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“Tristeza”, “erro” e “autoritarismo”: líderes caminhoneiros comentam relatório revelado pela Pública

Reportagem

Em entrevistas à Agência Pública, três de oito líderes caminhoneiros fichados pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência) em abril de 2020, conforme revela um documento obtido pela reportagem, falaram em “tristeza”, “erro” e “autoritarismo” em referência à vigilância do governo Bolsonaro.

O relatório, obtido com exclusividade pela Pública, foi produzido pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e enviado à Casa Civil, pasta então comandada pelo general do Exército Walter Braga Netto, na qual funcionava um grupo interministerial criado para coordenar o combate à pandemia da Covid-19. O documento integra um conjunto de 170 arquivos produzidos pela Abin, de março a junho de 2020, ao qual a Pública teve acesso via Lei de Acesso à Informação.

Wallace Landim, o Chorão, de Goiás, um dos principais líderes da greve dos caminhoneiros que parou o país durante o governo de Michel Temer em maio de 2018, disse que desconfiava sobre monitoramento enquanto travava conversas com integrantes do governo Bolsonaro em 2020.

“As pessoas que não concordavam ou que batiam de frente tinham um certo diferenciamento. […] Eu sou uma pessoa que sempre luta pelo setor do transporte, principalmente pelos transportadores autônomos. Eu vejo uma notícia dessa [documento da Abin] com muita tristeza. Porque são pessoas, do governo, da Abin, querendo, de certa parte, como eu posso dizer, querendo te calar.”

Chorão disse que não fazia manifestações “nem a favor nem contra o governo”. “Eu sou uma pessoa que luta pelo sistema de transporte. […] Quanto tinha alguma coisa certa, eu elogiava, quando tinha coisa errada, eu criticava. […] Eu sempre tive esse posicionamento, é lutar pelo transporte. Então essas pautas ideológicas aí, querer derrubar governo, não é nosso objetivo, não é objetivo dos caminhoneiros.”

O líder caminhoneiro contou que “uma das pautas que o governo [Bolsonaro] prometeu foi justamente acabar com a PPI [sistema de reajuste de preços da Petrobras], e ele não cumpriu”, assim como “fomentar as indústrias, fomentar o agro, isso não aconteceu, não aconteceu nada”.

“Eu fico triste de saber que era alvo [da Abin] porque eu sempre tive o posicionamento voltado para o crescimento do país, voltado para o segmento do transporte.”

Chorão disse que percebia “movimentos estranhos” perto de sua casa e recados em tom de ameaça. Disse que chegou a falar sobre suas suspeitas ao então ministro da Infraestrutura, hoje governador de São Paulo pelo PL, Tarcísio de Freitas.

“Várias vezes [movimentos estranhos]. O pessoal falava que passava carro, principalmente perto de minha casa, ‘olha, passou uma camionete perto de sua casa, tirou foto’. Uma vez até comentei com o ministro [da Infraestrutura] Tarcísio, na época, hoje governador de São Paulo. Eu disse ‘governador [ministro], eu tô achando que tem algo de estranho, tem uns números [de telefone] de fora do país.’ Tinha questão de ameaça, recado de ‘olha o que você está falando, pare de bater no governo’. Eu nunca bati no governo [Bolsonaro]. Algumas vezes a gente recebia ligação. Então está aí a resposta, a resposta veio dois anos depois. Agora a gente sabe que a Abin estava investigando.”

Chorão disse que, depois de 2018, não participou de nenhuma paralisação. Ele contou que, em 2020, iniciou-se uma articulação com vistas a uma paralisação, mas a ideia foi abandonada porque várias decisões judiciais, inclusive solicitadas pela AGU (Advocacia Geral da União) do governo federal, impunham pesadas multas às entidades caminhoneiras antes mesmo que as paralisações começassem.

“A gente de fato ia fazer um movimento em prol dos transportadores e contra a PPI. Mas eu recebi 19 liminares. Nunca aconteceu isso. A própria AGU dava [obtinha] as liminares antes de acontecer. A paralisação não ocorreu. Eu recebi 19 liminares, transportadores autônomos, uma liminar de R$ 1 milhão, como é que faz? E aí quando manifestação pró-Bolsonaro, ninguém recebeu liminar nenhuma. Isso também eu questionei. Quando é pra reivindicar os direitos do segmento, aí a gente recebe liminar. Quando é pró-governo, ninguém recebeu liminar nenhuma nem a AGU colocou o posicionamento dela.”

Caminhoneiros durante protesto na Rodovia Presidente Dutra, em Seropédica, Rio de Janeiro, em 2018
Durante Covid-19, governo Bolsonaro fichou oito líderes caminhoneiros segundo o grau de “ameaça”

Fichamento “combina com o perfil de um governo com viés autoritário”, diz líder do RS

A existência de um relatório com o nível de “ameaça” que líderes do movimento caminhoneiro no Brasil representariam ao governo Bolsonaro não surpreendeu parte das vítimas, ouvidas pela Pública.

O fichamento de oito lideranças caminhoneiras no país contém fotos, nomes e apelidos, além dos seus estados de atuação e os níveis de “ameaça” que cada um deles representaria ao governo.

