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Mesmo com alerta sobre indígenas isolados governo quer abrir floresta a madeireiras

Plano de manejo na Flona Balata-Tufari (AM) “território tradicional dos indígenas Juma e Katauixi” não foi paralisado

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24 de novembro de 2022
12:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Em meio às últimas eleições presidenciais, o governo de Jair Bolsonaro iniciou um edital para autorizar madeireiras a realizarem um plano de manejo dentro de uma Flona (Floresta Nacional) na bacia hidrográfica do Purus, no Amazonas, a Balata-Tufari, que tem cerca de 1 milhão de hectares. Ao saber disso, funcionários da Funai (Fundação Nacional do Índio) advertiram por escrito sobre relatos acerca da presença de indígenas isolados dentro da Flona e solicitaram a paralisação do processo da concessão “até que as investigações sobre a existência de povos indígenas isolados neste território sejam devidamente concluídas”. O processo não foi paralisado.

As ações do governo sobre a Flona coincidiram com o início de uma investigação ainda em andamento, desenvolvida pela Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus da Funai, de rumores sobre um suposto ataque contra o mesmo grupo isolado dentro da Flona perto do rio Itaparanã. Sem publicidade, desde julho passado a Funai já realizou duas ações simultâneas, incluindo uma expedição por barco no local do suposto conflito. A suspeita, porém, não foi confirmada até o momento nem foram encontrados indícios de um ato violento contra indígenas. Entretanto, os indigenistas da Funai solicitaram a realização de uma nova expedição, com mais estrutura e sobre um território mais abrangente, já a partir do mês que vem, por considerarem o tema “emergencial”.

O órgão responsável pelo edital é o SFB (Serviço Florestal Brasileiro), vinculado ao Ministério da Agricultura. Sobre a concessão na Balata-Tufari, o órgão já realizou duas audiências públicas, em Canutama, em 28 de agosto, e em Lábrea, em 29 de agosto, ambos municípios do Amazonas. Além disso, fez uma “reunião técnica virtual” em 14 de setembro deste ano. Com isso, diz o órgão, “a fase de recebimento de contribuições da sociedade ao projeto foi finalizada em 30 de setembro”.

O SFB diz que, na confecção dos PAOF (Planos Anuais de Outorga Florestal), a Funai é consultada e “convidada a participar das consultas públicas das concessões florestais”. Afirma ainda que “quando são identificados interesses indígenas, se estabelece uma agenda de discussão própria”.

Em resposta a uma série de indagações da Agência Pública, o SFB respondeu que, a respeito da Flona Balata-Tufari, a Funai nada falou sobre isolados na região quando da realização dos PAOFs de 2021, 2022 e 2023.

“As informações fornecidas pela Funai para a elaboração dos PAOFs não indicam a existência de registros de povos isolados no interior da Floresta Nacional de Balata Tufari e indicam a existência de um Povo de recente contato (Povo Juma). Durante o processo de consulta pública, em 26 de setembro de 2022, o SFB recebeu um Ofício da Coordenação da Frente de Proteção EtnoAmbiental Madeira-Purus da Funai indicando a existência de investigações acerca da existência de povos indígenas isolados na Flona. O SFB está tratando do caso com a Funai, desta maneira não existe uma posição Institucional consolidada”, informou o SFB à Pública.

Expedição identificou ação de madeireiros na floresta nacional

O silêncio da Funai quando da realização dos PAOFs, relatado pelo SFB, contrasta com outras informações fornecidas ao Serviço Florestal pelo próprio órgão indigenista. No ofício de setembro passado, por exemplo, a coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental do Purus esclareceu que “há diversos relatos entre castanheiros e pescadores que atuam na região de que há mais sobreviventes dos massacres vivendo em isolamento no interior da Flona Balata-Tufari, território tradicional destes grupos Kagwahiva”.

De acordo com o ofício, as informações “têm sido sistematizadas dentro de um cadastro de informações de povos indígenas isolados que é administrado pela CGIIRC – Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato/Funai. A Flona Balata-Tufari corresponde ao registro de povos isolados número 11 neste sistema de proteção próprio da Funai”. Ou seja, o registro relativo à Flona é catalogado e conhecido pelo setor de indígenas isolados vinculado à direção da Funai em Brasília.

A Frente também explicou ao SFB que a Flona “é território tradicional dos indígenas Juma e Katauixi” e que há “relatos da presença destes indígenas desde o século XVIII”. A Funai explicou que “diversos episódios de violência contra estes povos indígenas na região foram responsáveis por diminuir drasticamente esta população indígena que já foi estimada em milhares pelos primeiros viajantes historiadores do sul do Amazonas”.

