“Acorda, povo de Deus!”, berrou o pastor Silas Malafaia, dando pequenos pulinhos no palco na Assembleia de Deus Vitória em Cristo. A três dias das eleições municipais, o culto no templo-sede – uma construção monumental localizada na Penha, Rio de Janeiro – estava agitado. Cerca de 5.500 pessoas acompanhavam atentas o discurso político preparado por Malafaia.
“Aqui, eu vou te ensinar para você não comer na mão do esquerdopata”, o pastor havia dito antes. Por quase 12 minutos, Malafaia falou sobre a importância de exercer a “cidadania terrena” através do voto. “O voto é seu, não é de pastor. Mas eu quero dar um alerta”, disse. E então discorreu sobre coeficiente eleitoral e, novamente elevando a voz, sobre a importância de votar em candidatos que defendam os princípios e valores cristãos. “O que seu candidato pensa sobre ideologia de gênero?”, gritou, para em seguida emendar: “Ideologia de gênero é dizer para uma criança de 6 anos de idade que ela não é menina nem menino”.
Durante a parte do culto em que o pastor falou abertamente sobre política, a menção à suposta “ideologia de gênero” foi o ponto alto, gerando exclamações e aplausos na plateia. A expressão, não reconhecida no mundo acadêmico, foi criada por uma ala conservadora da Igreja Católica na década de 1990 e tem sido muito usada por grupos religiosos para atacar discussões sobre gênero e direitos das mulheres e LGBTs, especialmente nas escolas.
Malafaia disse que cristãos não podem ser enganados pelos partidos que apoiam “propostas que causam profundas dúvidas na sexualidade de crianças, gerando prejuízos para toda a vida”. Depois do apelo, convidou a todos para assistir à sua live intitulada “Política e religião se misturam ou não se misturam?” e acalmou o tom do discurso. Desejou bom voto a todos e chamou seu candidato a vereador para ser abençoado no púlpito.
“Alexandre Isquierdo, irmão, venha para cá.” Toda a igreja assistiu então ao pastor orar pelo vereador, candidato à reeleição pelo DEM. Criado na igreja e colocado na política pelo próprio Malafaia, Isquierdo é conhecido dos fiéis. “Ele sempre está por aqui, recebendo as bênçãos do pastor no palco, é o nosso candidato”, contou uma frequentadora do templo.
Para Fernando Neisser, advogado especialista em direito eleitoral, a bênção ao candidato durante o culto viola a lei de campanhas eleitorais. “A lei entende também os pedidos implícitos de voto. Nesse caso, não há dúvida que as regras de campanha foram violadas”, disse em entrevista.
Mas, naquela quinta-feira, 12 de novembro, o candidato de Malafaia não apareceu somente no púlpito. Horas antes de o culto começar, uma equipe de 21 jovens uniformizados rondava as ruas que cercam a igreja, carregando materiais da campanha de Isquierdo. Membros da igreja, eles tinham a missão de convencer os fiéis que chegavam para o culto a colar em seus carros os adesivos do candidato apoiado por Malafaia.
Organizados em duplas, carregando grandes adesivos e pranchetas, os jovens se espalhavam pelas calçadas, tentando cobrir todos os quarteirões vizinhos. Em entrevista, contaram à Agência Pública que “estavam trabalhando com a colagem dos adesivos havia 49 dias”, revezando entre as 58 igrejas de Malafaia localizadas na capital fluminense.
No domingo seguinte, o candidato apoiado pelo pastor seria eleito pela terceira vez vereador do Rio de Janeiro, com 17.764 votos. Em consonância com Malafaia, em sua campanha Isquierdo deu lugar de destaque à luta contra a “ideologia de gênero”, divulgando vídeos em que defende na Câmara que “a escola não tem autonomia para tratar de sexualidade e que a educação sexual cabe somente aos pais”.
Cabo eleitoral
“Eu ajudo a eleger deputados federais, estaduais e vereadores”, comentou Malafaia no culto. A Pública foi até a zona norte do Rio acompanhar a cerimônia pré-eleições e entrevistar o religioso depois de ter recebido de um leitor, por questionário, uma denúncia sobre cartas enviadas pela igreja pedindo votos para o vereador. No envelope, enviado para os fiéis cadastrados no banco de dados da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, aparece uma foto de Malafaia ao lado do texto “Alerta! Importantíssimo você ler”. Dentro, o pastor pede o voto em Isquierdo para “impedir a deturpação da família, educação e sexualidade”.
Para Fernando Neisser, o envio das correspondências é outra violação grave da lei eleitoral. “É uma coisa séria, porque há dois problemas nessa prática. O primeiro é que uma empresa, seja uma padaria ou uma igreja, não pode pedir voto”, explicou. “Outro problema é o dinheiro usado para fazer isso. Uma pessoa jurídica, um CNPJ, não pode mais doar para uma campanha, então o custeio dessa propaganda foi feito à margem da prestação de contas. O que pode configurar um caixa dois”, disse.
Para o advogado, esse tipo de financiamento feito por fora e vindo de uma empresa – no caso uma igreja – pode configurar abuso de poder econômico, nos termos da Lei Complementar 64, que trata de casos de cassação e inelegibilidade. O especialista ressalta que utilizar o endereço dos fiéis cadastrados para o envio da correspondência é uma irregularidade.
