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Como na Tunísia e no Egito, cujos governos caíram na primavera árabe, a Etiópia recebe assistência financeira internacional apesar de violações de direitos humanos

Reportagem
9 de novembro de 2011
11:00
Este artigo tem mais de 13 ano

Por Angus Stickler e Caelainn Barr

O Reino Unido e a comunidade internacional estão sendo acusados ​​de fazer vista grossa aos abusos cometidos contra os direitos humanos na Etiópia, fornecendo ao país bilhões de dólares de ajuda apesar de evidências do uso do dinheiro como ferramenta de opressão política.

Uma investigação secreta feita em conjunto pelo Bureau of Investigative Journalism, parceiro da Pública, e a BBC revela que em diversas áreas da Etiópia, comunidades assoladas pela seca e pela fome estão sem alimentos básicos,  sementes e fertilizantes porque não apoiaram o primeiro-ministro Meles Zenawi, que está no poder desde 1991.

A investigação também trouxe evidências de que as forças do governo se utilizam de práticas de limpeza étnica, com detenções em massa, uso generalizado de tortura e de execuções extrajudiciais.

E revela que altos funcionários, tanto no parlamento da União Eeuropeia como no Reino Unido, têm agido com incompetência diante de relatórios recorrentes que denunciam terríveis abusos dos direitos humanos.

Além disso, em pelo menos uma vez a Comissão Européia tentou atenuar as informações de um relatório oficial que detalhava as principais acusações contra o governo etíope.

Doações generosas

A Etiópia recebe a cada ano US$ 3 bilhões de ajuda para o desenvolvimento, tendo como principais doadores os EUA e o Reino Unido, que este ano contribuirá com 290 milhões de libras, além dos 48 milhões de libras emergenciais anunciados em julho. Isso representa um aumento de mais de 24 vezes em relação à década passada.

A União Europeia também contribuiu com uma doação de 152 milhões de libras no ano passado.

Desde 2005, porém, quando Zenawi foi acusado de fraudar as eleições vencidas pela oposição na capital, provas abundantes de violações de direitos humanos são conhecidas pela comunidade internacional.

A portuguesa Ana Gomes, membro do parlamento europeu e chefe dos observadores da União Europeia (UE) durante a eleição de 2005 na Etiópia, cita inúmeros casos de violações aos direitos humanos. Em conversa com o Bureau, ela acusou a comunidade internacional de “imoralidade” por ignorar deliberadamente o assunto.

Segundo ela, “a indústria da ajuda não acontece somente na Comissão Européia, mas também nos países-membros que, individualmente estão entre os maiores doadores à Etiópia, como a Inglaterra e a Alemanha”. E acusa: “Eles querem que o negócio continue como de costume porque têm seus próprios interesses”.

Gomes afirma que os funcionários da Comissão Européia tentaram relativizar os fatos narrados nos relatórios escritos em 2005, que tratavam de problemas ocorridos durante as eleições. Os relatórios são vistos e editados por diversas pessoas.

“O que realmente me surpreendeu foi que o Departamento para o Desenvolvimento da Comissão Européia reescreveu completamente o meu relatório e o deixou ameno, fraco, alterando todas as passagens em que foram detalhadas a situação e a repressão sofrida pela oposição. Eu fiquei realmente chocada”.

Parte 2: Reinado de terror no centro de detenção de Maikelawi

Parte 3: Ajuda financeira é usada como arma política no sul da Etiópia

Parte 4: As vozes dos torturados

Parte 5: Mídia é amordaçada por leis antiterror

Leia mais: A resposta da embaixada da Etiópia

Fingindo de cego

O problema é que a Etiópia está em uma posição geográfica estrategicamente importante.

“Os líderes ocidentais não atacam o regime repressivo de Zenawi, alegando interesse em manter a estabilidade. Além de tentar retratar o caso da Etiópia como um sucesso de assistência ao desenvolvimento, a UE e os EUA buscam qualificar a ajuda como crucial na luta contra o terrorismo e na conquista da estabilidade política no Chifre da África “, disse Gomes.

O Bureau tem enviado relatórios confidenciais diariamente para o Embaixador da UE na Etiópia mostrando abusos rotineiros relatados aos altos funcionários da Comissão Européia desde 2005.

A repressão violenta contra os partidários da oposição por tropas de Zenawi foi descrita detalhadamente em 61 e-mails enviados pelo Embaixador Timothy Clarke a 27 funcionários que ocupavam os mais altos cargos da União Europeia.

Os e-mails foram enviados durante mais de três meses depois da eleição de 2005 e relatavam a preocupação crescente com assassinatos e prisões de milhares de civis por forças do governo.

Todos os membros do Conselho da Europa e de relações exteriores, desenvolvimento e ajuda da Comissão Européia foram contatados.

Em 12 de junho, Clarke exigiu uma ação imediata: “Violações aos direitos humanos essenciais estão sendo cometidas pelo governo diariamente e a UE deve responder com firmeza e determinação”.

No entanto, no dia seguinte, a presidência da UE elogiou as eleições.