Ao lado das fotos dos caminhoneiros há qualificações separadas entre “alta”, “média” e “baixa” sobre atividades das lideranças. A avaliação inclui supostos níveis de “ameaça” que elas representariam, comparando-os a um semáforo de trânsito – sendo verde, o nível mínimo, amarelo, o intermediário, e vermelho o grau máximo de alerta.

“Infelizmente essa história não me surpreende nem um pouco, porque combina com o perfil de um governo com viés autoritário, como era naquela época”, disse à reportagem Carlos Alberto Dahmer, o Litti, atual diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Logística (CNTTL). Ele relatou ainda que suspeita, “desde sempre”, que seu telefone seja “grampeado”.

Segundo Carlos Litti, líder caminhoneiro no Rio Grande do Sul, “com exceção do âmbito da política” não havia perseguições do governo Bolsonaro contra ele e as organizações com as quais tem ligação.

“Nunca fui diretamente ameaçado, mas sempre tive a percepção que viriam retaliações, porque, a nosso ver, o governo [Bolsonaro] não teve nem uma ação benéfica para a nossa categoria”, afirma Litti.

Ex-presidente Jair Bolsonaro (à esq) e o ex-diretor da Abin, Alexandre Ramagem (à dir).
Bolsonaro e Ramagem: caminhoneiros apontam “autoritarismo” em fichamento durante pandemia

“Nunca fui ‘ameaça’, sou um patriota”, diz líder de MG

Já para Fabiano Márcio da Silva, o Careca, liderança em Governador Valadares (MG) e região, a sensação é de desapontamento. “Somos pessoas que estavam lutando pelo nosso direito, certo? Como eu seria uma ameaça se sou um motorista de caminhão, se estou trabalhando, levando o ‘pão de comer’ para minha casa?”, diz Careca, que se define como “pai de família e patriota”.

Segundo o líder caminhoneiro, havia uma suspeita entre os membros da categoria quanto à vigilância do movimento por parte do governo Bolsonaro, especialmente em grupos de caminhoneiros no aplicativo de conversas instantâneas WhatsApp. “A gente tinha desconfiança que nos grupos tinha gente infiltrada, talvez da Abin, gente que ‘trabalhava’ contra as nossas falas nos grupos, números desconhecidos, com prefixo de Brasília, estranhos, né?”, diz Careca.

Na conversa com a Pública, a liderança autônoma de Governador Valadares (MG) ainda fez diversas críticas ao ex-ministro de Infraestrutura do governo Bolsonaro – e atual governador de São Paulo – Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP). Para Fabiano Careca, a pasta então trabalhava para “manobrar a categoria”.

“Quando a gente fazia reuniões no ministério da Infraestrutura, tinha uma sala de reuniões e, atrás do ministro [Tarcísio], tinha uma parede com uma janela de vidro escuro, fumê, e a gente tinha a impressão de que tinha pessoas monitorando quem estava na sala, monitorando as nossas conversas com o ministro”, diz o caminhoneiro.

“Só sei que tinha de ter uma investigação sobre isso, sobre as manobras que esse governo [Bolsonaro] teve com a categoria, se realmente foi gasto dinheiro público para monitorar caminhoneiro trabalhador, pai de família. Esse fichamento [da Abin] está erradíssimo, nunca fui ‘ameaça’, sou um patriota”, afirma ainda Careca

Outra liderança, Diumar Bueno, presidente da CNTA, preferiu não se manifestar. 

Nossa reportagem procurou a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o agora deputado federal Alexandre Ramagem (PL), à época dos fatos o chefe da agência e também o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que foi ministro da Infraestrutura, citado neste texto. Não houve retorno até a publicação. 

Procurada pela Pública para que comentasse o documento, a Abin informou nesta quinta-feira (25), por e-mail, que “não monitora indivíduos indiscriminadamente, mas cenários nacionais ou internacionais. Ao acompanhar uma ameaça, há a possibilidade de pessoas eventualmente ligadas aos eventos passarem a compor o cenário analisado”. 

A fala da Abin se choca com a negativa feita taxativamente por Ramagem ao Congresso Nacional em 2021, quando afirmou que a agência não monitora pessoas nem analisa indivíduos.

A seguir, a íntegra da nota enviada pela Abin à Pública:

A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) acompanha eventos com foco na segurança do Estado. O objetivo é identificar cenários de risco e gerar alertas oportunos acerca de ameaças contra a sociedade relacionadas a, por exemplo, terrorismo, crime organizado e prevenção de crises em setores estratégicos.

A Política Nacional de Inteligência (PNI), publicada pelo Decreto nº 8.793, de 2016, define os parâmetros e limites de atuação da atividade de Inteligência e lista as principais ameaças a respeito das quais a ABIN e o Sistema Brasileiro de Inteligência devem produzir Inteligência.

A ABIN não monitora indivíduos indiscriminadamente, mas cenários nacionais ou internacionais. Ao acompanhar uma ameaça, há a possibilidade de pessoas eventualmente ligadas aos eventos passarem a compor o cenário analisado.

Dados:

Esta reportagem pertence ao especial Caixa-Preta do Bolsonaro – viabilizado graças ao apoio de milhares de leitores – que revela os potenciais crimes e abusos cometidos pelo governo Bolsonaro que ficaram escondidos por trás de sigilos, negativas e outras táticas de sonegação de informação. A cobertura completa está no site do projeto.

Tomaz Silva/Agência Brasil
Carolina Antunes/PR

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