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À espera da inclusão digital, população sertaneja conta como tenta se defender de outras violências como exclusão e desinformação

Reportagem
29 de junho de 2021
12:46
Este artigo tem mais de 3 ano

Na paisagem sertaneja de Canudos (BA), a 400 quilômetros de Salvador, a história de dor, exclusão e resistência atravessa uma estrada de solavancos que liga o passado ao presente. Hoje, há outros espinhos nas cercas sertanejas de Canudos, como é a pandemia, a falta de informação, a internet rara e falha e as mentiras que chegam pelo celular. “Existem outras guerras que a cidade enfrenta. Dos 5.565 municípios brasileiros, Canudos está no 5.502º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)”, diz o professor e pesquisador Luiz Paulo Neiva, diretor do campus avançado na Universidade Estadual da Bahia (Uneb). 

O pôr do sol que brilha no alto dos “belos montes” da cidade de 16,7 mil habitantes inspirou o nome do arraial do líder religioso Antônio Conselheiro. O verde caatingueiro funde-se na vista que é formada na paisagem do açude de Cocorobó, que abastece o perímetro irrigado. Mas aquela água também ajuda a esconder cenários de um massacre. Mais de 20 mil morreram ali, segundo historiadores, em uma chacina organizada e autorizada pelo Estado, iniciada pela polícia da Bahia e que ganhou cenário de filme de terror com a participação do Exército Brasileiro. 

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Em Canudos, o verde caatingueiro funde-se na paisagem do açude de Cocorobó

O movimento, que atraía agricultores e fiéis da igreja, incomodou latifundiários e padres e atraiu a atenção nacional àqueles homens, mulheres e crianças que foram chamados de vândalos fanáticos, conforme explica o historiador canudense João Batista Lima. 

Ele explica que foram necessárias quatro expedições para deter os sertanejos, ocorridas entre novembro de 1896 e outubro de 1897. Mais do que de tiros e bombas, os sertanejos eram vítimas de uma campanha de comunicações falsas, que, no século 21, aprendemos a chamar em inglês: fake news

O escritor Euclides da Cunha quase caiu na mesma arapuca quando deixou o Rio de Janeiro para, como ex-militar, fazer a cobertura jornalística da “guerra” para O Estado de S. Paulo sobre um Conselheiro que supostamente queria derrubar aquela recente República. Era mentira. Euclides saiu do acampamento para denunciar que os sertanejos foram humilhados, tiveram casas incendiadas e, por fim, aprisionados ou degolados.

“Não tenho dúvidas de que Euclides da Cunha contrariou as pressões e passou a denunciar a violência e as mentiras”, afirma o professor Leopoldo Bernucci, que ensina literatura latino-americana na Universidade da Califórnia (EUA). A professora emérita da Universidade de São Paulo (USP) Walnice Galvão demonstrou, no livro No calor da hora, que os jornais brasileiros difundiram mentiras sobre o arraial. Isso, segundo a pesquisadora, ajudou a legitimar a ação do Exército e a conivência da sociedade com a violência. Notícias, cartas falsas, crônicas, caricaturas e anúncios publicitários transformaram Conselheiro em um inimigo. “É muito importante que a sociedade esteja bem informada para reconhecer informação falsa”, diz a pesquisadora. 

Os sertões (leia aqui), que só foi publicado cinco anos após o final da “guerra”, foi dividido em três: “A terra”, “O homem” e “A luta”. Para tentar beirar as novas batalhas de Canudos, a reportagem da Pública visitou caminhos dessa resistência nos mais jovens e seus mestres, nas memórias dos mais antigos e nas suas buscas por inclusão. 

 À procura de um sinal

“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo” – trecho de Os sertões, de Euclides da Cunha 

Estefane, canudense de 11 anos de idade, também não se rendeu. Ela não conhece aquele nem qualquer outro trecho da aclamada obra de Euclides da Cunha. Seja como for, Estefane, moradora da comunidade rural de Penedo (a 40 quilômetros do centro de Canudos), adora o lugar em que mora e vive em uma outra trincheira: um lápis, uma caneta, um caderno. Mas nada de internet. 

