Falta de protocolos e falhas de informação e de capacitação específica para os profissionais de saúde dificultam o acesso ao aborto legal em pelo menos oito dos 20 hospitais cadastrados pelo Ministério da Saúde para realizar o procedimento no estado de São Paulo. A constatação é do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, da Defensoria Pública de São Paulo (Nudem/SP), que encontrou problemas graves durante visitas aos atendimentos.
O Nudem adiantou, com exclusividade para a Agência Pública, uma avaliação parcial das visitas feitas entre maio e junho deste ano. Esse é um resultado prévio de um levantamento mais amplo, que a Defensoria está produzindo sobre a qualidade do serviço prestado em São Paulo. “Até agora, já é possível afirmar que o fato do aborto ainda ser criminalizado dificulta o acesso ao procedimento, mesmo quando ele já é previsto na lei”, explica Nalida Coelho Monte, coordenadora do Nudem. O aborto legal é garantido pela legislação brasileira quando há violência sexual, risco de vida da pessoa gestante e/ou anencefalia do feto.
Durante as visitas, o Nudem identificou a falta de uniformidade dos protocolos para o procedimento em casos como, por exemplo, idade gestacional avançada. O Código Penal não determina a idade gestacional para interrupção da gravidez nos casos já previstos pela lei. Mesmo assim, a Defensoria encontrou hospitais que usam essa justificativa para negar o atendimento.
Foi o que aconteceu com Juliana*, 38 anos, mãe de dois filhos e moradora de Santos. Ela precisou sair do estado para ter acesso ao aborto legal. “Sofri violência do meu ex-companheiro. Demorei para entender que tinha sido estuprada e também para identificar a gravidez, porque tive sangramentos durante todo o período”, conta. Como procurou o serviço de abortamento legal no estado de São Paulo quando estava com mais de 22 semanas de gestação, Juliana teve o direito negado.
Com apoio de uma organização chamada Projeto Vivas, que ajuda meninas e mulheres a acessar o direito ao aborto legal, Juliana conseguiu ser encaminhada ao Hospital Climério, em Salvador (BA), onde o procedimento foi feito. “Recebi apoio financeiro para a viagem, porque estou desempregada e não conseguiria pagar. No hospital, fui acolhida, bem tratada, em momento nenhum me senti julgada, mas foi difícil porque precisei viajar sozinha. Ficar longe da minha família”, lamenta. “É triste porque o fato do meu estado me negar um direito tornou tudo mais difícil. Tive que enfrentar tudo sozinha.”
O Nudem identificou também hospitais que negam o procedimento com menos de 20 semanas de gestação. Em Santo André, por exemplo, de acordo com as defensoras, um hospital informou que só realiza o aborto legal até 12 semanas e seis sétimos de gestação, em casos de violência sexual. “Não há nenhuma regra que determine esse prazo de 12 semanas de gestação como limite para interrupção da gravidez. O que existe é um posicionamento antigo do Ministério da Saúde, que não tem força de lei e já está sendo revisto, sobre a idade gestacional limite para o aborto de 22 semanas”, explica a defensora e coordenadora do Nudem, Nalida Coelho.
Em Bauru, o Nudem identificou que a interrupção da gravidez também é feita em apenas até 20 semanas. Segundo a Defensoria, nos casos acima de 20 semanas, as orientações no hospital que presta esse serviço em Bauru seriam “levar a gravidez em frente, ficar com a criança, encaminhar para a adoção”.
A Pública questionou a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo sobre os entraves para o aborto legal no estado. A secretaria não respondeu até a publicação.
“Deixar feto desassistido” é argumento em hospital cadastrado para aborto legal
As defensoras questionaram os hospitais sobre a existência de objetores de consciência, ou seja, membros das equipes de saúde que têm preceitos pessoais que se opõem ao serviço de abortamento.
Em Santo André, segundo o levantamento do Nudem, o hospital que realiza o abortamento legal disse que, embora não haja objetores de consciência, a equipe apenas consideraria “eticamente aceitável a interrupção da gestação avançada [mais de 20 semanas] nos casos diversos de violência sexual”. No caso de violência sexual, o entendimento da equipe seria diferente, de acordo com as informações colhidas pelas defensoras, porque haveria “um conflito entre a vida do feto e a dignidade da mulher, de forma que, segundo eles, haveria uma ‘infração ética’ em deixar o feto desassistido”.
Durante as visitas, as defensoras ainda observaram outros entraves que desencorajam e dificultam o acesso aos serviços de aborto legal em vários municípios de São Paulo. Segundo a Defensoria, os hospitais não apresentaram protocolos para atender mulheres trans.
Outra questão é a falta de divulgação dos serviços pelo poder público. “Não divulgam uma lista pública de hospitais que fazem esse atendimento, com endereço, o que cada serviço faz e as hipóteses de aborto legal. Essa informação não foi repassada nem para a Defensoria. Nós pedimos desde janeiro, mas não tivemos resposta”, conta Nalida.
Em muitos desses hospitais, as defensoras identificaram que as equipes de saúde não tinham recebido capacitações específicas, como em direitos humanos das mulheres, métodos de oferta de aborto legal e aborto por telessaúde, por exemplo. Também uma grande quantidade de serviços que realizam o aborto por meio de curetagem, um procedimento que não é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) há mais de dez anos.
O Nudem continua monitorando a qualidade dos serviços de aborto legal no estado. O levantamento completo e detalhado deve ser apresentado em breve.