Uma foto do casamento da filha do Secretário de Assuntos Fundiários do governo Bolsonaro, Luiz Antonio Nabhan Garcia, que ocorreu em fevereiro, trouxe à tona um fato histórico dos conflitos entre ruralistas e o Movimento Sem Terra (MST) no Oeste Paulista na década de 1990. A imagem, postada no Instagram pelo padrinho de batismo da noiva — o então delegado de Sandovalina, Marco Antonio Fogolin, que era conhecido como “caçador de sem terra” — foi acompanhada de um texto revelador sobre a amizade do ex-policial civil com Nabhan, que liderou a União Democrática Ruralista (UDR) na região do Pontal do Paranapanema.
“Um pouco da minha história como Delegado de Polícia na década de 1990 tem esses caras em capítulos importantes. Luiz Antônio Nabhan Garcia e os irmãos Maurício e Rafael, e o parceiro Ricardo foram e são aquelas pessoas inesquecíveis. Muitos momentos vivemos no Pontal do Paranapanema, Oeste Paulista. Desde então, a amizade prevalece. Obrigado Nabhan, Rafael, Mauricio e Ricardo, pela nossa amizade de décadas. Hoje o Luiz Antonio casou a filha querida Larissa e todos nos reencontramos”, escreveu Fogolin no Instagram em fotos suas com os fazendeiros citados. “Grande amigo, grande Irmão!!! Que alegria estarmos juntos com vc e sua família num momento tão importante para um pai. Deus abençoe nossa amizade”, respondeu Nabhan Garcia.
A relação entre Fogolin e o pecuarista vem, de fato, de décadas. O delegado batizou a filha de Nabhan que, por sua vez, foi padrinho de casamento de Fogolin com a médica e socialite Kátia Albertin Volpe Fogolin. Os laços foram revelados por ela, também em postagem do dia do casamento da dermatologista Larissa Nabhan Garcia com o otorrinolaringologista Lucas Tolentino.
A celebração aconteceu no dia 12 de fevereiro, na luxuosa fazenda Santa Bárbara, em Itatiba, a 82 quilômetros da capital paulista. O espaço já foi escolhido para o casamento de famosos como o cantor Junior Lima — filho do cantor sertanejo Xororó — com a modelo e artista plástica Mônica Benini, em 2014. Conforme apurou a Agência Pública, o aluguel do espaço em fevereiro custava R$ 44 mil.
Além de Fogolin, o casamento da médica Larissa Garcia contou com a presença do ministro do Turismo Gilson Machado e o irmão mais novo do presidente Jair Bolsonaro, Renato Bolsonaro.
Procurado pela Agência Pública, o secretário Nabhan Garcia ficou irritado ao ser questionado sobre sua relação com o delegado. Sem nos deixar terminar de fazer a primeira pergunta, ele respondeu: “Eu não tenho nada a declarar, esse jornalismo que fica fustigando coisas pequenas eu não faço parte” disse, desligando o telefone na sequência. Já Fogolin não respondeu às tentativas de contato por e-mail, pelas redes sociais e na clínica de estética da qual é sócio.
Delegado teria tentado trocar prisão de sem-terra pela de líder do movimento
Atualmente empresário e professor de tiro na academia da Polícia Civil de São Paulo, o delegado aposentado Marco Antonio Fogolin virou notícia, em 1995, aos 25 anos de idade e seis de profissão, ao pedir a prisão preventiva das lideranças do MST do Pontal do Paranapanema. Sua mão de ferro contra o movimento ganhou destaque nos maiores jornais da época: “O principal obstáculo para a ação dos sem terra no Pontal do Paranapanema não é nenhum fazendeiro, mas o delegado de Sandovalina (…)” dizia o Jornal do Brasil, em edição de domingo, no dia 17 de março de 1996.
Em fevereiro daquele ano, veio a público uma gravação feita pelo advogado do MST, Juvelino Strozake, na qual Fogolin propõe a ele trocar a libertação de quatro sem-terras pela rendição do mais importante líder do movimento da região, José Rainha Júnior. A reportagem teve acesso à transcrição da gravação da fita-cassete em que o delegado diz a Strozake: “Revogo a prisão de todo mundo, mas o Zé Rainha se apresenta para mim”.
