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Para evitar “pânico”, representantes do governo Bolsonaro sugeriram que dados sobre a letalidade não fossem divulgados

Reportagem
13 de fevereiro de 2023
11:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Enquanto os veículos de imprensa faziam homenagens às vítimas e divulgavam os óbitos pela Covid-19, o Painel de Informações do Governo Federal divulgava apenas o número de pessoas que se recuperaram da doença, uma estratégia de omitir informações sobre a crise sanitária e tentar provar que o governo de Bolsonaro estava se movimentando para combater a disseminação da doença, quando a realidade mostrava o contrário. A métrica buscava, em vez de conscientizar as pessoas sobre a importância de manter os protocolos sanitários e evitar novas contaminações, enganar a população de que o vírus que matou mais de 693 mil brasileiros era apenas uma “gripezinha”, como já afirmou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Na primeira ata referente à primeira reunião do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP), em 17 de março de 2020, “O Ministro Braga Netto ponderou a todos, (sic) que mantenham a calma e não transmitam informações erradas e precipitadas para não causar pânico na população, o único meio de comunicação com a imprensa será o da SECOM”. 

Trecho de ata do Comitê de Crise sobre a recomendação do então ministro Braga Netto para não divulgar informações que pudessem causar pânico na população sobre a disseminação e letalidade do coronavírus

A então Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, atualmente senadora da república, também recorreu às igrejas para ajudar na tarefa de falta de transparência. Em resposta a Braga Netto, ela informou que foi criado “um comitê interno utilizando-se das igrejas e comunidades religiosas para acalmar a população”. Segundo ela, as comunidades religiosas, que contam com canais de rádio e TV, “se dispuseram a colaborar com a transmissão das informações por esses meios”.

Trecho de ata do Comitê de Crise sobre a criação de um comitê interno entre o MMFDH e igrejas e comunidades religiosas para transmissão de informações sobre a pandemia

No mês seguinte, em 6 de abril de 2020, o representante da Secretaria de Governo da Presidência da República (SEGOV/PR), Samy Liberman, pediu que não fossem divulgados dados sobre a “letalidade do coronavírus”. “Como não realizamos testes em toda a população, esse percentual torna-se mais assustador à população, do que realmente é. Sugeriu, então, que fosse retirado o percentual de letalidade do painel, para que essa informação não seja distorcida e cause ainda mais pânico à sociedade”, registrou o documento do CCOP, subordinado à Casa Civil, comandada por Braga Netto. 

Trecho de ata do Comitê de Crise da Covid-19 sobre a divulgação da letalidade do coronavírus

Na mesma reunião, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo general da reserva, Augusto Heleno, propôs que os óbitos por Covid-19 fossem divulgados com a comparação feita em milhões de habitantes. De acordo com o representante do GSI, cujo nome não aparece na ata, esses seriam os dados usados pela comunidade internacional.

A Agência Pública já mostrou, também com base nas atas, que a estratégia de omitir dados negativos e divulgar informações positivas ao governo foi utilizada em outras duas situações. Durante a crise sanitária em Manaus, que matou 2.195 pessoas somente em janeiro de 2021, o Ministério das Comunicações sugeriu que a comunicação deveria se “concentrar no que foi realizado e enviado ao Estado do Amazonas nas últimas 48 horas, para fins de informações à População do Estado e de todo o País”.

A mesma tática se repetiu quando o Executivo se deparou com o aumento do número de casos e mortes entre populações tradicionais indígenas e quilombolas. Em 7 de maio de 2020, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos disse que era “importante melhorar a divulgação das ações realizadas, a exemplo daqueles (sic) direcionadas ao atendimento das populações indígenas”. Já em 31 de agosto, o representante do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) advertiu que a ativista climática Greta Thunberg e o Greenpeace fariam uma “manifestação internacional contra o Governo federal com ênfase nas questões Indígenas e Ambiental” e pediu que fossem apresentados “os diversos projetos e realizações feitas nessa questão”. 

Também o Ministério das Comunicações parece ter sentido a cobrança e, em uma das reuniões, prestou contas sobre suas ações. No dia 2 de outubro de 2020, apresentou ao grupo os números que mostravam o trabalho investido “na divulgação de todas as realizações do governo”. De acordo com eles, no mês de setembro haviam sido feitos 600 posts nas redes, 02 coletivas de imprensa, 25 materiais no site www.gov.br, 23 comunicados interministeriais e 719 pautas governamentais”.

Trecho de ata do Comitê de Crise da Covid-19 sobre as ações de divulgação realizadas pelo governo federal

As atas acessadas pela reportagem foram produzidas pela Casa Civil e são a memória escrita das reuniões realizadas pelo CCOP entre março de 2020 e setembro de 2021. As reuniões envolveram representantes de 26 órgãos da Esplanada, incluindo os principais ministérios, agências reguladoras, bancos públicos, a Polícia Federal e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). O CCOP foi criado a partir de um decreto de Bolsonaro logo no início da pandemia, em 24 de março de 2020. Suas reuniões, que ocorreram principalmente na Sala 97 do Palácio do Planalto, eram secretas e nem mesmo a CPI da Covid teve acesso ao material obtido pela reportagem via Lei de Acesso à Informação.

Durante a 5ª Reunião Ordinária do grupo, em 23 de março de 2020, a Casa Civil advertiu que “gravações, fotos, filmagens ou qualquer outro tipo de divulgação do CCOP estão terminantemente proibidas, por questão de ali serem tratados dados sensíveis”. Seguindo o próprio conselho, o General Walter Braga Netto, à época chefe da pasta, negou as tentativas de acesso aos documentos pela Pública quando ainda estava no governo. No final de janeiro deste ano, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a reportagem obteve o acesso aos documentos.

