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Para o professor Roberto Schaeffer, especialista em energia, meta acordada entre países não basta; “o que interessa é ter a trajetória para chegar até lá”, diz

Entrevista
5 de abril de 2022
11:15
Este artigo tem mais de 2 ano

Para o economista Roberto Schaeffer, professor da Coppe/UFRJ e um dos autores do último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), divulgado nesta segunda-feira (4), não adianta falar se os países estão cumprindo ou não as metas de reduções de gases de efeito estufa: elas já não são suficientes.

O relatório mostra que temos até 2025 para reduzir drasticamente as emissões se quisermos chegar a um planeta apenas entre 1,5°C e 2°C mais quente, o que exige mudanças imediatas. “As metas instituídas pelos países foram equivocadas, porque não significa nada dizer que em 2050 vai diminuir tanto. Eu quero saber como você vai chegar lá. Isso que ninguém está falando”, diz o professor titular de economia de energia, ao ressaltar a necessidade de uma trajetória de diminuição de emissões de carbono.

Schaeffer considera as metas brasileiras pouco ambiciosas, ao prometerem algo que já deveria ser cumprido por lei: acabar com o desmatamento. “É preciso propor metas de longo prazo, dizendo qual o caminho para chegar até lá. Quero que a NDC [Contribuições Nacionalmente Determinadas] fale em 2030, mas fale como vai ser 2028, 2029, 2027. Qual é o orçamento de carbono que o Brasil vai jogar na atmosfera? É isso que vai dizer como a temperatura do planeta vai aumentar em função das emissões brasileiras.”

A mudança climática, diz Schaeffer, “está acendendo uma luzinha e falando ‘tá na hora de começar a transformar a cara desse mundo’”. 

Roberto é um homem branco na faixa dos 60 anos, com cabelos grisalhos e olhos castanhos; ele veste uma camiseta azul, está sentado em uma mesa branca segurando um relatório nas mãos
Roberto Schaeffer é professor titular de economia de energia da Coppe/UFRJ

Ainda é possível alcançar os Objetivos de Paris e limitar o aquecimento global a entre 1,5°C e 2°C?

Uma das mensagens mais fortes desse relatório é que sim, você ainda consegue ficar dentro de 1,5°C, 2°C, desde que você tenha ações muito rápidas e profundas. Temos no máximo até um pouquinho antes de 2025 para começar a reduzir as emissões [de gases do efeito estufa]. O que vimos nos últimos anos foram as emissões de gases do efeito estufa continuando a subir. Ainda dá, mas o tempo está passando.

A data limite passou a ser 2025?

A linguagem que a gente usa é um pouco dúbia. É até antes de 2025. Em 2022, 2023 e 2024 já temos que começar a reduzir as emissões. Isso significa que o pico de emissões dos gases de efeito estufa tem que chegar ao seu máximo antes de 2025. Como trabalhamos em anos, 2024 é o último ano em que as emissões ainda podem subir e a partir daí tem que começar a descer e descer rapidamente. Desse rapidamente vai depender se você quer limitar o aumento da temperatura a 1,5°C ou a 2°C. Se você quiser limitar a temperatura a 1,5°C você tem que chegar a 2030 com emissões 43% abaixo do que foram as emissões de gases de efeito estufa em 2019. Se você acha que 2°C tá de bom tamanho, nesse caso você precisa chegar a 2030 com emissões 27% menores do que em 2019.

O relatório mostra que os países não têm cumprido com o que acordaram, as NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas)?

No fundo, o que os países acordaram, as suas NDCs, etc, são acordos que falam de um momento do tempo. Quando, por exemplo, o Brasil apresenta a sua NDC, ele fala, “vou chegar em 2030 com emissões 50% menores do que foram em 2005”. Quando fala que quer buscar a contra neutralidade de carbono diz, “vou ser queima neutra em 2050, tá?” É muito fácil falar o que você vai fazer em 2030, 2050. O que esse relatório mostra é que não é isso que interessa. Menos do que ter uma meta lá na frente, o que interessa é você ter uma trajetória para chegar até lá, dizer qual o caminho. De fato, a temperatura do planeta é dada pelo CO² que se acumula na atmosfera. Não adianta falar “vou ser carbono neutro em 2050” e achar que para fazer isso – fazendo uma brincadeira –, basta chegar em 2050 e dar férias coletivas para todo mundo. Naquele ano você pode ser carbono neutro, mas para a temperatura isso não interessa. Interessa o que que você vai emitir de agora até 2050. Não adianta a gente falar se os países estão cumprindo ou não o que falaram porque o que os países falaram não é suficiente. Dizer que você, no caso do Brasil, vai emitir 50% a menos em 2030, não me diz muita coisa. Quero saber o quanto vou emitir ano que vem, daqui a dois, três, cinco, dez anos. Para dizer que é suficiente chegar em uma redução de 50% das emissões porque eu tive uma trajetória até lá onde o tempo todo eu estava emitindo menos. Continuar tudo igual para no ano da meta dar férias coletivas e dizer que emitiu zero, para a temperatura isso não serve para nada.