Por conta da proposta, o delegado foi denunciado pelo advogado à ouvidoria da Polícia Civil, que instaurou uma sindicância contra ele, arquivada três meses depois.
Ao longo da tentativa de negociação com Strozake, Fogolin justifica que a prisão do líder seria sua resposta à sociedade. “Eu estou abrindo meu coração, estou abrindo o jogo, quero ajudar todo mundo, porque eu já falei a minha intenção, é dar uma resposta para a sociedade e dizer que nós damos as cartas, não o Zé Rainha, tá?”, ressaltou. Em outro momento da conversa, ele demonstra proximidade com os ruralistas da região: “Se eu falar para os fazendeiros é, trazer um tanque de guerra aqui, eles trazem. Se eu falar para os fazendeiros nem aparecer na fazenda, eles não aparecem. Eu tenho um contato muito grande com eles, muito forte com eles. Recebi até um ofício do Sindicato Rural hoje”, observou.
Repressão de delegado contra sem-terras coincide com refundação da UDR
Segundo o professor de história do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP) Adalmir Leonídio, que pesquisou os conflitos de terra no Pontal do Paranapanema de 1990 a 2006, a recente postagem de Fogolin nas redes sociais reforça os indícios de que ele atuava em conjunto com os fazendeiros, “principalmente com a UDR”.
“Juntando tudo o que relataram sobre ele nas entrevistas que fiz com os sem-terra, a sua atuação no Pontal e este post, é possível especular que ele estava ali com uma missão de desarticular o movimento na região”, destacou o pesquisador. De acordo com ele, a mobilização dos sem-terra naquela área era referência nacional da luta na época.
O MST chegou ao Pontal do Paranapanema em 1990 com objetivo de pressionar o poder público pela reforma agrária, uma vez que a região é formada por aproximadamente 1,2 milhão de hectares ocupados irregularmente por grileiros. Daquele ano até 1994, o movimento ocupou 19 fazendas do Pontal, segundo o Banco de Dados da Luta Pela Terra (DATALUTA), de 2012. Nos quatro anos seguintes, de 1995 a 1998 — primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) —, foram 57 ocupadas.
Nesse período, o MST foi ganhando força política e social e, após muita pressão, o então governador do estado de São Paulo, Mário Covas (PSDB), realizou em seu primeiro ano de governo, em 1995, um plano de ação para o local, que incluía a identificação das propriedades devolutas e o assentamento de trabalhadores sem-terra.
Na intenção de contrapor o crescimento do movimento, em 1995, os fazendeiros se reorganizaram na UDR, que até então existia sem muita relevância. O período de retomada da organização ruralista — fundada em 1985 em resposta ao surgimento do MST — coincide com as ações de repressão de Marco Antonio Fogolin contra os sem-terra. Para evitar o agravamento dos conflitos, o governo Covas editou normas determinando à polícia que negociasse com fazendeiros em vez de cumprir de imediato ordens judiciais de reintegração de posse. O delegado chegou a Sandovalina em 1994, onde ficou até 2006.
Em entrevista à Agência Pública, Zé Rainha relembra o momento exato que marcou o retorno da UDR ao cenário político e agrário do Pontal. Ele contou que os fazendeiros passaram em carreata, formada por cerca de 100 veículos, em meio ao acampamento onde estavam os trabalhadores sem-terra, rumo à fazenda Santa Rita, do hoje falecido Afonso Negrão, entre os municípios de Mirante do Paranapanema e Teodoro Sampaio. “Ali eu senti que era tudo mais pesado do que nós imaginávamos”, afirma. Segundo Rainha, ao longo do percurso, os ruralistas ligados ao atual secretário de Bolsonaro soltavam fogos de artifício e exibiam armas como metralhadoras, fuzis e granadas.
O militante, que hoje faz parte da Frente Nacional de Lutas (FNL), acredita que foi com a retomada da UDR no Pontal do Paranapanema que o delegado Marco Fogolin surge, em conluio com fazendeiros, com o objetivo de perseguir o MST. “Aí que ele aparece no cenário, querendo prender”, destacou.