E em 6 de julho de 2005, Zenawi, a convite de Tony Blair, participou da cúpula do G8 em Gleneagles, onde eles discutiram a pobreza na África.

Após a eleição de 2005, a UE deu 134 milhões de euros para a Etiópia e passou a doar 244 milhões de euros em 2007.

Zenawi no poder

Meles Zenawi chegou ao poder após a expulsão do regime militar de Derg em 1991 e ganhou apoio do Ocidente com a bandeira da “democracia revolucionária”.

Mas nas eleições de 2005, a oposição obteve uma vitória esmagadora na capital Addis Abeba.

O governo reagiu rapidamente e declarou vitória em todo o país. O povo tomou as ruas e em seguida houve uma violenta repressão. Dezenas de milhares foram detidos e 193 morreram.

Desde 2005, Meles Zenawi vem trabalhando por sua permanência no poder. Nas eleições de 2010, o governo garantiu 99,6% dos votos.

No entanto as alegações de detenções em massa, opressão, tortura e estupro continuaram emergindo.

Funcionários britânicos estão cientes das denúncias

As autoridades britânicas têm sido repetidamente avisadas das violações aos direitos humanos.

O professor Merera Gudina, fundador e líder de um dos partidos da oposição da Etiópia, diz ter lidado bastante com diplomatas britânicos nos últimos 15 anos. “Convidamos o embaixador e os diplomatas várias vezes a verificar o que está acontecendo, especialmente quando eles dizem que estão apenas protegendo os serviços essenciais”.

“Grande parte da ajuda ao desenvolvimento que vem para a Etiópia é mal utilizada pelo governo etíope. Nós os desafiamos a monitorar para onde está indo o dinheiro. Como o governo está usando [o montante]. Nós lhes demos as provas que tínhamos e os desafiamos a descobrir a verdade”, diz ele.

Relatórios da ONU, dos EUA e de organizações de direitos humanos também mostram abusos por parte do governo etíope.

“Não há como a comunidade internacional alegar que eles não tinha conhecimento dos relatórios. O que os impede de reconhecer o que está acontecendo de fato na Etiópia?”, pergunta Gomes.

Agora, a investigação do Bureau revela que o fato da ajuda internacional estar sendo utilizada como uma ferramenta política também está sendo ignorado.

Ben Rawlence, pesquisador sênior da ONG Human Rights Watch, que publicou vários relatórios contundentes sobre a situação na Etiópia, diz que “o desenvolvimento só está ao alcance das pessoas que apóiam o regime ou votam para manter o partido no poder.”

Isso levou comunidades inteiras a viver em uma situação de desespero, sem a ajuda mínima necessária.

Rawlence acrescenta que a comunidade internacional precisa “pensar melhor sobre como se deve se comportar em relação a um país que desrespeita os direitos humanos e se certificar de que a ajuda econômica realmente será usada onde deveria”. E adverte: “É muito, muito difícil”.

Nossa investigação também trouxe denúncias de que o combate à fome tem sido usado como instrumento de repressão, forçando milhares de pessoas a deixar o país.

Muitos estão fugindo para Dadaab, campo de refugiados no norte do Quênia, que está no centro das atenções internacionais porque recebe milhares de vítimas da fome da Somália.

Mas, ao contrário dos refugiados somalis, os etíopes que fogem da fome e do terror não estão sendo ouvidos.

Entre eles estão uma mulher de 35 anos que alegou ter perdido seu bebê após ser estuprada por membros do exército; uma avó de quatro netos, presa junto com outras 100 pessoas da sua aldeia, que diz ter presenciado o assassinato do filho; e um homem que contou ter sido brutalmente espancado e obrigado a lutar com cães para se alimentar.

“Fechando os olhos para as brutais violações dos direitos humanos, as eleições fraudulentas, o empobrecimento e expropriação na Etiópia, bem como o impacto das políticas da Etiópia com seus os vizinhos, a UE não só está fazendo mau uso do dinheiro dos contribuintes europeus, mas apoiando um estado ilegítimo, deixando em maus lençóis todos aqueles que lutam por justiça e democracia, além de aumentar o potencial de conflito na Etiópia e na África”, afirma Ana Gomes.

O embaixador da Etiópia na Grã-Bretanha Abdirashid Dulane disse à BBC que “faltou objetividade e imparcialidade” no programa. A Etiópia “condenou firmemente a tortura e as violações” e afirmou que a constituição do país prevê proteção para quem têm os direitos violados.

Já o ministro de Desenvolvimento Internacional britânico, Stephen O’Brien, declarou que “todas as alegações de violações dos direitos humanos são tratadas com extrema seriedade, inclusive pelo Governo da Etiópia, com quem temos um relacionamento honesto. Sempre que há provas, reagimos com firmeza e decisão”.

Segundo ele, o programa de ajuda britânica ao povo da Etiópia  beneficia 30 milhões de pessoas que vivem em extrema pobreza.

Parte 2: Reinado de terror no centro de detenção de Maikelawi

Parte 3: Ajuda financeira é usada como arma política no sul da Etiópia

Parte 4: As vozes dos torturados

Parte 5: Mídia é amordaçada por leis antiterror

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