Foto mostra escapamento de veículos soltando fumaça cinza
Para o co-autor do último relatório do IPCC, metas de reduções de gases de efeito estufa já não são suficientes

O lockdown nos mostrou isso, inclusive.

Se você quiser, você consegue reduzir as emissões pontualmente naquele ano. O que os países estão fazendo de maneira geral é se comprometer com a redução de emissão em um ano específico. Mas o aumento de temperatura não é dado pela emissão num ano, é dado pelo acumulado na atmosfera das emissões que ocorreram no passado. Por isso que o que nos interessa de fato é a trajetória. Quando o mundo atingir o CO² zero, naquele momento, só naquele momento, a temperatura para de aumentar. E aí o que esse relatório mostra é o seguinte. Se você tiver ações de curto prazo, reduzindo violentamente as emissões CO², você não deixa a temperatura continuar a aumentar. O que significa, inclusive, que o próprio net zero de CO² [do inglês net zero carbon emissions, zero emissões líquidas de carbono, em tradução livre] não precisa ser em 2050, pode ser muito depois. Se você tiver ações de curto prazo, você consegue manter, por exemplo, a temperatura 1,2°C mais quente, 1,3°C, 1,4°C… Você tem essa aparente contradição em que os cenários mais ambiciosos de redução de emissão em curto prazo são aqueles em que o net zero é atingido mais lá na frente. Por quê? Porque você tem uma trajetória de baixo carbono ao longo do tempo. A analogia que a gente usa é de orçamentos de carbono. Esse orçamento, a quantidade de CO² que você vai emitir, dita a temperatura que você vai ter no momento zero. Se o mundo reduzir as emissões violentamente ano que vem, talvez o momento de net zero possa se dar em 2060, 2070. Daí volto para a tua pergunta. As metas instituídas pelos países foram equivocadas, porque nada significa dizer que em 2050 vai diminuir tanto. Eu quero saber como você vai chegar lá. Isso que ninguém está falando.

Ia perguntar o que o Brasil precisa fazer para se adequar às suas NDCs, mas a questão é como vem a trajetória brasileira de redução de emissões?

A NDC brasileira é relativamente frouxa. Além disso, ela fala de um Brasil em 2030. Uma das partes mais relevantes da NDC brasileira é a parte de uso da terra. De fato, posso não fazer nada agora e chegar em 2029 e estancar o desmatamento. Se você fizer isso, vai estar cumprindo a NDC brasileira. No Brasil, o desmatamento tem um peso muito grande nas emissões. O setor de energia tem um peso relativamente pequeno, o que é uma particularidade brasileira. Mais de 80% da nossa geração de energia elétrica é renovável, cerca de 60% é hidrelétrica, mais de 10% é eólico, a energia solar está crescendo, a biomassa é 10%. O setor energético brasileiro emite pouco. O setor de transporte não emite tão pouco, mas o etanol, o biodiesel, etc, ainda tem um papel razoável. Na própria indústria brasileira você tem um pouco de uso de bagaço de cana, um pouco de lenha… A NDC brasileira quase que exclusivamente se refere a desmatamento. O que o Brasil tem que fazer no curtíssimo prazo é estancar o desmatamento, começar a reflorestar aquilo que é possível reflorestar e, no caso da agricultura e da pecuária, tem a questão da emissão de metano, do gado, etc. Você tem que começar a se preocupar um pouco com pastos de melhor qualidade, o pasto brasileiro é muito ruim. Com isso o boi brasileiro demora muito tempo para engordar porque ele come pouco. E como ele demora para engordar, o boi brasileiro vive mais do que deveria se fosse um boi só para abate. A emissão de metano do boi vem da vida dele. Se ele vive quatro anos, vai emitir metano por quatro anos. Se vive só dois, vai emitir metano por dois anos. Pasto de melhor qualidade do Brasil significa que o boi seria abatido mais jovem porque ele engordaria mais rapidamente. Isso já reduziria muito a emissão da pecuária brasileira. Para ser cumprida, a NDC brasileira depende quase exclusivamente do que for acontecer no setor de florestas e no setor de agricultura. 

