2020 foi a Agenda [Marielle Franco], que foi foda, foi maravilhosa. Mas a gente fez coisas [no intuito] de chegar a lugares que eram obrigações de políticas públicas, e que a gente chegou primeiro. Prioridade foi ajudar o nosso povo que estava sofrendo. Foram muitas toneladas de comidas doadas, diversos projetos como o mapa “Corona nas Periferias”, a Agenda veio agora no final, mas a gente passa o anos de 2020, de março até agora, fazendo coisas em prol de um povo que estava sendo mais atingido por essa pandemia que chegou pra arrasar todo mundo.
A gente acabou de sair de uma imersão, para inclusive planejar, porque tem várias outras ações prioritárias para 2021, a pandemia está aí, não vai sair. A gente pensa, já tem algumas coisas iniciais, como, por exemplo, de sonhos pessoais, ideias da família que são as escolas Marielles, que a gente está montando a metodologia, desenhando como é que vai ser. Tem um centro de memória, que já atingimos o financiamento coletivo o valor inicial para começar a pensar esse espaço. Então, são ações que priorizam a inspirar mulheres e meninas, adolescentes negras a se olharem enquanto nós, enquanto Marielle, e pensarem “eu também posso!”.
Penso que podemos fazer muita diferença através do legado da Marielle e não precisar ser só na política institucional. As ações prioritárias serão voltadas para as mulheres de favela, mães e majoritariamente negras.
Semana passada tivemos a notícia que a justiça do Rio de Janeiro determinou que o Facebook e o Twitter removessem as publicações ofensivas à memória dela. Como tem sido essa luta da família contra fake news, já há dois anos?
Tem sido muito cansativo. A primeira fake news que eu recebi da Marielle foram 24h depois do assassinato dela. Eu nunca vou esquecer isso na minha vida. É exaustivo você ter que ficar lutando, falando de uma pessoa que você conhece, por quem botava a mão no fogo.
Só que as pessoas tinham alguma coisa para falar dela. São pessoas ignorantes que nunca tiveram nem um pingo de vontade de ler ou de se informar. Mas, até nisso o Instituto me ajudou, porque vários trabalhos que nós fizemos, falamos e divulgamos eu tive um retorno bom até de pessoas que falam assim: “Eu já disseminei fake news sobre a sua irmã e eu to lendo aqui o que você escreveu no Instituto, o que você fez aqui eu vim aqui te pedir desculpas”. Já tive algumas mensagens dessas e foram incríveis.
Eu fiquei muito feliz em ter uma notícia como essa, de que vão tirar as publicações ofensivas, porque, do assassinato até o final de 2018, eu ficava madrugadas respondendo fake news por fake news. Era adoecedor. Eu tinha que acordar 5h30 para ir dar aula, mas eu ficava a madrugada respondendo que a minha irmã não era aquilo que estavam falando. A impressão era de que eu estava lutando com uma multidão e não adiantava nada. É muito ruim, você ser criada como a gente foi — ter o caráter que a gente tem, ter o histórico familiar, os valores, os posicionamentos, enfim, minha irmã deu a vida, junto com a minha mãe, para eu poder estudar, ter uma formação fora, morar um pouco fora do país — e hoje ver gente chamando ela de bandida. Ver uma desembargadora, que foi uma mulher totalmente sem noção, replicar fake news. Uma mulher que é desembargadora, que ganha um salário alto pra cacete e não pode dar uma lida? E chegar na frente dos meus pais e não pedir desculpa, falar que replicou e é isso aí. Ou um deputado federal, por exemplo. É muito adoecedor. Se você não tiver terapia e oração, você dá uma surtada.
Mas que bom que tem decisões judiciais como essa da juíza Renata Casanova. A gente, enquanto Instituto, participou também de algumas ações com o Ministério Público aqui do Rio para montar isso. Então, foi muito bom saber que essas fotos vão ser retiradas e que talvez, de agora em diante, isso assuste um pouco as pessoas que disseminam esse ódio ou essas fotos sem o mínimo pudor e acham que vai ficar por isso mesmo.
Falando em memória da Marielle, desde o assassinato foram feitas algumas produções audiovisuais, como documentários, e agora uma série de ficção que está sendo produzida pela Globoplay. Como a família está lidando com isso, do ponto de vista da memória?
Não estamos acompanhando a produção. A gente já pediu, inclusive, para acompanhar. É óbvio que temos acesso na hora que a gente precisar, só que estamos confiando que as coisas vão ser retratadas como elas devam ser.
