“Eu tô com sentimento de felicidade, de dever cumprido. É tanta coisa que tá passando na minha cabeça, que vocês não têm noção. Eu tô feliz, eu tô muito feliz. Eu tô tremendo todinha. Agora, parece que meu coração vai sair do peito. Mas, eu tô muito feliz, muito, muito, que a justiça vai ser feita”, disse Silmara Alves Soares à reportagem, na tarde desta quarta-feira (10).
Silmara foi enteada de Dinamá Pereira de Resende, o “Dinamá das Crianças” denunciado por 12 mulheres à Agência Pública em agosto de 2020, de abusar delas quando crianças durante décadas. Silmara afirma ter sofrido abusos sexuais do padrasto dos 6 aos 14 anos de idade. Segundo ela, os crimes aconteciam todos os dias. A condenação foi publicada nesta quarta-feira, 10 de novembro de 2021, um pouco mais de dois anos após o início da investigação realizada pela Polícia Civil de Várzea da Palma, no norte de Minas Gerais.
No documento, ao qual a Pública teve acesso em primeira mão, e que está em segredo de justiça, Dinamá Pereira de Rezende é condenado há 87 anos, cinco meses e 20 dias de reclusão pela unificação das penas de todas as seis vítimas que o processaram, embora, as investigações apontem que o número de vítimas possa ser muito maior.
Esperança
Um dia antes de a sentença ser divulgada oficialmente, o grupo de WhatsApp que mantemos com as vítimas há dois anos, não parava de trocar mensagens. Elas sabiam, de acordo com o andamento processual, que haveria uma possível condenação a ser publicada, hoje, contra Dinamá Pereira de Rezende.
Ao longo desse tempo, o grupo de WhatsApp virou um espaço de união entre as vítimas de Dinamá. Nas vezes em que eram chamadas a irem ao Tribunal de Justiça, em Várzea da Palma, elas falavam da ansiedade de estarem frente a frente com o abusador, ou do medo de ele não ser condenado. “Era o que eu mais queria, depor na frente dele”, lembra Silmara. Ainda segundo ela, a orientação da Justiça era para que ela se concentrasse olhando apenas para o Juiz e a câmera de filmagem, que registrava a audiência.
“Mas tinha hora que eu olhava (para o Dinamá) e falava muita coisa e queria que ele me retrucasse, para que, de acordo com ela, pudesse contestar cada fala com detalhes desmascarando-o diante do Juiz. Mas, não foi o que aconteceu. Tanto nas audiências quanto nos documentos oficiais Dinamá mantinha a versão de que não tinha culpa de nada. De acordo com as vítimas, ao lerem o depoimento prestado por ele, Dinamá dizia, inclusive, que não conseguira entender o motivo pelo qual tudo aqui estar acontecendo, que era triste ver mulheres se unindo contra ele, contando mentiras. “Mas, Dinamá disse, também, nesse mesmo depoimento que ele trabalhou com mais de 5 mil crianças”, o que ampliava a possibilidade de ele ter acesso às vítimas, lembra advogada Ana Luiza França.
“A própria equipe da Polícia Civil, não tinha ideia de quantas dessas milhares de crianças, ao longo de mais de três décadas, poderiam ter sido abusadas. Foi grande o número de mulheres que entraram em contato comigo depois da reportagem da Pública ou com a vítima Ana Paula, que deu início a todas as denúncias por meio do relato dela no Facebook. Mas infelizmente, muitas não tiveram condições emocionais para seguir com a denúncia de forma oficial”, completa.
Revelações
Em agosto de 2020, a Pública contou, com exclusividade, a história de mulheres que denunciaram uma série de crimes sexuais contra crianças e adolescentes, cometidos na década de 1990, em Várzea da Palma, cidade com 39 mil habitantes. Segundo a polícia, mais de 5 mil meninos e meninas teriam frequentado atividades religiosas e culturais promovidas por Dinamá Perreira de Resende, suspeito de abuso e violência sexual. Este pode ser considerado, segundo especialistas em direito criminal, como um dos maiores casos de violência sexual contra menores de idade, da história de Minas Gerais, pelo número de possíveis vítimas e o tempo em que o suposto abusador teria acesso à elas, mais de 30 anos.
Os casos só foram revelados quando Ana Paula Fernandes dos Santos, 26, foi à delegacia, no dia 18 de outubro de 2019, para denunciar o estupro que sofreu quando criança. Depois de conversar com os policiais, Ana postou seu relato em uma rede social. Bastou contar como eram os abusos, mesmo sem identificar o autor do crime, para que várias outras vítimas comentassem no post histórias parecidas, quebrando décadas de silêncio.
No inquérito instaurado pela Polícia Civil, 06 mulheres e duas crianças afirmavam terem sido vítimas de violência sexual por parte de Dinamá. Outras 3 também constam na documentação, porém a promotoria não ofereceu denúncia no caso delas por entender que os casos já estavam prescritos. Segundo as denúncias, ele agia dentro de uma escola, na igreja, nas ruas, e principalmente, dentro da casa onde morava com a companheira – hoje falecida – e as enteadas. Até nas casas de outras crianças Dinamá cometia os crimes, segundo os relatos.