De acordo com historiador, delegado defendia fazendeiros e criminalizava sem-terras
Segundo o historiador Adalmir Leonídio, Fogolin atuava para criminalizar o Movimento dos Sem Terra. “Isso é um fato, não é uma questão de ponto de vista”, reforçou. “Além de instaurar inquéritos sistematicamente contra sem-terras, ele tinha uma outra forma de agir, que consistia em tentar persuadir alguns membros do movimento a se voltarem contra os colegas e entregá-los”, escreveu Leonídio em seu artigo “Das modalidades e dos modos de criminalizar: a repressão aos movimentos sociais de luta pela terra na história recente do Pontal do Paranapanema/SP”.
O professor acrescenta ainda que Fogolin “durante muito tempo perseguiu vários militantes, mas sua verdadeira obsessão era prender o José Rainha”, considerado o principal personagem do MST nos anos 1990. A criminalização do movimento alcançava coro no governo federal, e os sem-terra acusavam Fernando Henrique Cardoso (PSDB) de tentar “sufocar” a luta. Zé Rainha respondeu a vários processos e condenações que o levaram seis vezes à prisão no Pontal, além de ocorrências em outros estados.
Com tantos mandados e pedidos de prisão preventiva — a maioria sob acusação de formação de quadrilha — Zé Rainha viu-se em um embate entre a vontade política de construir novos acampamentos que impulsionassem a reforma agrária no país e a necessidade de se resguardar, na busca de não ser preso. “As consequências de ordem pessoal são muito grandes, em todos os sentidos, né? Você não poder circular, discutir a política, fazer política. Então me trouxe consequências grandes”, lamenta, ressaltando ainda que, mesmo assim, as ações dos sem-terra se fortaleceram no final da década de 1990 e início dos anos 2000.
Por divergências políticas ao MST, que, segundo ele, se distanciava da luta com a eleição de Lula, o militante foi afastado da organização, em 2004. “Eu sempre defendi que o movimento social não tinha que participar do governo, e o MST cometeu esse erro”, avalia. “Eu fui expulso, outros foram saindo.”
Em 1997, Marco Antonio Fogolin publicou o livro-manifesto “A outra face do MST… O crime organizado!!!”, que atribui à organização adjetivos como ”delinquente”, ”criminoso” e ”mafioso”. Em entrevista concedida a Adalmir Leonídio em 2008, ele afirmou que o MST era dividido, “de um lado por aqueles humildes que realmente sonhavam em ter uma vida boa, de outro lado pela liderança bandida”. Mas, enquanto atacava os sem-terra, o delegado defendia os fazendeiros. “Por exemplo, na fazenda do Nabhan eu encontrei armas, mas tinha tudo documentação, eram armas permitidas e legais, pouca coisa também. Do lado dos sem-terra, apreendi armas sim, nos acampamentos, muitas armas”, disse Fogolin a Leonídio.
“Ele [Fogolin] defende que os fazendeiros agiam corretamente, que as armas que eles possuíam eram armas legais, que eles estavam no direito deles, que nunca viu eles cometerem nenhum tipo de violência, que eles eram pessoas que estavam ali só com a intenção de proteger sua propriedade, que nunca foram violentos ou truculentos”, destaca Leonídio.
Os fatos, no entanto, apontam o contrário. Para citar um exemplo, em fevereiro de 1997, oito sem-terra foram feridos por capangas da Fazenda São Domingos, em Sandovalina. Entre eles, uma criança de 13 anos. Nabhan Garcia foi acusado de participar da contratação e do treinamento dos pistoleiros pelo próprio dono da fazenda, Manoel Domingues Paes Neto, em depoimento à Polícia Federal, em 2003. A denúncia chegou até a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Terra (CPMI da Terra) instaurada naquele ano. O relatório final pedia o indiciamento do líder da UDR por porte ilegal de armas, contrabando e organização de milícias privadas na região do Pontal do Paranapanema, mas a articulação política de deputados da bancada ruralista fez com que o documento final fosse alterado, livrando Nabhan, que nunca foi indiciado.
O atual Secretário de Assuntos Fundiários foi um dos refundadores da UDR no Pontal do Paranapanema, em 1995: antes de virar presidente da entidade, em 2000, ele foi tesoureiro da organização. De Presidente Prudente, o ruralista possuía fazenda na cidade vizinha de Sandovalina, por onde Marco Fogolin passou 12 anos de sua carreira. A propriedade era administrada por seu irmão, Rafael Nabhan Garcia, que também aparece na foto do casamento de Larissa Nabhan Garcia, divulgada pelo delegado.