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Dados analisados em 127 discursos revelam como os presidenciáveis usaram a religião na campanha

Reportagem
1 de outubro de 2022
09:00
Este artigo tem mais de 1 ano

“Por que eu cheguei à presidência? E essa é uma missão de Deus, que está salvando o nosso Brasil”, disse Bolsonaro, na embaixada brasileira em Londres, em 18 de setembro. “É o Deus da verdade, é o Deus do amor, não é o Deus do ódio, é o Deus do carinho, é o Deus da fraternidade. Eu acho que o meu Deus não é o Deus do Bolsonaro”, discursou Lula, em ato no Maranhão, no início do mês.

As duas falas não poderiam expressar melhor como os dois principais candidatos a presidente tratam de Deus nos seus discursos. Com o voto evangélico em disputa, termos relacionados à fé cristã e que se conectam com um arcabouço moral conservador ganharam destaque nas falas dos presidenciáveis. “O discurso religioso e o nome de Deus foi ativado muito mais nestas eleições do que em pleitos passados”, considera Paolo Demuru, doutor em Semiótica pela Universidade de Bologna e Pesquisador de Centro de Pesquisas Sociossemióticas da PUC-SP, que estuda comunicação e discursos políticos. Mas as mesmas expressões podem conter significados variados, a depender de como são empregadas, lembra o estudioso da comunicação.

Enquanto Bolsonaro afirma que a presidência é uma missão de Deus, reforça sua fé cristã e repete o lema “Deus, Pátria, Família” em quase todas as suas falas, Lula geralmente recorre a termos religiosos quando questiona o comportamento do rival à luz da moral cristã, rebate mentiras relacionadas a ele — como a de que fecharia templos — e acena a fiéis de outras religiões que não às católica e evangélica. 

Para chegar a essas conclusões, a Agência Pública em parceria com a empresa de análises de dados Novelo analisou 127 discursos dos quatro candidatos melhor colocados na corrida presidencial deste ano. Avaliamos como termos como Deus, temas religiosos e comportamentos morais ligados à religião aparecem na fala dos políticos.

A análise considerou discursos feitos do começo da campanha oficial, em 16 de agosto, até 22 de setembro. Além de Lula e Bolsonaro, a reportagem analisou discursos de Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). Com Ciro, o discurso sobre Deus não apareceu com destaque nas falas analisadas. Já Tebet aplica valores religiosos associados a grupos tradicionais, como a família e a figura da mulher como mãe.

Lula: “Tem demônio sendo chamado de Deus e tem gente honesta sendo chamada de demônio”

Era um dia frio e chuvoso no centro de São Paulo. No palco no Vale do Anhangabaú, cercado de aliados como a ex-presidente Dilma Rousseff, Lula disparou ao microfone: “A gente não tem medo de discutir política, se o pastor tiver falando coisa séria, a gente respeita, mas se ele tiver mentindo, a gente tem que enfrentá-lo e dizer que ele tá mentindo em nome de Deus, não se pode contar mentira, nem aqui e nem lugar nenhum do mundo”, disse.

A fala é uma das muitas feitas pelo petista que revelam algumas das principais preocupações da sua campanha: rebater acusações e mentiras de que sua vitória levaria a sanções contra grupos religiosos e também buscar votos entre a população que se identifica como religiosa, sobretudo a evangélicos que moram em periferias.

Em parceria com a Novelo Data, a Pública dividiu os discursos dos candidatos em agrupamentos de temas. No caso de Lula, Deus e temas religiosos apareceram como o quarto principal grupo.

Nesse conjunto, a primeira palavra associada a Deus é mentira. Ou seja, a análise mostra que Lula fala de Deus para se defender de acusações contra si e também para criticar falas de rivais políticos. “Alguns mentirosos tentam se apropriar de Deus”, disse durante ato em Curitiba, em 17 de setembro. No levantamento aparecem também variações desse termo, como mentir, mentindo e mentiras. 

Outro termo frequente no discurso de cunho religioso de Lula é “igreja”, que é utilizado pelo petista para rebater acusações de que ele fecharia templos. “Lula vai fechar as igrejas. O presidente nunca fechou”, afirma a propaganda eleitoral do candidato, em 15 de setembro. 

Lula também menciona igrejas para defender o estado laico e criticar o uso partidário da religião. Ele cita outras religiões que não as cristãs e afirma que, caso eleito, irá respeitar a pluralidade religiosa. “A igreja não pode ter partido. Então eu quero que vocês saibam que todas as religiões desse país serão profundamente respeitadas”, discursou durante ato em Curitiba, em 17 de setembro.

Nesse mesmo sentido, o candidato costuma utilizar o termo liberdade para se referir à liberdade religiosa, citando também religiões e crenças que não as cristãs. “O Estado não deve ter igreja, o Estado tem que garantir o funcionamento e a liberdade de quantas igrejas, as pessoas quiserem criar”, afirmou em encontro com evangélicos no Rio de Janeiro, em 9 de setembro. “Eu já vi naquele país pessoas tentando derrubar terreiro da nossa famosa e querida religião de matriz africana e nós precisamos dizer a todo mundo: cada um tem liberdade de seguir a sua fé e a sua religião, não existe uma verdade absoluta”, falou em Curitiba, em 17 de setembro.