A menina sonha em escrever poesia. Mais do que sonha. Desde que a escola pública em que estuda, a Antero Onório dos Reis, a 18 quilômetros de casa, voltou às atividades remotas no segundo semestre do ano de 2020, teve que encontrar uma forma de não deixar de aprender. A menina recebe em casa o “módulo” das disciplinas, que são as atividades impressas que os alunos (sem internet disponível) utilizam para não ficarem tão atrasados nos estudos.

Neste ano, a garota foi informada de que a secretária da escola, Joelma Santana, de 30 anos, morava a “apenas” 3 quilômetros de distância da família dela, tinha um computador e o tal wi-fi em casa. O caminho a pé pelas ruas de cascalho, ladeada pelo movimento dos caprinos e pelas plantações de palma, não custaria nada. Assim, seria possível ouvir a professora Sílvia Gomes falar de versos e rimas. 

Para ter acesso ao tal do wi-fi e ouvir versos e rimas, Estefane de 13 anos vai a pé até a casa de Joelma, secretária da escola

Ficou combinado que a servidora reuniria um grupo de estudos com outros alunos das redondezas. Todos sentados na almofada no chão. E poderiam assistir, por aquela única tela, à aula. O desafio em 2021 foi participar em abril da feira literária de Canudos (Flican) na categoria “poesia”. Mesmo sabendo pouco do que era feito aquele tipo de texto, ela entendeu que a inspiração estava embaixo dos seus pés, ou no que via pela janela. 

A lápis, o texto ganhou tema e título: “Aqui no meu sertão”. O texto acaba assim: “O nascer e o pôr-do-sol são lindos. Mas o que alegra o sertanejo é ver a chuva caindo”. O resultado dos versos simples fez barulho: foi o primeiro lugar entre outros 30 trabalhos da cidade, para orgulho da turma e da cidade. O prêmio era também sonoro: um aparelho de celular. Agora, Estefane tem menos um obstáculo tecnológico. Pelo celular, tira dúvidas com a professora.

O ensino empolgou a família inteira e a jovem ficou segura até para ensinar o pai a ler, o agricultor Carlos André Cardoso, de 37 anos. “Ela me ensina muitas palavras”, orgulha-se o pai da menina campeã das letras. Ela inspirou alguns colegas que se achavam vencidos a voltar para a escola que ficou do tamanho de uma telinha, que virou a janela para o mundo lá fora.

“Eu achei que não ia dar certo por causa da falta de internet”, diz a professora Sílvia Gomes, que  mora no município vizinho de Uauá. Foi uma torcida a distância. Elas agora podem se ver também pelo celular. “Tenho muita certeza de que escolhi a profissão certa, mesmo com tantas dificuldades. Estávamos todos desesperados. É importante que essas crianças estejam livres e bem informadas.”

A jovem Estefane e sua família. Ela ensinou o pai, o agricultor Carlos André Cardoso a ler durante a pandemia

Para a secretária, que recebeu os alunos em casa, mesmo não sendo professora, ajudou como se fosse a responsável por tentar conter a evasão escolar. “Meus pais eram analfabetos. Sei como é importante elas aprenderem e se sentirem estimuladas a seguir nos estudos.” Quando os alunos não apareciam, ela pegava a moto do marido e batia de casa em casa para que eles não desistissem. 

Chegou a ter dez alunos e mais as duas filhas na sala de casa para ficarem em volta do computador, o lugar das novidades. “Quando eu não sabia responder as dúvidas deles, ligava para a professora para tentar ajudar de alguma forma”, diz Joelma dos Santos, que terminou o técnico em enfermagem e sonha um dia em trabalhar em hospital. Mas, enquanto atua pela escola, “quer ajudar”.