Na internet, Dinamá também teria encontrado espaço para continuar os abusos. Em redes sociais, publicou dezenas de fotos de crianças e adolescentes. Durante as investigações, a polícia encontrou uma postagem de 2016, em que Dinamá teria compartilhado a foto de uma menina vestida com roupas íntimas e usado a legenda “gostosinha” para descrevê-la.
Após a reportagem da Pública, uma outra adolescente apresentou prints de conversas em que Dinamá Pereira de Resende teria oferecido mil reais em troca de fotos suas quando criança, além de tentativa de exploração sexual.
Durante esses anos em que o processo corria na justiça, Dinamá foi obrigado a cumprir medida protetiva, e se manter distante de crianças e adolescentes em Várzea da Palma. Ele também foi afastado das atividades religiosas e culturais.
O julgamento
Fórum de Várzea da Palma, 10 de novembro, 13h20. A advogada Ana Luiza França Santos, acompanhada de algumas das vítimas de Dinamá, aguardava ansiosa a decisão judicial após dois anos de tramitação do processo.
O texto, de acordo com uma das vítimas, é categórico. Dinamá Pereira de Resende, o ‘Dinamá das Crianças’, foi considerado culpado e condenado: “pela unificação das penas de todas as vítimas, a 87 anos, cinco meses e 20 dias de reclusão, em regime fechado”.
Para a advogada que representa as mulheres, esta não é apenas uma vitória judicial, mas representa o fechamento de um ciclo de dor e injustiças. Ana Luiza França explicou o que acontece agora: “No caso do acusado, não cabe a substituição da prisão dele por outras medidas judiciais como, por exemplo, prestar serviços comunitários tendo em vista a gravidade do crime que ele cometeu e, também, devido ao tempo de reclusão de 87 anos em que foi condenado.” Como o Dinamá não violou, segundo informações da sentença da justiça, nenhuma medida cautelar durante o tempo em que o processo corria, como tentar fugir; atrapalhar a investigação ou ameaçar as vítimas, o juiz entendeu que ele poderá recorrer à condenação em liberdade. No entanto, na sentença as medidas cautelares impostas desde o início do processo continuam mantidas, sendo elas: proibição do contato do Dinamá com as vítimas ou seus familiares; participação dele em atividades que envolvam o público infantil e mudança de endereço sem comunicação à Justiça.
A reportagem procurou o advogado de Dinamá, Santiago Atila Santiago, que disse: “como se trata de segredo de justiça, nada posso pronunciar. Se for desfavorável, cabe recurso até última instância”.
Sobre os casos mais recentes, que envolvem duas adolescentes que também eram supostas vítimas de Dinamá, o processo corre em segredo de justiça. Já o caso da adolescente que denunciou Dinamá por suposta oferta de dinheiro em troca de exploração sexual, a advogada Ana Luiza França esclarece que o processo ainda está em tramitação entre a Polícia Civil e o Ministério Público. “ Provavelmente, a promotoria está verificando se existe a necessidade de mais alguma investigação de novos elementos e provas. Só depois disso o MP oferece ou não a denúncia”.
“A procura das invisíveis”
Durante três décadas, as vítimas se sentiram silenciadas. Pela influência que Dinamá exercia na cidade, suas falas foram, por muitos anos desacreditadas pelas famílias e pela população em geral. Quando descobrimos as denúncias, e tivemos acesso exclusivo ao inquérito policial, muitas sequer imaginavam que conseguiriam contar novamente os abusos que sofreram anos atrás, quando ainda eram crianças.
Percorremos a Várzea da Palma, em julho de 2020, em companhia da fotógrafa Vera Godoy. E esse contato com as mulheres fez nascer uma relação de confiança, que possibilitou que publicássemos essa reportagem anterior na Pública. Depois da primeira versão que denunciava o caso, o assunto ganhou espaço na imprensa brasileira. Hoje, as mulheres dizem se sentir recompensadas pela visibilidade que alcançaram na mídia despertando em outras milhares, a necessidade de denunciar o abuso sexual. Além disso, para muitas vítimas, segundo relatos no grupo de Whatsapp, a condenação é resultado, também, do trabalho realizado pela Polícia Civil de Várzea da Palma, que investigou com cuidado e acolhimento.
Por mensagens, as mulheres disseram à reportagem que se sentem aliviadas:
“Me sinto aliviada porque outras crianças não vão sofrer o mesmo que a gente sofreu. É uma dor que vai com a gente pro resto da vida. Eu acredito que é isso que todas as meninas sentem. Só de ele não estar mais perto de nenhuma criança, pra mim já é um alívio enorme” disse uma das sobreviventes Adenice Aparecida Teixeira.