O grupo de religião na narrativa de Lula está próximo de outro grupo de expressões relacionadas às mulheres. Essa proximidade observada na análise de dados pode sinalizar uma associação dos temas na tentativa de conquistar o eleitorado feminino evangélico, que tem maior rejeição a Bolsonaro. 

Bolsonaro: “Eu agradeço a Deus, agradeço a ele a missão que ele me deu de me colocar na presidência da República”

Se nos discursos de Lula o grupo de termos ligados a Deus e religião aparece em quarto lugar, nos de Bolsonaro, ele é o segundo mais frequente: em mais de 10% de todos os trechos de discursos do presidente analisados há alguma menção a Deus ou tópicos relacionados.

Na maioria das vezes, as menções a Deus feitas por Bolsonaro ocorrem dentro de um dos seus lemas de campanha: “O nosso lema é Deus, pátria, família e liberdade. Esse é o sentimento da grande maioria do povo brasileiro”, afirmou o presidente em discurso na embaixada do Brasil em Londres, em 18 de setembro.

A frase não é uma criação inédita de Bolsonaro, mas remete ao movimento Integralista Brasileiro, da década de 1930. Com origens no fascismo italiano, a Ação Integralista Brasileira (AIB) foi um grupo ultranacionalista, conservador e que se identificava com o catolicismo. Os integralistas usavam o mote “Deus, pátria e família”.

Além de Bolsonaro, membros do seu governo já usaram expressões relacionadas ao integralismo: em 2019, o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo disse em seu discurso de posse o termo “anauê jaci”, que significa “Ave Maria” no idioma tupi — anauê é uma saudação usada pelos integralistas. Em entrevista, a ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, disse que “esse movimento se identifica comigo porque as minhas pautas são muito parecidas com as dele”.

O lema “Deus, pátria, família e liberdade” tem sido utilizado por Bolsonaro em alternância com seu slogan da campanha de 2018, que também tem referência religiosa: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. 

Além dos lemas com a citação a Deus, nos discursos de Bolsonaro, o termo que mais surgiu associado à temática religiosa foi a palavra “eu”. A análise feita pela reportagem mostra que Bolsonaro faz menção a si mesmo como um “instrumento” ou “missão” divina. “Algo aconteceu em 2018. Não sou herói e não sou mito. Creio que estou sendo instrumento de Deus”, disse durante ato de campanha em Curitiba, em 1º de setembro. “Eu cheguei à presidência, mas por que eu cheguei à presidência? E essa é uma missão de Deus, que está salvando o nosso Brasil”, afirmou na embaixada brasileira em Londres.

“Bolsonaro tem uma forma de se referenciar a Deus muito personalista. Ele tem um forte componente messiânico no seu discurso, que retoma uma retórica evangélica sobre representantes escolhidos por Deus. Seu discurso tem também um componente de medo. Há a ideia de uma ameaça. Ele aparece como alguém capaz de enxergar a catástrofe e também resolvê-la”, diz o pesquisador Paolo Demuru à Pública.

“Bolsonaro usa essas imagens antagônicas – o bem contra o mal. O mal, os diabólicos, são as esquerdas, Lula, o PT, que ele vincula ao comunismo, a regimes ditatoriais como o da Nicarágua e à cristofobia, que seria a perseguição aos cristãos”, explica Demuru. 

Outro argumento frequente no discurso de Bolsonaro é citar sua identidade cristã para reforçar sua candidatura à presidência. “Hoje vocês têm um presidente que acredita em Deus. Que respeita os seus policiais e seus militares. Um governo que defende a família”, falou durante o ato de 7 de setembro na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.

Bolsonaro também tem evocado o discurso religioso na figura da sua esposa, Michelle. “Não há o que discutir uma mulher de Deus, família e ativa na minha vida. Não é o meu lado não. Muitas vezes ela está na minha frente”, disse também no 7 de setembro em Brasília. Reportagem da Pública mostrou como a campanha bolsonarista tem construído a figura de Michelle para as eleições, comparando a primeira-dama à personagem bíblica que mistura política e religião.

O presidente também tem utilizado o discurso religioso para criticar governos de esquerda, que considera socialistas ou comunistas, uma retórica comum nas falas de Bolsonaro desde a campanha de 2018. “E peço uma coisa ao nosso Deus, peço uma pedra ao nosso Deus que o povo brasileiro não sinta as dores do comunismo”, disse em comício em Prudentópolis, no Paraná, em 16 de setembro.

Discurso religioso: modos de usar

O pesquisador Paolo Demuru dedicou um capítulo do seu livro “Um bufão no poder” para política e religião. Na obra, ele analisa estratégias de comunicação do governo Bolsonaro junto com a também pesquisadora de comunicação Yvana Fechine. Demuru acredita que o uso mais intenso de signos religiosos nos discursos destas eleições se deu porque, desde o começo do ano, havia a compreensão de que o voto evangélico seria fundamental na disputa.