A poesia de Estefane vai integrar o livro A resistência na palavra, com 30 textos que incluem, além de poesias tradicionais, cordéis e leituras imagéticas, que deve ser impresso neste ano. Curador da feira literária (feita com apoio da Lei Aldir Blanc) e do livro, o professor Luiz Paulo Neiva é famoso na região pela insistência em preservar a memória como uma ação de resistência. No entender dele, um compromisso educativo, político e ético diante de um Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) “precário”, na casa dos 4,2 pontos, nas escolas municipais. 

“Hoje em dia, vemos as pessoas sendo degoladas de outra forma pela pandemia e pela exclusão. Canudos é um lugar simbólico para a luta. A ideia é preservar o passado”, diz o professor. O campus avançado conta, além de cursos universitários a distância, com o Parque Estadual de Canudos e o Memorial Antônio Conselheiro, que antes da pandemia recebiam turistas do país inteiro. 

A Uneb instalou ainda núcleos de robótica e de audiovisual para livre utilização dos moradores em cursos gratuitos. “Teremos neste ano o primeiro curso de doutorado. Será na área de crítica cultural. Esperamos que a gente tenha pessoas de Canudos aprovadas para difundir o que ocorreu aqui e possam se proteger”, afirma Neiva. 

Rifa 

Está fazendo tudo o que pode a equipe de professores e funcionários da Escola Municipal Nossa Senhora do Rosário, unidade de ensino com 180 alunos que fica a cerca de 60 quilômetros do centro de Canudos. “Estamos preocupados aqui porque a pandemia e a falta de internet desestimularam muitos a voltarem para a escola. Os adolescentes acabam sendo convencidos a trabalhar na roça. Com a evasão, temos receio de que a escola feche. Vamos pedir que as aulas passem para o noturno”, afirma a diretora Karina Mirele Almeida. Ela e a equipe têm saído de casa em casa para entregar os módulos.

“A internet aqui também está com problemas para funcionar. A gente podia receber quem precisasse, mas não pega bem aqui também.” A equipe da escola chegou a fazer uma rifa de uma cesta de chocolates para poder melhorar a conexão de banda larga em um povoado do Rio do Soturno, que tem apenas oito alunos, mas não podiam deixá-los para trás. 

O grupo arrecadou R$ 375 e inteirou mais R$ 125 para pagar os custos da antena e roteador em uma das casas, de forma que os estudantes possam ter um ponto para acompanhar as aulas. Mesmo assim, a empresa ainda não tinha conseguido fazer a instalação havia mais de um mês. O responsável pela Novanet, Lucas Alcântara, disse que a equipe de técnicos estava tentando resolver o problema. “A área rural é difícil mesmo. Vamos tentar resolver”, disse à reportagem. 

A equipe da escola chegou a fazer uma rifa para melhorar a conexão do povoado do Rio do Soturno, que tem apenas oito alunos

A coordenadora da escola municipal, a professora Gabriela Almeida, diz que é preciso insistir com os alunos e concentrar as atenções em entregar os materiais impressos nas casas deles (cerca de 30% dos estudantes estão sem internet). Ela é bisneta de sobrevivente da guerra e testemunha que os antepassados tinham medo de falar do massacre. “As crianças e adolescentes de hoje não conhecem a história, mas passaram a se interessar mais ultimamente.” Uma das motivações é que, neste ano, a disciplina história de Canudos passou a ter dois encontros semanais. 

“Eu foquei nas aulas a ideia de tratar sobre o pós-guerra porque é um assunto menos debatido. Tratamos da nossa história e isso gera sentido de pertencimento ao lugar.” Mas ela lamenta que a internet sem qualidade faça uma aula de 45 minutos render menos do que se espera.

