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Reportagem ouviu diversos etíopes que foram presos e torturados pela polícia no seu país.

Reportagem
9 de novembro de 2011
10:57
Este artigo tem mais de 13 ano

Leia abaixo alguns depoimentos:

“Ainda sinto uma queimação nas veias das pernas”

Um ex-empresário descreveu ter sido arrastado de sua casa à meia-noite e aprisionado por três anos nas regiões de Gode e Jijigam, no leste somali da Etiópia. Ele afirma ter sido mantido em uma cela junto com outros 67 prisioneiros. Não havia água encanada nem rede de esgoto. Os prisioneiros eram obrigados a defecar em canecas de plástico – por conta da falta de higiene, ele ficou doente.

“O tratamento era muito cruel. Eles nos levavam para fora das celas durante a noite para nos interrogar e nos torturar, fazendo perguntas para as quais não tínhamos resposta. Eu apanhei muito. Ainda tenho as marcas das torturas e sinto uma queimação nas veias das pernas. Todos os meus músculos doem”.

Ele afirma que algumas vezes for a amarrado e colocado em um pequeno buraco no chão, praticamente sem ar. Também ameaçavam jogarem-no em outro buraco “usado para matar pessoas”.

O ex-soldado

“Daniel” – o nome é fictício – era um capitão no exército etíope até ser preso por dois meses em uma prisão local e depois transferido para o famoso centro de detenção Maikelawi.

Ele descreve como a tortura era rotineiramente usada para obter confissões forçadas. Algumas vezes os prisioneiros nem sabiam de qual crime eram acusados.

“O interrogatório começa com espancamentos, depois eles amarram suas mãos e seus pés com ferro e te penduram de cabeça para baixo. Eles te afogam, depois usam cheques elétricos. Eles enchem sua boca para que não possa gritar”.

Em geral havia 50 pessoas na prisão. Todas sofreram feridas graves como resultado da tortura. Algumas delas perderam a mobilidade nas mãos, outras perderam as unhas. Houve um homem que foi pendurado pela mão por mais de 19 horas”.

“Fui jogada num buraco cheio de cobras”

Uma mulher de55 anos, que já é avó, disse que estava no meio de mais de 100 civis retirados do seu vilarejo pelas forças de segurança. Alguns foram mortos, incluindo o seu filho, enquanto outros foram para a cadeia.

Ela descreveu como estava ainda em choque pela morte do filho quando foi retirada do meio da multidão e jogada em um buraco cheio de cobras.

Ela foi deixada lá durante a noite, e foi picada. De manhã estava tão mal de saúde que os soldados, acreditando que estava morta, retiraram-na do poço para enterrá-la. Quando viram que estava viva, jogaram-na de volta.

“Mas as cobras não foram o pior; eu fui estuprada por uma fila de soldados”, diz ela. “Me estupraram em um quarto, um deles estava sobre minha boca e outro amarrou as minhas mãos. Eu desmaiei”.

Ao mesmo tempo em que era estuprada, ela conta que recebia pauladas com um pedaço de metal, e depois com uma baioneta.

Parte 1: Ajuda internacional financia brutalidades na Etiópia 

Parte 2: Reinado de terror no centro de detenção de Maikelawi

Parte 3: Ajuda financeira é usada como arma política no sul da Etiópia

Parte 5: Mídia é amordaçada por leis antiterror

Leia mais: A resposta da embaixada da Etiópia

“Eu tinha que lutar com os cães policiais por comida”

Um homem disse ter sido preso na sua casa à 1h da madrugada e levado a um campo militar na região de Gode. A prisão aconteceu há quatro anos, mas ele traz ainda as marcas da tortura.

“Eu fui amarrado com um fio elétrico ao redor do peito e das pernas e apanhei até ficar inconsciente. Só voltei a mim às 10 horas da manhã”.

Ele ficou preso por sete meses, durante os quais ele permaneceu muito tempo ao relento, vigiado por cães, e foi sistematicamente torturado. Ele afirma ter sido obrigado a beber água do esgoto e a brigar com os cães pela comida.

“As mulheres, eles estupravam. Como eu sou homem, era torturado. Eles me batiam com um bastão de metal parecido com o que usam para construções, e também me davam coronhadas de revólver e me chutavam com suas botas. Eu estava tão fraco que um chute me atirava para longe, como uma bola de futebol. No começo eu sangrava por causa das torturas, mas com o tempo apenas salivava muito”, diz ele.

“Uma noite, começou a chover e todos os guardas correram para buscar abrigo. Foi aí que eu encontrei um buraco na cerca de segurança e passei por ela. Eu não fui libertado; consegui fugir”.

Ele diz que nunca soube por que foi preso.