Um episódio que ilumina esse processo violento é o relato de uma chacina ocorrida em novembro de 1963 e possivelmente praticada por um explorador de castanha e sorva no igarapé do Onça, perto do rio Itaparanã. Com 12 homens armados, ele teria atacado diversas aldeias e matado pelo menos 40 indígenas, incluindo mulheres e crianças. Uma hipótese em estudo é que os isolados da Balata-Tufari sejam da etnia Juma que se afastaram dos seus parentes depois dessa chacina. Hoje os mais de 20 Juma conhecidos habitam a terra indígena homônima, de 38 mil hectares, também no Amazonas, e outra em Rondônia.

A Frente de Proteção também solicita a suspensão de editais em outras três Flonas: Bom Futuro, Iquiri e Humaitá, que “também estão vinculadas ao um [sic] registro da presença de povos indígenas isolados”.

Sobre os isolados, há ainda os resultados da expedição realizada em agosto e setembro passados para averiguar a suposta violência contra indígenas dentro da Flona. As primeiras informações partiram de dois moradores da região, que teriam visto corpos de indígenas perto do rio Itaparanã. Eles comentaram o suposto fato com dois moradores de Tapauá (AM), incluindo um ex-servidor da Funai. Esses moradores levaram a preocupação à Funai, que decidiu investigar.

Coordenada pelo servidor da Funai Daniel Cangussu e com apoio dos colegas Rogélio Nogueira Alves e Antônio Marcos da Rocha Moisés, a expedição teve a participação de dois indígenas, Mandeí Juma e Awip Uru-Eu-Wau-Wau, que também poderiam atuar como intérpretes em um eventual contato com os isolados. Dois policiais militares participaram da viagem e quatro servidores da Funai prestaram auxílio logístico.

A expedição confirmou a presença de acampamentos de madeireiros ao longo do rio Itaparanã com sinais de uso recente. Achou correntes de motosserra descartadas como lixo, o que indicaria uma intensa atividade de corte de madeira. Havia sinais da atividade de extratores de copaíba, uma espécie de árvore. Embora supostamente representem um impacto ambiental menor do que os madeireiros, os copaibeiros podem ser uma ameaça ainda maior a grupos indígenas isolados, pois penetram, de forma silenciosa, cada vez mais fundo na floresta atrás de copaíbas “virgens”, potencializando o risco de encontros fortuitos com isolados.

A equipe apontou que há diversos relatos sobre a existência de indígenas isolados no interior da Flona. Embora não tenham sido encontrados, durante a expedição, vestígios conclusivos, a equipe observou vestígios antigos, como cortes e incisões nas árvores para extração de mel, que podem corresponder a práticas indígenas. Os servidores solicitaram a realização de novas expedições em outros igarapés e rios da região.

Puré Juma Uru-E-Wau-Wau, que vive na Terra Indígena Juma, em Canutama (AM), disse por telefone à Pública que “em nenhum momento fomos consultados, procurados pelo governo” a respeito do edital da concessão da Flona, mas que só recentemente estavam ocorrendo contatos entre os Juma e o SFB para conversar sobre o assunto. “Nós vamos pautar algumas questões que a gente vê que é um impacto. A gente não aceita [a concessão da Flona], se for aceitar, tem que ter um respaldo, um cuidado com a terra indígena e o impacto que a gente vai sofrer posteriormente com o edital.”

Puré Juma disse que também está preocupado com o impacto sobre os indígenas isolados. Disse que a presença dos indígenas isolados pode ser verdadeira, devido aos massacres do passado que podem ter separado os Juma em grupos. “Hoje nós somos uma barreira de defesa, um escudo para eles. Como eles são mais nativos, para eles um barulho de trator, de um tiro, já vão receber como uma ameaça, pode querer revidar com flecha ou se refugiar para mais longe. Então a gente não quer que isso venha a ocorrer. Já temos relatos de que isso já aconteceu [no passado]. Isso pode gerar mais conflitos com a equipe da concessão florestal. Quando eles forem se proteger, pode gerar uma tragédia.”

Procurada desde a semana passada, a Funai não se manifestou até o fechamento deste texto – caso envie esclarecimentos, o texto será atualizado. O SFB disse ainda que “no momento estamos analisando as contribuições e verificando a necessidade de adequação dos documentos do projeto. Paralelamente, foi mantido o esforço de consultas junto a populações indígenas locais, como o Povo Juma. Este processo não possui data para ser finalizado”.

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