A coordenadora acadêmica da Uneb, a pedagoga Elane Santos Geraldo, desenvolve, no mestrado, uma pesquisa para colaborar com os professores de história de Canudos. Ela está finalizando um aplicativo para que os alunos aprendam a epopeia da cidade como um jogo de RPG, em que os estudantes podem assumir personagens e entender de forma crítica. “Eu me inspirei levando em conta que não era a história dos outros. É a história do meu povo”, diz a pesquisadora canudense, que estuda na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Ela explica que o RPG está desenvolvido também para o formato a distância. 

Batidas à porta

As histórias de Canudos entusiasmam estudantes como José Rafael Guimarães, de 13 anos. Com a pandemia ele deixou de pedalar 20 quilômetros para chegar à escola, na comunidade do Rosário, para assistir à aula ou para fazer o celular dar sinal. O garoto, agora, acorda às 6h30 e é recebido na casa do professor de história Juarez dos Santos, de 43 anos, para ter acesso à internet. O professor é também líder comunitário do povoado com 86 casas e cerca de 200 pessoas. 

Diariamente, o garoto bate à porta da casa do docente e já tem até o lugar reservado para  assistir às aulas pelo celular. A cadeira de plástico na casa do professor é um alívio mesmo com a falta da rotina de antes. “Sinto saudades dos amigos, da merenda e da aula de produção textual.” O professor explica que o empenho do garoto é uma exceção. “Se era difícil convencer os estudantes por aqui antes da pandemia, a falta de conexão virou um problema real, inclusive para a gente se organizar.” Enquanto isso, o menino divide a internet com a filha do professor, Arielle, de 8 anos, que gosta mesmo é de desenhar.

“É difícil”

Consultado sobre as dificuldades com a conexão de internet, o secretário de Educação do município, Roberto Gama, diz que Canudos tem “situação melhor” do que a maioria das outras cidades do sertão baiano e argumenta que um dos problemas é a extensa área do município para atendimento integral de internet. Ele admite que algumas turmas podem ser suspensas. Enquanto as professoras fazem até rifa para manter uma conexão para os estudantes, o secretário está menos sensível. “É difícil permanecer com uma sala para poucos alunos.” Se a escola municipal do Rosário for fechada, todos os estudantes terão que se locomover até o centro de Canudos para ter aula. A estrada é de terra e cascalho e quando chove o caminho fica impossibilitado.

O prefeito do município, Gilson Cardoso, reconhece que existem dificuldades para que a internet chegue a áreas rurais. De acordo com ele, para o segundo semestre de 2021, pretende subsidiar a conexão de internet para pelo menos 150 famílias, graças a uma parceria com a empresa francesa Voltalia, que está se instalando no município para geração de energia eólica. 

Fornecedor de aproximadamente 90% dos serviços de internet no município (para cerca de 1.500 clientes), o responsável pela empresa RR Informática Net, José Damião Pereira, alega que não consegue chegar a todos os lugares que precisa porque o município tem grande extensão territorial e as estradas são ruins. Um agravante, segundo ele, é que, durante a pandemia, os materiais de instalação, comprados em geral em Feira de Santana (a 290 quilômetros de distância), ficaram mais caros. 

“Para você ter uma ideia, os custos com antena, roteador e cabos, que eram há dois anos R$ 580, passaram a R$ 980 em 2020. Torna-se inviável para essas pessoas porque elas não têm como pagar.” Ele diz que convive com pelo menos 30% de inadimplência dos clientes em relação aos custos de manutenção mensais, que no segundo semestre devem passar de R$ 50 para R$ 60.  

Para o pesquisador em comunicação Marcos Urupá, que defende a internet como “direito humano”, um problema brasileiro está em tratar esse serviço essencial com uma lógica privada. “No Brasil, serviços de saúde e de educação têm nos dois modelos, público e privado. O transporte público é subsidiado. A internet é um serviço que o Marco Civil já reconheceu como essencial, mas no país vivemos ainda de iniciativas públicas raras e incipientes, como o Wi-Fi Brasil.” Ele explica que para o fornecedor, quando não vale a pena financeiramente levar internet a uma comunidade com menor número de pessoas, ele lamenta e não vai. “Essas pessoas ficam privadas e isoladas. A pandemia escancarou essa realidade e as diversidades sociais e regionais. Pode ser em Canudos ou em uma periferia de grande cidade”, pontua. 