Precisamos, então, de metas mais agressivas e de uma trajetória de redução de emissões de gases do efeito estufa melhor?

A NDC brasileira é tímida. A primeira coisa é cumprir a lei, estancar o desmatamento ilegal – e não há porque continuar com o desmatamento legal. A outra questão é que mesmo que a NDC brasileira fosse mais pretensiosa, o próprio conceito de NDC em si é equivocado. É preciso propor metas de longo prazo, dizendo qual o caminho para chegar até lá. Quero que a NDC fale em 2030, mas fale como vai ser 2028, 2029, 2027. Qual é o orçamento de carbono que o Brasil vai jogar na atmosfera? É isso que vai dizer como a temperatura do planeta vai aumentar em função das emissões brasileiras. 

Imagem aérea mostra área de mata queimando
Schaeffer é categórico sobre a redução da emissão de gases de efeito estufa: “o que o Brasil tem que fazer no curtíssimo prazo é estancar o desmatamento”

Falamos muito em desmatamento. Como o desmatamento da Amazônia e no país, no geral, influencia o clima mundial? 

Há um entendimento grande no IPCC de que são as emissões de CO² na atmosfera que ditam o aumento da temperatura no planeta. Dado que no caso brasileiro mais de um terço das emissões de CO² – falando aqui sem ter os números na minha frente, talvez metade – tem relação com desmatamento, é um peso muito grande. As emissões brasileiras de gases de efeito estufa são da ordem de mais ou menos 4% a 5% das emissões do mundo. Como mais ou menos o desmatamento e a agropecuária são responsáveis por mais da metade das emissões brasileiras, a gente pode dizer, “ó, provavelmente o desmatamento da Amazônia hoje é responsável por 1,5% das emissões de gases de efeito estufa do mundo”. Ou seja, 1,5% da culpa no cartório no mundo do aumento na temperatura é do desmatamento na Amazônia. 

O sumário fala bastante na necessidade de uma  “eletrificação generalizada do sistema energético”. No que consiste esse processo?

De novo o Brasil é um caso peculiar, mas isso também se aplica ao nosso caso. A grosso modo, 80% das emissões no mundo são setor energético, transporte, indústria, setor residencial. O que interessa a todos é a energia, dado que hoje quase 80% da energia do mundo ainda vem de carvão, petróleo e gás natural. Para o mundo, energia interessa. Para o Brasil, tem um peso menor. Uma das maneiras de reduzir a dependência de combustíveis fósseis na área de energia é eletrificar tudo que é eletrificável. Caminhões que hoje andam a combustível deveriam ser elétricos, carros que andam a gasolina deveriam ser elétricos, etc. Quem mora em países mais frios, na Europa, nos Estados Unidos, no inverno tem aquecedor na sua casa que queima combustível ou gás natural. Eu mesmo que moro aqui no Rio tenho um chuveiro que não é elétrico, queima gás natural. Então você tem que eletrificar tudo que você pode. Por que eletrificar? Por que há um entendimento de que no fundo o que você precisa é descarbonificar a economia. Nessa transição é muito mais fácil eu ter um setor elétrico sem carbono, baseado em energia solar, eólica, hidrelétrica, alguns países que podem, não defendo, mas é um fato, energia nuclear. O setor elétrico do mundo pode ser dependente de energia elétrica 100% descarbonizada. A solução seria eletrificar carros, ônibus, caminhões, residências, tudo. E uma vez eletrificado você só reduz a emissão de CO² se essa eletricidade tiver uma base não fóssil. Daí a importância do eólico, do solar, hidrelétrico, países que podem ter energia geotérmica, etc. A ideia é eletrificar tudo que é eletrificável a partir de uma energia elétrica que não emita carbono. Aquilo que não pode ser eletrificável, ai é preciso pensar como você faz. Eventualmente alguns setores não são eletrificáveis vão depender de fontes ricas em carbono. Daí vai acontecer o que? Outros setores da economia vão ter que ter emissões negativas para compensar as emissões positivas daqueles setores que não tem como zerar suas emissões. Uma maneira de você ter emissão negativa é reflorestamento e florestamento. Mas existe um limite de quantas árvores você pode plantar, né? Você tem que pensar em outras alternativas de tirar CO² da atmosfera. Tem algumas muito controversas aí. Uma delas é o DAC, o Direct air capture, um processo que capta o CO² do ar, mas que gasta muita energia para fazer isso. É como se você jogasse o lixo na areia da praia e depois viesse um gari limpar, tira o lixo para você. Dado que já se sujou a atmosfera, você também vai ter que começar a tirar CO² da atmosfera. No caso brasileiro, você tem uma peculiaridade no próprio setor energético. Você tem o uso de biocombustíveis no Brasil, o uso de biomateriais, ou seja, uma economia mais baseada na biomassa.  Nesse caso, você poderia já na produção de etanol ter na destilaria a captura do CO² que sobra no processo de fermentação para produzir o álcool. Nesse caso, você tem a cana de açúcar tirando o CO² da atmosfera quando ela cresce e depois o CO² não escapando na fermentação. Assim é possível ter parte do setor energético brasileiro com produção negativa de CO² compensando em emissão positiva aqueles setores que durante algum tempo ainda não vão ser descarbonizados.