No livro, ele explica que Bolsonaro usa uma narrativa escatológica em suas falas. Ou seja, ele ativa palavras e uma imagética que suscita a ideia do apocalipse bíblico, e isso “contribui para formar o discurso conspiratório”, na qual ele “emerge como um messias salvador da nação”. 

Emanuel Freitas, professor de teoria política da Universidade Estadual do Ceará, cujos estudos também têm foco nos discursos políticos e na religião, observa que houve um esforço por parte dos candidatos de modular os discursos para se aproximar do eleitorado evangélico e católico carismático. “No início da campanha, o PT achava que Lula não precisava ir para o discurso religioso. Se achava que o candidato atingiria o público evangélico mais pobre falando de fome, desemprego, porque afinal são dificuldades que essas pessoas enfrentam. Mas isso me parece ser um profundo desconhecimento do partido desses religiosos para quem a situação econômica também diz respeito à providência divina, à prosperidade”, observa.  

Para ele, há maior aderência do público evangélico e católico conservador ao discurso de Bolsonaro, que passou os “quatro anos de mandato visitando templos, fazendo medidas que contemplam o segmento cristão e falando sobre temas caros a esse público, como combate ao aborto e à ‘ideologia de gênero’”. “Ele produziu imagens e deu elementos factuais para sustentar suas falas diante desse público, ou seja, a fala não ressoa apenas como palavras vazias”, considera Freitas. 

Há, no discurso de Bolsonaro, uma estratégia que Freitas chama de “pânico moral”. “Ele repete a ideia de que há um perigo rondando – o perigo do aborto, da ideologia de gênero. Em 2020 foi a mentira do ‘kit gay’. É uma estratégia discursiva antiga”. 

A pandemia terminou funcionando para estreitar ainda a comunicação de Bolsonaro com segmentos cristãos conservadores, segundo Freitas, porque o presidente saiu em defesa da abertura das igrejas durante a crise sanitária, uma pauta defendida por muitas lideranças evangélicas.  “Quando Lula chega tentando uma aproximação, ele é desacreditado porque essas principais lideranças do meio estão com Bolsonaro. E muitas falas de Lula mostram um desconhecimento do segmento evangélico e católico carismático, como quando ele falou de ‘facção religiosa”, diz.  

Demuru observa que Lula passou a mobilizar mais termos relacionados à fé cristã no seu discurso. Isso se deve, na opinião do pesquisador, ao fato de que o PT perdeu muitos votos em 2018 desse público, sobretudo de evangélicos periféricos, que foram cooptados por lideranças aliadas a Bolsonaro, como o pastor Silas Malafaia, da Assembleia Vitória em Cristo, e o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. “Lula usa um contexto discursivo que inscreve Deus muito mais se referindo a evangélicos de periferia. Ele ativa os elos entre a religião e as demandas das periferias – como trabalho, comida na mesa, pensando em cidades onde esse eleitorado vive”. 

No caso dos candidatos Ciro e Tebet, embora os termos religiosos não recebam destaque nas falas, foram feitos outros acenos. Na pré-campanha, Ciro gravou vídeo com a Bíblia e a Constituição, afirmando que não eram “livros conflitantes”. “Talvez esses candidatos não tenham entrado tanto no discurso porque talvez não seja um público alvo. Enquanto estratégia de discurso eleitoral, já é um espaço  saturado, muito ocupado por Bolsonaro, e que agora também está em disputa por Lula”, analisa Paolo Demuru.  

Renascimento conservador

Política e religião andam juntas há bastante tempo. Há ciclos históricos, contudo, onde acontece uma espécie de renascimento e ondas conservadoras que já tinham emergido em outros momentos voltam a ter destaque. Isso não acontece apenas no Brasil, explica o pesquisador Paolo Demuru. “Populistas de direita reatualizaram discursos políticos religiosos fascitas e nazistas em todo o mundo. Nos últimos anos, houve uma virada no discurso religioso. Basta observar lideranças como Trump (EUA), Orbán (Hungria), Putin (Rússia). No Brasil, o representante dessa onda é Bolsonaro”, diz. 

Para o doutor em Semiótica, o que liga o discurso de todas as lideranças da extrema direita internacional são teorias da conspiração como o ‘globalismo’ e a ‘cristofobia’. O pesquisador e professor Emanuel Freitas considera que “Bolsonaro é hegemônico no discurso religioso dentro da política brasileira”. Ele é, portanto, o agente que estabelece o tom das falas, que terminam sendo replicadas pelos concorrentes e também por políticos que estão nas disputas estaduais. 

“A coisa que eu mais vi no Ceará este ano foi a quantidade espressiva de candidatos compromissados com esses mesmos temas relacionados à fé cristã, como aborto e combate à ideoligia de gênero. Então a estratégia de dominação do discurso religioso deu certo pela mobilização do segmento evangélico e pelo número de candidatos que replicam essa gramática”. 

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