“Me bateram com um rifle até matarem o bebê que eu estava esperando”

Uma mulher descreveu ter sido presa quando estava gravida. Ela diz ter sido estuprada e espancada até perder o bebê.

Ela diz ter sido levada para uma cabana geralmente usada como lugar de descanso por um soldado de alta patente, onde foi agredida violentamente.

Um homem pulou no seu estômago e bateu nele com um rifle até matar o bebê. Depois ela foi estuprada até desmaiar.

A mulher descreveu ter visto um homem que também estava preso. Segundo ela, o prisioneiro foi torturado tão barbaramente que “sua língua e olhos estavam saltados para fora”.

“Também havia uma garota comigo, ela devia ter uns 16 anos. Ela também apanhou e foi estuprada, depois foi cortada e acabou em coma”.

A jovem mãe

Uma mulher de 30 anos estava dormindo no mesmo quarto que a sua mãe, o seu irmão e um bebê de dois dias de idade quando as forças do governo invadiram a sua casa.

Eles mataram o seu irmão e a arrastaram para a cadeia sem o filho. Ali ela foi mantida presa por dois anos e meio, onde foi repetidamente torturada. “Não fazia a menor diferença se era dia ou noite, eles não tinham medo de ninguém. Como eu podia lutar contra isso? Estava fraca e era cercada por centenas de homens armados. Eu desisti de viver”.

Além dela, outras 50 detentas eram sujeitas à mesma brutalidade – algumas continuam presas.

Ela conta que conseguiu escapar quando pediu que os guardas trouxessem remédios para ela.

As vozes dos oprimidos

Na região sudeste da Etiópia a chuva veio tarde e os grãos ainda não estão maduros.  Há milhões de pessoas desnutridas e passando fome. Em agosto deste ano, o Bureau visitou algumas das aldeias mais distantes ao sul. E ouviu os seguintes depoimentos:

“Queremos morrer mas a morte não chega”

‘Negasi’ é um agricultor de oposição ao governo.

“Não há problema que não exista nesse país. Quem se opõe ao governo não tem direito de viver em nosso país. Não podemos migrar porque não temos forças. Queremos morrer mas a morte não chega”, diz ele.

“Por causa de nossas posições políticas enfrentamos grande intimidação. Nos negam o acesso a fertilizantes e sementes porque somos da oposição. Muitos preferiram mudar suas preferências políticas. Se uma mulher segue o partido do governo e seu marido está na oposição, eles tentam forçar o casal a se divorciar. Nossa vida é uma prisão sem grades”.

“Fomos abandonadas até pelas nossas  famílias”

“Por causa da perseguição das autoridades locais fomos abandonados até por nossos parentes. Eles lhes dizem para se afastar de nós e não se deixar prender por laços sociais e culturais. Fomos abandonados não apenas pelo governo mas também pela comunidade local. Não posso apoiar o partido do governo – minha mente não aceita isso. Eu preferia morrer do que viver desse jeito”, diz ‘Yenee’, uma viúva que cuida sozinha de sete filhos.

“A situação é desesperadora. É frustrante. Vivemos pelas graças de Deus. Não há nada que possamos fazer”.

Ela conta que se as crianças não pudessem sair e pedir esmolas a família não teria como sobreviver. Essa é a única fonte de recursos.

“Aqui não há nenhum tipo de ajuda da ONU ou de países estrangeiros”

Um dos mais idosos da aldeia descreve como é a vida sem receber a tão necessária ajuda.

“Em outras regiões, a terra é fértil e eles têm a sorte de obter boas colheitas. Nossa área é muito populosa, cheia demais. E aqui não há nenhum tipo de ajuda da ONU ou de países estrangeiros. Nenhum tipo de apoio”.

“Houve algumas intervenções do governo nos últimos anos, mas esse ano não recebemos nada, ajuda nenhuma. Eles dizem que não tem recursos para mais, que está acima da capacidade do governo e que eles fizeram o que puderam e que agora não têm como obter mais doações”.

“Não há nenhuma vaca dando leite”

Encontramos uma mulher no alto da aldeia, sentada com uma criança no colo.

“Quando os homens trabalham, cuido sozinha das crianças. Mas eu também estou faminta e doente. O problema é que não há nenhuma vaca dando leite. A fome esse ano tem sido um grande problema. Não temos reserva de alimentos, apenas esperamos pela próxima colheita. Vivemos dessa esperança. Se tivermos pelo menos uma refeição por dia, sobreviveremos até a colheita. Com menos do que isso, não há salvação para nós”.

Parte 1: Ajuda internacional financia brutalidades na Etiópia 

Parte 2: Reinado de terror no centro de detenção de Maikelawi

Parte 3: Ajuda financeira é usada como arma política no sul da Etiópia

Parte 5: Mídia é amordaçada por leis antiterror

Leia mais: A resposta da embaixada da Etiópia

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