A cavalo

Enquanto isso, a evasão é uma ameaça. Michel dos Santos, de 13 anos, também da comunidade do Raso, ia a cavalo até a escola em um trecho de 20 quilômetros. O que desanimou foi que já voltou atrás porque “nem na escola a internet pegava”. Ainda no quarto ano, sabe que está atrasado em relação aos meninos da mesma idade. Ele teme que não vai dar conta porque também nunca teve acesso à internet. A prioridade dele e do irmão, Caíque, de 16 anos, no sétimo ano, é trabalhar.

Michel, 13 anos (de camisa vermelha, à direita) abandonou os estudos. Ele ia a cavalo pra escola e nem lá a internet pegava

“Eu gostava das aulas de geografia quando entendia mais sobre como poderia preparar melhor a roça.” O problema é que eles não têm nem mesmo celular para voltar a assistir às aulas. Vizinha deles, na mesma comunidade, a estudante Josineide Santana, de 23 anos, divide com o filho o celular. Ela gosta mesmo de matemática e, como cuida de dois idosos, utiliza as horas livres na casa deles, que tem sinal, para estudar. Um dia quer fazer faculdade de contabilidade. Ela busca a varanda, a janela, à beira da plantação… qualquer lugar em que possa se conectar.

Sharlene de Almeida, de 22 anos, a 30 quilômetros dali, na comunidade de Bom Jardim, está cursando o ensino médio e divide a internet com o marido e o filho. “Temos cinco megas [de banda larga] para dividir entre a gente. Vamos economizando para todo mundo poder usar. Por isso, não dá para abrir a câmera.” 

Da mesma forma, a dificuldade fez com que a universitária Débora Souza, de 30 anos, na comunidade do Raso, chegasse a desistir dos estudos em educação pública a distância pela Uneb. Mas voltou atrás. Resolveu que era preciso tentar de novo. Busca também na frente de casa um lugar para assistir às aulas em que a internet pega melhor. 

Sharlene divide a pouca internet com a família. “Por isso, não dá para abrir a câmera”

A canudense atua como uma incentivadora das mulheres da região. “Elas podem mais do que buscar lenha para o fogão e plantar milho. Todos podem desenvolver o potencial e seus sonhos”, defende. Ela explica que a internet é fundamental para os produtores de fundo de pasto. Como os animais são criados soltos, era necessário criar comunicação eficiente por mensagem para quando um desses caprinos ou bovinos desgarra ou fica doente. 

Costuras 

Débora ajudou a reunir mães na comunidade do Raso que se sentiam excluídas, inclusive digitalmente, para escrever ou unir as linhas de suas histórias e descobrir talentos que nem sonhavam. Com apoio do projeto Canudos, uma iniciativa de uma ONG de São Caetano (SP), 18 mulheres se organizaram para formar um grupo de costureiras chamado “Forte Severina”. Elas fazem camisetas, saias e outros artigos de vestuários com estampas de temáticas sertanejas. “Aprendemos a mexer nas máquinas que o projeto conseguiu para a gente e vendemos pelo Instagram. A internet instável é ruim para o negócio”, diz uma das costureiras, Lela Silva, de 37 anos. O projeto vai ganhar um site em julho para divulgação do projeto. 

“Há uma grande diferença entre a enxada e a máquina de costura. Eu me sinto melhor do que no tempo da plantação de milho e feijão”, afirma outra costureira, Rita Pereira Santos, de 53 anos. “Algumas das trabalhadoras tiveram oportunidade de ter a primeira geladeira ou outro eletrodoméstico e até mesmo de construir o primeiro banheiro em sua casa”, afirma o idealizador do projeto Canudos, o biomédico paulista Victor Hugo Bigoli, de 39 anos.