Na lei eleitoral, há uma regra que determina que empresas não podem vender ou doar seus bancos de dados para uso de candidatos. “Nem que a igreja quisesse repassar os dados com endereços de seus fiéis ela não poderia”, apontou o advogado.
Em entrevista exclusiva à Pública, concedida em uma sala atrás do palco da igreja, Malafaia contou que envia essas cartas pedindo votos há 24 anos. Quando questionado se tinha medo de incorrer em crime eleitoral com a propaganda, o pastor se remexeu na cadeira e, baixando o tom de voz, disse: “Nas cartinhas eu falo que você é livre para votar em quem você quer. Eu apenas dou uma sugestão”.
Conhecido por seu papel de influenciador, antes do surgimento do termo influencer, Malafaia é um comunicador popular há décadas. Através de seu programa semanal na TV exibido desde 1982, construiu um império. Atualmente, além do programa transmitido na RedeTV e emissoras locais da Band aos sábados, tem 118 templos espalhados pelo país, três igrejas em Portugal e cerca de 3 milhões de seguidores em suas redes sociais. É proprietário da segunda maior editora gospel do país.
Malafaia explica que trabalha “anunciando o evangelho, defendendo os valores cristãos e a família”. Tarefa que, na visão dele, inclui a atividade política. O pastor busca instruir o povo evangélico sobre a necessidade de participar da política, defendendo suas crenças e valores. Na visão dele, a esquerda brasileira tenta alienar os grupos religiosos do processo político. “É uma guerra ideológica. Então, você pensa que vou dar mole para eles? Não tem moleza, é pau, é ideológico.”
Para Malafaia, nessa batalha uma das estratégias importantes é eleger vereadores como Isquierdo, que entrou na política com a sua bênção. “Era um jovem, que liderava minha juventude aqui. E eu falei: ‘Quer ser candidato a vereador?’. Vi que ele tinha uma veia política. Ele falou que topava e eu elegi ele”, disse. Em 2012, primeiro ano de Isquierdo no pleito, a editora de Malafaia doou R$ 194 mil para a campanha, e o próprio pastor repassou R$ 80 mil. Anos depois, em entrevista para uma reportagem da Pública de 2014, Malafaia comentaria com orgulho que “pegou um jovem, ilustríssimo desconhecido e elegeu-o o sétimo mais votado da cidade”, referindo-se a Isquierdo.
Nicho eleitoreiro
Na Câmara de Vereadores do Rio, o afilhado político de Malafaia defende as ideias do padrinho fervorosamente. É autor de um projeto de lei, em tramitação, que pretende proibir o serviço público e privado de saúde a receitar uma terapia de hormônios para menores de 18 anos. No texto da proposta, Isquierdo defende também a proibição de cirurgias de transgenitalização, conhecida popularmente como “mudança de sexo”, para menores de 21 anos. No início de 2020, o Conselho Federal de Medicina publicou uma resolução que reduz de 18 para 16 anos a utilização da terapia hormonal e de 21 para 18 a idade mínima para cirurgias.
Além de tocar nos direitos das pessoas transsexuais, Isquierdo propôs dois projetos de lei antiaborto. Em um deles, pretende criar uma semana de conscientização e, em outro, um programa municipal de campanha contra o aborto. Ambos os projetos estão tramitando em comissões.
Ainda no tema da sexualidade, em 2015 Isquierdo assinou com outros colegas da Câmara um projeto para instituir o dia do orgulho hétero. Dois anos depois, em 2017, votou contra o projeto da vereadora Marielle Franco (Psol) que propunha o dia do orgulho lésbico.
No ano passado, o protegido de Malafaia chamou atenção por ter levado ao púlpito da Câmara um gibi de histórias em quadrinhos que mostrava um beijo gay. Aos gritos, em seu discurso, repercutido na época massivamente por WhatsApp e outras redes sociais, afirmou: “É uma covardia mostrar para crianças super-heróis homens se beijando”. Depois da fala de Isquierdo no plenário, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, mandou retirar o gibi dos super-heróis da Bienal do Livro.
A retirada dos gibis por fiscais da prefeitura ganhou repercussão nacional e foi considerada um ato de censura. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro discordou da posição do prefeito e concedeu uma liminar impedindo a prefeitura de apreender livros na Bienal e de cassar o alvará do evento.
A disputa em torno das pautas relacionadas a gênero e sexualidade são a prioridade do momento, segundo Malafaia. Durante a entrevista à Pública, ele comentou que “a discussão da cidade, agora, é ‘ideologia de gênero’”. Disse ainda que é urgente combater o marxismo cultural que pretende destruir a “família natural” e reorganizar o mundo através do paradigma humanista-ateísta.
Para a pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) Lívia Reis, já faz alguns anos que os setores cristãos buscam colocar no centro do debate os assuntos que envolvem gênero. “Existe na sociedade uma preocupação grande com a educação moral das crianças, e setores religiosos perceberam que isso gera apelo. Gera votos”, analisa.
Para Malafaia, a disputa ideológica em torno dos princípios judaico-cristãos é a grande batalha de nosso século. “É uma guerra e eu estou jogando com força”, disse.