Não é fácil. Tiveram muitas críticas a isso, mas infelizmente o audiovisual também é um campo que na sua maioria das vezes não são pessoas negras que conseguem chegar primeiro a lugares com mais dinheiro e com mais visibilidade para fazer algumas coisas. Então temos duas pessoas brancas a frente, que é a Antônia [Pellegrino] e o [José] Padilha. Mas eu espero profundamente que muitas outras mulheres negras produzam outras coisas sobre a Marielle.
Daqui a poucos dias, se completa mil dias do assassinato da Marielle e do Anderson Gomes, vocês enquanto familiares de uma vereadora executada estão tendo retorno sobre o avanço das investigações que buscam elucidar quem encomendou o crime?
Desde o começo [das investigações], a gente não tem um acesso exclusivo. Isso é algo que eu até lamento muito, mas também por outro lado acho que é bom, por conta da nossa segurança. Os meus pais são as pessoas que mais recebem informações por estarem sempre presentes no Ministério Público. A gente não tem recebido nenhuma atualização recente.
A gente sempre pergunta. Só para vocês terem uma ideia, minha mãe toda semana pergunta, manda mensagem ao promotor. A última vez que nós tivemos qualquer notícia foi na troca de comando do caso que a minha mãe foi pessoalmente à DH (Delegacia de Homicídios), acho que foi no mês passado, se não me engano, conversar com eles. Mas isso. Eles falam que estão chegando, que está fluindo, que está indo, mas a gente não tem resposta. E não tem nenhuma previsão de resposta.
E como você enxerga a atuação da justiça nesse caso?
Eu procuro sempre pensar que é um tempo que é necessário. Mas eu queria que o silêncio não fosse tanto. Eu entendo que a gente não pode colocar a Marielle num pedestal, morre gente todo dia, mas era uma vereadora eleita com 46 mil votos. Então, não ter resposta, não ter no mínimo atualizações, pelo menos mensais, eu acho muito desesperador. Isso é uma coisa que me chateia.
Cada troca que tem de autoridade, para gente é muito difícil, cada hora é uma pessoa que está a frente. Mas a gente entende e espera, de verdade, que a Justiça esteja fazendo o seu papel e cuidando para que esse crime seja elucidado.
No dia 20 de novembro, João Alberto Freitas foi espancado e morto por seguranças da rede de supermercados Carrefour e isso tem provocado algumas manifestações em diversos estados. Qual o impacto dessas cenas no Brasil de hoje?
Gostaria de dizer que as imagens são um divisor de águas sobre o racismo no Brasil. Mas tá difícil. O Brasil mata um George Floyd a cada 23 minutos. É o João Pedro, a Ágatha, o Marcus Vinicius. Uns têm vídeo; outros, áudio; outros, fotos… E o que dói é ver que as mudanças estruturais e concretas ainda são quase nenhuma. O Will Smith publicou uma frase durante os protestos sobre a morte de George Floyd que rodou o mundo: “a violência racista não piorou necessariamente, ela só está sendo filmada”.
Qual é o papel que as empresas devem adotar para eliminar esse tipo de ação racista e o que pode ser feito em casos como do João Alberto depois que acontecem?
Não são só os funcionários que precisam de treinamento e formação sobre racismo. Os CEOs também precisam ser pessoas verdadeiramente comprometidas em acabar com as desigualdades do mundo e com a violência racista. Aliás, as empresas deveriam garantir paridade nos espaços de tomada de decisão da empresa, e não só ficar convidando pessoas negras para dar ideias. A empresa deveria reverter parte considerável do seu lucro para fortalecer organizações de pessoas negras (e não só o lucro de um dia como o Carrefour fez).
Deveriam espalhar frases e conteúdos por todas as suas lojas no mundo inteiro, comunicações pensadas por pessoas negras. Deveriam romper contratos com empresas de segurança que têm policiais como sócios. Deveriam ser obrigadas a indenizar as pessoas que sofrem todos os tipos de racismo nas suas lojas. Quem sabe assim, doendo no bolso, as mudanças comecem a ser mais profundas. É o mínimo. Mas tem muito mais coisa que deve ser feita.
Como você vê a reação dos movimentos negros organizados e as manifestações que aconteceram até o momento?
A população preta vai às ruas há 500 anos para gritar e pedir que parem de nos matar. E seguiremos fazendo isso até que parem de nos matar de fato. Estamos mais organizadas do que nunca e não daremos nenhum passo atrás. As manifestações são uma prova disso. Vão ter que nos ouvir.