Debora Souza busca na frente de casa um lugar para assistir às aulas em que a internet pega melhor

O projeto, que começou em 2011, é multidisciplinar e começou por Canudos a atuação para tornar sustentáveis comunidades vulneráveis. “Na área de saúde, trabalhamos com medicina social voltada para a prevenção de doenças, com exames como papanicolau e de próstata.” Atuam profissionais e estudantes voluntários de diferentes áreas. 

A pandemia fez com que eles pensassem em telemedicina, mas a falta da internet é um obstáculo. Outra função da equipe é ajudar a desmentir as mensagens com informações falsas que chegam nos celulares. O grupo tem atendido pessoas confusas com as indicações de hidroxicloroquina e ivermectina para um suposto “tratamento precoce” contra a Covid-19. “Nós explicamos que não existe qualquer efetividade desses medicamentos para tratar a doença”, diz o idealizador do projeto. 

Herança da batalha

Se para os mais jovens o desafio de permanecer conectado tira o sono, para os mais velhos significa ainda mistério e ansiedade. Para Julia Maria dos Santos, conhecida como dona Durú, de 85 anos, neta de sobreviventes da Guerra de Canudos, as notícias da pandemia chegam pela televisão, pelo rádio e pelo filtro da sobrinha-neta, Raquel, de 15 anos. “Eu olho se ela recebe notícias falsas pela internet e ajudo que ela mexa no celular”, diz a adolescente. Como na pandemia dona Durú deixou de sair à rua, ela, que trabalhou como professora leiga desde os 19 anos de idade, foi uma das fundadoras do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canudos. 

O pai dela, João de Régis, já falecido, nasceu dez anos depois do final da guerra e foi uma das memórias fundamentais para que a história de Canudos fosse recontada. Um museu foi criado neste ano com o nome dele. Mas ainda não foi aberto ao público por causa da pandemia. “Informação é importante. Quando a pessoa não sabe das coisas, é muito triste.”

A professora Joselina Rabelo, de 75 anos, também é neta de sobreviventes do massacre. Hoje ela cuida de uma das raras pousadas do lugar, de frente para o açude de Cocorobó. Com a pandemia, ela acompanha festejos, cultos e romarias também pela internet. 

“Lá está nossa história. É muito importante que todos participem. Ainda mais quem mora aqui que foi vítima de uma história distorcida.” O secretário de Cultura da cidade, José Alex da Silva Oliveira, reconhece que a difusão de Canudos deve se apoiar no espírito do passado. “A história nos deu um senso de comunidade. Para valer, Canudos venceu a guerra. Precisamos espalhar isso.” Lundu, forró e banda de pífano não podem faltar. 

O agricultor Tenório Costa Santos, de 58 anos, na comunidade de Bom Jardim, tem uma banda de pífano com o filho e amigos. É uma forma de celebrar a ancestralidade do seu povo de etnia kaimbé e as lembranças da vida na aldeia Massacará, em Euclides da Cunha. Hoje, atua com o filho, Luís Carlos Santos, que é apicultor, pelos direitos de regularização das terras onde vivem. Além disso, idosos, principalmente, conforme testemunha, ficaram perdidos desde que o recadastramento de benefícios como Bolsa Família e Auxílio Emergencial passaram a ser obrigatoriamente pela internet. 

“Eu recorro ao meu filho. Mas muitos não sabem. Contam com ele, que é nosso representante, mas ainda tem gente com vergonha e fica sem o benefício. Eu não sei o que é esse Pix, por exemplo. Já vi gente sendo passada para trás”, afirma Tenório, que diz saber apenas escrever o próprio nome e usa o WhatsApp apenas para se comunicar por áudio. “Por isso, são importantes as assembleias para a gente se organizar. Essas pessoas ficaram sem internet, não têm celular e o transporte é péssimo. A gente vai ajudando, mas a situação é de isolamento de nossa e outras comunidades”, diz Luís Carlos. 

