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Peço licença ao leitor para entrar em um assunto que não é exatamente relacionado à tecnologia e democracia, mas perpassa alguns dos temas que temos discutido nas últimas semanas.
É domingo à noite, estou de biquíni na sala da minha casa, que, graças a Deus, tem piso de cimento queimado, o que mantém o ar fresco nessa semana de um calor enlouquecedor na selva de pedra que é São Paulo. Os termômetros chegaram a 41 graus hoje no centro da cidade e devem seguir altos. Tanto que a prefeitura teve que fazer pela primeira vez na história a Operação Altas Temperaturas para atender os moradores de rua – até então essas operações de atendimento aconteciam apenas no inverno. Como mostramos na Agência Pública, esses moradores têm enorme dificuldade em conseguir água. “A gente fica agoniado, a cabeça dói, no frio é ruim, mas o calor tá demais. Dá tontura, dor de barriga… é sofrimento. A verdade é essa”, disse Fabiano José.
É a onda de calor que lá no norte global causou o verão mais quente de todos os tempos. As altas temperaturas fizeram milhares de mortes na Europa e centenas de incêndios florestais. Nos Estados Unidos, pessoas tiveram queimaduras de terceiro grau ao tocar em objetos expostos ao sol, e o asfalto chegou a 80 ºC, derretendo rodas de carro, por exemplo, em Phoenix, no Arizona. A ilha de Maui, no Havaí, foi devastada por causa de um incêndio.
O Brasil é, neste momento, o lugar mais quente do mundo. O Instituto Nacional de Meteorologia emitiu alerta vermelho para 11 estados e o Distrito Federal, avisando que as temperaturas ficariam 5 graus acima da média por mais de cinco dias.
E olha que mal começou a primavera.
A onda de calor deste ano tem influência do El Nino, sim, mas ela vem para nos mostrar que a crise climática não é um assunto do futuro.
Pesquisadores do grupo World Weather Attribution afirmaram que as ondas de calor que afetaram a América do Norte e a Europa em julho teriam sido praticamente impossíveis sem a mudança climática causada pelo homem. Eles dizem também que eventos climáticos extremos devem se tornar mais frequentes.
A organização prevê que eventos como essa onda de calor atual ocorrerão aproximadamente a cada cinco anos se o aquecimento global atingir 2 °C acima dos níveis pré-industriais.
Como sabemos, o Acordo de Paris busca limitar o aquecimento a 1,5 °C. Mas nós já nos aproximamos, segundo esses pesquisadores, de 1,1°C de aquecimento.
Agora, por que eu estou falando de emergência climática nesta newsletter que discute tecnologia (em vez de deixar o tema para a especialista Giovana Girardi, em sua newsletter enviada às quintas-feiras)?
Porque eis que eu recebo a notícia de que a empresa brasileira Sustineri Piscis está fazendo testes para produzir carne de peixe em laboratório.
Essa solução esdrúxula tem pipocado em revistas e jornais do mundo todo, naquela mistura de marketing e aplausos acríticos, como uma grande solução “sustentável” que pode ajudar a combater os estragos da criação de frangos e bovinos, a pesca predatória, a degradação ambiental e, claro, combater a emergência climática. Existem vários laboratórios no mundo testando a tal “carne de laboratório”.
A Anvisa ainda não aprovou, mas a agência de administração de alimentos e drogas americana (FDA) aprovou duas empresas que fazem carne de frango em laboratório.
No caso da empresa brasileira, o processo funciona assim (até onde entendi): células são retiradas de robalos vivos e depois se reproduzem ao longo de duas semanas em um biorreator, mergulhadas numa solução líquida que inclui soro fetal bovino. No final, o que se tem é uma espécie de carne de robalo moída.
O fundador, o biólogo marinho Marcelo Szpilman, conseguiu fazer 500 gramas da massa proteica de robalo, parte da qual ele transformou em 46 bolinhos que foram servidos a um grupo VIP no badalado restaurante Xian, no centro do Rio.
É pouco; ele procura R$ 17 milhões em investimento para poder produzir mais e encontrar uma maneira de comercializar a solução.
“Como você produz mais proteína para sustentar 10 bilhões de pessoas em 2050? Como dobra o número de peixes capturados? Impossível, até porque o esforço de pesca é cada vez maior e cada vez [se obtêm] menos peixes”, perguntou o inventor ao site Reset. “Temos que criar o mercado, sair na mídia e mostrar que [a carne cultivada] já é uma realidade.”
O que me traz de volta àquela questão que tanto discutimos por aqui, seja em relação às redes sociais, seja em relação à inteligência artificial: por que seguimos aceitando todo e qualquer tipo de solução tecnológica como se fosse necessariamente boa?
Queremos realmente alimentar um mundo faminto (e sem água) com uma gororoba de peixe criada em laboratório que nem chegou a ser peixe, nem des-chegou a ser peixe?
Não seria o caso de a gente estar pensando em comer menos peixe, menos carne, consumir menos, cuidar do que ainda resta do nosso planeta? Repensar o hipercapitalismo que, depois de questionado nas ruas valentemente no início dos anos 2010, só aumentou o ganho dos ricos e a miséria dos pobres?
Infelizmente, caro leitor, não acho que será assim. Como no caso dos alimentos transgênicos, que causaram, entre outras coisas, uma enorme concentração do mercado e uma piora na qualidade dos alimentos, as carnes de laboratório se tornarão mais um caso de fato consumado. Assim como a inteligência artificial. E só servirão, mais uma vez, para entregar em poucas mãos privadas algo de que, se deixarmos, todos iremos depender.
O que nos faz voltar ao tema central desta e de todas as nossas colunas: o que está errado é a ideologia de que as soluções para os problemas mais prementes da humanidade serão sempre resolvidas com mais tecnologia. É essa mentalidade que temos que combater incansavelmente.
Tech won’t save us, já diziam os estudiosos da internet.