E qual seria o papel dos CBIOs (créditos de descarbonização)?

Isso é um mecanismo financeiro, mas por trás é preciso ter a ação concreta. Você teria setores da economia que estariam conseguindo produzir, entre aspas, carbono negativo. Se hoje no seu quintal você plantar uma árvore, você vai estar tirando CO² da atmosfera. Teoricamente, fazendo isso, você poderia cobrar ou vender o crédito de carbono. Do ponto de vista da economia financeira é uma das maneiras de viabilizar que alguns setores econômicos sejam carbono negativo, criar benefícios financeiros para remunerar aquele setor por isso. Você não é obrigada a plantar uma árvore. Mas talvez se alguém começar a te pagar pra plantar você faça isso. E por que alguém vai te pagar? Porque se você plantar uma árvore você estaria girando o crédito de carbono, girando o CO² negativo. Nesse caso, uma siderúrgica, uma certa atividade econômica que não consegue zerar suas emissões, ou que considera muito caro zerar emissões, pode achar mais interessante que você gere carbono negativo para ela e que ela compre esse certificado de você. Esse é um dos mecanismos que você tem para amenizar [as emissões de gases do efeito estufa], mas são mecanismos financeiros. Você tem que ter ação concreta por trás. E ação concreta é ter setores econômicos que comecem a ter emissão negativa de CO².

Falando em ação concreta, como você vê as ações de litigância climática em curso no STF?

É uma questão muito interessante. Quando se fala em mudança climática, riscos da mudança climática, há dois riscos. Um é o risco físico da mudança climática. Chove pouco, você tem grandes secas, você quebra safras de agricultura ou as pessoas ficam sem água e por aí vai. O segundo risco da mudança climática é o que a gente chama de risco da transição. Por exemplo, dado que para o impedimento da mudança climática você tem que sair do setor de carvão, sair do petróleo, sair do gás, qual o risco de transição aí? Finge que você é dona de ações da Petrobras. Significa que empresas de petróleo ao longo do tempo vão perder importância e o valor de mercado dessas empresas vai para o brejo. O risco de transição é que investimentos feitos em certos setores da economia vão minguar ou vão quebrar. A Petrobras vai perder valor de mercado, se você tem ações lá você vai perder dinheiro. Se tem algum banco que está financiando a empresa de petróleo A, B ou C pode ser que o empréstimo que esse banco fez não seja pago de volta porque a empresa vai quebrar e não vai devolver o dinheiro.

E o terceiro risco é o mais novo, é o risco de litigância, que é algo que começa a pipocar no mundo agora. Alguns anos atrás, a indústria do tabaco começou a ser processada por omitir para as pessoas que quem fumasse poderia ter câncer de pulmão. Hoje em dia, a mesma coisa pode acontecer com empresas do setor fóssil. Não é impossível que a Shell seja processada, a British Petroleum. Nada impediria que uma ONG no Brasil quisesse entrar com um processo contra a Petrobras. Não estou querendo falar mal da Petrobras. Gosto da Petrobras, tenho vários alunos que trabalham lá. A questão é que essas empresas do setor fóssil estão, sim, sujeitas a processos na justiça de litigância ambiental. É uma questão para ficarmos de olho. Empresas desse porte sofrendo processos podem ter um impacto grande no setor financeiro, na economia do país, geração de emprego e renda.

A mudança climática está acendendo uma luzinha e falando “tá na hora de começar a transformar a cara desse mundo”. Esse relatório do IPCC deixa isso bem claro. O transformar a cara desse mundo não é uma coisa para depois de amanhã. E daí vem o comecinho nossa conversa. Antes de 2025 o mundo tem que atingir seu pico de emissões e começar a cair violentamente, se ele ainda quer ficar dentro do 1,5°C ou um pouco menos bom, ficar dentro dos 2°C.

Coppe/UFRJ
Arquivo EBC/Reprodução
Vinicius Mendonça/Ibama

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