A figura do líder religioso Antonio Conselheiro sob a cidade de 16,7 mil habitantes liga o passado e o presente de Canudos

Aos 89 anos, Raimundo dos Santos, também da banda de pífano, se vê perdido com a necessidade de tanta tecnologia. “Eu tenho ainda vontade de aprender a ler. Não sei se é errado isso, ou se já passou do meu tempo. Eu recebi indicação sobre essa pandemia, sobre esses remédios, mas me avisaram que isso não presta, né?.” 

Na comunidade do Rosário, a agricultora Maria José Andrade, de 75 anos, vive sozinha em casa e está assustada com a evolução da pandemia. Para se informar sobre o que está acontecendo ou tentar conectar os dados de sua aposentadoria, ela sai de casa e vai até a calçada da vizinha para “pegar o sinal dela”. Outra aposentada, Mariana Nogueira, também de 75 anos, se sente isolada. “Faz uma semana que eu não falo com minha filha, que foi trabalhar como empregada doméstica em São Paulo.” As ligações dependem do aplicativo de mensagem.

A secretária de Assistência Social, Shirla Rabelo, reconhece a dificuldade que o município tem com a internet. A saída que foi encontrada foi fazer visitas aos povoados e também voltar ao expediente presencial para que beneficiários de programas sociais possam ser orientados e façam o recadastramento. 

Uma das forças de defesa das comunidades está no Instituto de Preservação da Memória de Canudos (IPMC), que é uma ONG voltada não só para esclarecimento da história, mas para garantia dos direitos dos povos mais vulneráveis. Segundo o presidente da entidade, Vanderlei Leite, a cidade recebe pressões de políticos, dos latifúndios e de empresas que se aproveitam da desinformação das pessoas. 

“A pandemia complicou a situação. As pessoas, como estão isoladas, continuam recebendo mentiras de quem se aproveita do isolamento. Cabe a gente visitar as comunidades, reunir e lembrar quem somos”, diz Vanderlei, que também representa na cidade o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa). Ele argumenta que a exploração predatória, a poluição e a invasão de áreas nativas têm ameaçado a caatinga com processo de desertificação. O distanciamento e a falta de internet desengajaram a comunidade, conforme argumenta. 

Uma das formas de promover essa identificação, segundo o poeta canudense José Américo Amorim, de 55 anos, é intensificar o reconhecimento da própria raiz. Ele, que trabalha também como guia turístico, e que na pandemia deixou de ter essa atividade por causa do fechamento do parque de Canudos, diz que o desafio é fazer os mais jovens se encantarem pela história de resistência do lugar. “Uma vez uma universitária de São Paulo me deixou chateado porque me disse que ‘lá no Brasil era diferente’. Ela não reconhecia Canudos como Brasil. Nós aqui, pelo menos, precisamos nos reconhecer. Foi esse Brasil de lá que matou nossos antepassados.”

O poeta fez parte da elaboração da estratégia de implantar o projeto “da poética do ensinar e aprender” em escolas públicas na cidade. No Alto da Favela, no atual parque de Canudos, e onde tantos inocentes foram humilhados e mortos, ele se emociona. “Pela poesia, a gente comove e denuncia […]. ‘Mas temos que tomar/ como exemplo esse povo/ que lutou bravamente/ em busca de um tempo novo/ Canudos não se rendeu”, declamou. Ele grava os versos no celular e divulga para todos os grupos na internet. Para o sertanejo, ele sabe, a guerra está sempre recomeçando.

Essa reportagem é resultado das Microbolsas Acesso à Internet realizada pela Agência Pública e o Idec. A 13ª edição do concurso selecionou jornalistas para investigar os diferentes aspectos desse tema no Brasil.

Luiz Cláudio Ferreira/Agência Pública
Luiz Cláudio Ferreira/Agência Pública
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