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Temporal no RS, fogo na Amazônia, destruição da Líbia: “o calor é combustível de desgraça”

Como os eventos recentes se relacionam com o El Niño e as mudanças climáticas

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15 de setembro de 2023
06:00

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Estava tudo parecendo um pouco calmo demais. Na terça-feira da semana passada (5), Dia da Amazônia, o governo comemorou que o número de focos de fogo na Amazônia no mês de agosto caiu 47,5% na comparação com o mesmo mês do ano passado. Foram registrados pelo programa Queimadas, do Inpe, 17.373 focos no bioma, ante 33.116 em agosto de 2022 – que tinha sido a maior quantidade para o período desde 2010.

É a partir de agosto, quando a estação seca já se firmou, que costuma ocorrer a maior quantidade de queimadas na Amazônia. Só que para a floresta tropical úmida pegar fogo não é tão simples. Sempre é bom lembrar que são necessários três fatores principais: a presença de muita matéria orgânica acumulada (troncos de árvores que foram derrubadas nos meses anteriores), um clima seco e alguém acender o fósforo.  

As perspectivas no início do ano eram que a situação poderia ser particularmente complicada em 2023 por causa dos dois primeiros fatores. Nos últimos cinco meses do ano passado, no fim da gestão Bolsonaro, o desmatamento da Amazônia subiu muito. Ou seja, matéria orgânica acumulada que poderia ter sido deixada para trás para ser queimada neste ano. Havia o medo, também, de que o desmatamento ainda seguiria alto neste ano.

Por outro lado, desde abril, cientistas que acompanham as condições climáticas que atuam sobre a Amazônia vinham alertando para a formação de um El Niño. O fenômeno que aquece as águas do oceano Pacífico na região equatorial do planeta tem como consequência um aumento da seca na Amazônia. Aí só faltaria a ignição.

Então veio o novo governo e pôs a fiscalização de volta a campo, conseguindo conter a motosserra e o correntão. Nos primeiros oito meses do ano, os alertas de desmatamento caíram 48% na comparação com o mesmo período do ano passado. Com mais atividades de controle, também fica mais difícil alguém se assanhar com o isqueiro. Foi provavelmente o principal fator que ajudou a conter o fogo em agosto.  

Mas setembro está indicando um quadro um pouco mais preocupante. Em apenas 13 dias, já foram registrados pelo Inpe 13.351 focos (quase 77% de todos os focos de agosto). Ainda está bem abaixo das queimadas de setembro do ano passado – nos mesmos 13 dias já tinham sido 24.952 focos. Mas no ano passado todos os crimes ambientais subiram no segundo semestre na Amazônia. Se, por um lado, isso está caindo neste ano, por outro, temos um El Niño em curso.

A Noaa, a agência americana de oceanos e atmosfera, calcula a cada trimestre um índice chamado ONI que avalia episódios de calor e de frio no oceano relacionados à presença ou não do El Niño. A última atualização, referente ao período de junho, julho e agosto, traz o ONI mais alto desde 2015 – quando ocorreu o mais forte El Niño dos registros.

Neste início de setembro, a quantidade de fogo tem chamado atenção no sul da região, principalmente no Amazonas e no Acre. 

No Amazonas, em 13 dias, foram 4.212 focos, quase metade de tudo o que queimou em todo o mês de setembro do ano passado. A intensificação das queimadas levou o governador do estado, Wilson Lima (União Brasil), a decretar estado de emergência ambiental por 90 dias. O sul do estado foi o local onde mais avançou o desmatamento no fim do ano passado. 

No Acre, em 13 dias foram registrados 1.402 focos, já superando os 1.388 de todo o mês de agosto. Há queda em relação a setembro passado, quando os primeiros 13 dias tiveram 4.211 focos, mas ainda assim merece atenção.

Enquanto o Norte seca, o Sul sofre com as chuvas. O ciclone extratropical que atingiu o Rio Grande do Sul na semana passada, causando uma cheia histórica e muito rápida do rio Taquari, deixou 47 mortos e também foi intensificado pelo El Niño.

Uma nota técnica divulgada ontem pelo Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden) afirma que o episódio foi “fortemente influenciado” pelo fenômeno que, segundo os especialistas, ainda nem atingiu sua máxima intensidade – o que está previsto para dezembro. “Logo, é altamente provável que eventos semelhantes possam se repetir nos próximos meses”, diz o Cemaden.

A previsão é que neste trimestre que se inicia (setembro-novembro) ocorram precipitações superiores aos valores normais na região Sul.

Tudo isso ocorre em um planeta com o clima alterado. Os meses de julho e agosto foram os mais quentes desde o início das medições. Os oceanos em todo o planeta estão bizarramente aquecidos neste ano. A partir de março a temperatura da superfície dos mares subiu e não baixou mais. Já são meses de calor muito acima da média do registro histórico. 

O período de junho, julho e agosto – verão no hemisfério norte – teve temperaturas recordes no Atlântico norte. O verão como um todo foi o mais quente já medido.

Todo esse caldo fervilhante das mudanças climáticas tem contribuído para desastres em todo o mundo. Quase metade da população mundial – mais de 3,8 bilhões de pessoas – viveu pelo menos 30 dias de temperaturas significativamente mais altas entre junho e agosto devido às alterações climáticas causadas pelo homem, segundo uma análise publicada na semana passada pela organização científica Climate Central. 

Pelo menos 1,5 bilhão de pessoas foram expostas ao calor provocado pelas alterações climáticas todos os dias durante os três meses.

Ainda está por ser investigada a relação do medicane (o furacão do Mediterrâneo) que atingiu a Líbia no início da semana com as mudanças climáticas. O raro desastre, o mais intenso a já atingir a África, que deixou mais de 5 mil mortes (número que deverá ainda subir muito se considerarmos que ainda há milhares de desaparecidos), sugou o calor do oceano.

Uma imagem dramática dá uma ideia do que foi isso. Imagine um mapa que mostre o norte da África, a Europa e o Oriente Médio. Nele dá para ver o oceano Atlântico que banha o oeste dos continentes, o Mediterrâneo, o mar Vermelho e o mar Negro. Todos em uma coloração laranja-escuro, indicando as altas temperaturas, com exceção de uma porção branca azulada no Mediterrâneo, justamente entre a Grécia e a Líbia.

Isso que estou tentando descrever apenas com palavras foi um mapa elaborado ontem (13) com imagens da Noaa pelo site Climate Reanalyzer referentes ao dia 11. O que ele mostra é como se abriu uma espécie de “buraco frio” no Mediterrâneo depois da passagem do ciclone Daniel. 

Mapa elaborado com imagens da Noaa

Vi essa imagem pela primeira vez reproduzida nas redes sociais de uma colega jornalista do jornal O Globo, a Ana Lucia Azevedo, então reproduzo também a forma como ela brilhantemente resumiu a situação. “O mar ainda ferve, mas na zona em que se desenvolveu e passou, Daniel sugou todo o calor, bebeu energia do mar. A área branca é onde ele puxou o calor e transformou na bomba climática despejada na Líbia. Calor é combustível de desgraça.” 

E o verão por aqui está só começando.

Reprodução

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