A imprensa

Os documentos também registram como a imprensa era vista internamente. Alvo de críticas constantes por parte do ex-presidente e seus ministros — Jair Bolsonaro disse em 2018 que quem lia jornais estava “desinformado” —, nas reuniões internas os representantes dos órgãos do Executivo pareciam se importar em estancar as críticas e compartilhar com a mídia informações positivas sobre as ações do governo.

No dia 21 de setembro de 2020, a Subchefia de Articulação e Monitoramento (SAM/CC) apontou que haviam publicado uma nota para informar a imprensa sobre a intenção do governo brasileiro em aderir ao COVAX Facility, iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) que distribuiria vacinas contra a Covid-19 para países subdesenvolvidos. Na época, o governo estava sendo criticado por não se empenhar na compra dos imunizantes. Assim, a orientação da SAM/CC foi para que os outros órgãos fomentassem “a divulgação das informações”, esclarecendo “que essa é mais uma das ações estratégicas do Ministério da Saúde para viabilizar a aquisição de vacinas, dentre as que estão sendo estudadas e disponibilizadas para enfrentamento a Covid-19”, conforme registrou a ata.

Trecho de ata do Comitê de Crise da Covid-19 sobre a intenção do Brasil em aderir à COVAX

Em 21 de maio de 2021, quando ainda enfrentava críticas acerca da logística da campanha de vacinação, o Ministério da Saúde (MS) disse que se reuniu com representantes da Prefeitura de Maceió, no Alagoas, e que o município registrou “alta efetividade na distribuição e na aplicação das doses”. “Pode ser um caso de sucesso para divulgar”, completou o ministério.

Também houve um esforço para evitar que “o tiro saia pela culatra” quanto ao auxílio emergencial, nas palavras do representante do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Em 6 de abril de 2020, o GSI informou que estava trabalhando com o Ministério das Comunicações, a Abin e o Departamento de Segurança da Informação para prevenir “possíveis ataques cibernéticos e saques ilegais que possam ocorrer no âmbito do pagamento do Corona Voucher [auxílio emergencial]”. 

“A preocupação se faz necessária, tendo em vista ter relatos de que já aconteceu isso com outros países e temos de ter o máximo cuidado e termos respostas à sociedade caso isso venha a ocorrer no Brasil, porque a mídia usará isso contra o governo federal. Portanto, temos que ter agilidade na comunicação, e o engajamento de todo o CCOP nessa demanda/esforço para evitar que ‘o tiro saia pela culatra’”, justificou o GSI.

Trecho de ata do Comitê de Crise da Covid-19 sobre "possíveis ataques cibernéticos e saques ilegais que possam ocorrer no âmbito do pagamento do Corona Voucher"

Outro momento em que o governo considerou ser necessário responder às críticas da imprensa institucionalmente foi quando da criação da nota de 200 reais. Na reunião do dia 31 de julho de 2020, o Banco Central do Brasil (BACEN) informou que a nota seria lançada, já que a pandemia teria gerado “uma crise que gera demanda por papel moeda”. O BACEN se defendeu das críticas sobre a “possibilidade de lavagem de dinheiro com a possível emissão dessas novas notas”, informando que “estão completamente seguros com a segurança e que isso não acontecerá”. 

A assessoria de comunicação da Casa Civil então “requereu ao BACEN que envie um release para que possam amenizar os impactos negativos sobre o tema na mídia e para o Governo federal”. 

Trecho de ata do Comitê de Crise da Covid-19 sobre o projeto de emissão da nota de R$200,00

Segundo uma reportagem do UOL de setembro de 2022, só uma a cada quatro cédulas existentes nesse valor circulam atualmente no mercado e a inflação corroeu 19,6% do poder de compra da estampa do lobo-guará, que hoje vale só R$ 161.

Já o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos comemorou quando o lançamento de um aplicativo para denunciar “o abuso contra a mulher” teve “ótima repercussão perante a sociedade e a mídia”; e chamou de “falsas notícias” informações publicadas pela imprensa sobre a “entrega de cestas básicas em regiões de difícil acesso”. “O MMFDH fez uma parceria com a Assembleia de Deus para ajudar ainda mais nessas entregas”, defendeu o representante do ministério.

Trecho de ata do Comitê de Crise da Covid-19 sobre a entrega de cestas básicas nas regiões de difíceis acesso

Logo nas primeiras reuniões, a Casa Civil fez questão de afirmar que todo o contato com a imprensa deveria ser centralizado na Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) — o que ajuda a explicar porque os ministérios não respondiam às demandas dos jornalistas, como aconteceu com a Pública na produção do especial coronavírus. 

De acordo com as orientações, dadas no dia 20 de março de 2020, tudo que os ministérios fossem publicar deveria passar pela Secom. “SAM vai disponibilizar link onde os ministérios informem o que vai ser comunicado no dia. A SECOM vai processar a partir das 16h, horário limite para envio via link”, explicou a Secretaria de Governo da Presidência da República (SEGOV). “Várias ferramentas serão utilizadas de uma forma mais adequada para uma narrativa mais favorável ao que se está pensando em atingir como público-alvo”, acrescentou o órgão. 

Trecho de ata do Comitê de Crise da Covid-19 sobre o fluxo de comunicação da secretaria de governo da presidência da república durante o início da pandemia

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Esta reportagem pertence ao especial Caixa-Preta do Bolsonaro – viabilizado graças ao apoio de milhares de leitores – que revela os potenciais crimes e abusos cometidos pelo governo Bolsonaro que ficaram escondidos por trás de sigilos, negativas e outras táticas de sonegação de informação. A cobertura completa está no site do projeto.

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