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Na semana passada, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou a privatização da Sabesp, e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, correu para sancionar a lei que vai abrir mão do controle estatal sobre a empresa, exercido hoje por ser detentor de 50,3% das ações. Só que ninguém sabe quanto o governo vai arrecadar com isso, já que a lei proposta não estabelece quantas ações serão vendidas – fala-se em manter “entre 15% e 30%” das ações, ou seja, a diferença é de alguns bilhões, e a decisão está nas mãos de Tarcísio.
O valor pode variar de R$ 8,4 bilhões a R$ 12,4 bilhões, segundo a Genial Investimentos, mas, como sabe qualquer pessoa que já assinou um contrato de compra e venda, 30% de nada é nada; 30% de 20% das ações da Sabesp é alguma coisa, mas é preciso saber um valor antes de comemorar.
Também não se sabe para onde diabos vai o dinheiro, uma vez que nenhum plano detalhado foi apresentado à população. Fala-se em usar 30% do valor arrecadado para um fundo que subvencionaria a conta de luz para os mais pobres. Mas neste momento não há nenhuma estimativa do tamanho do tal fundo nem como ele vai funcionar.
Já, já eu volto para as implicações de uma privatização que ninguém sabe por quanto será, nem qual o benefício que vai trazer aos usuários, nem como será gerido e distribuído.
Antes, uma pausa para eu ser sincerona com o leitor. Essa notícia me pega diferente porque meu pai é engenheiro hidráulico, sempre atuou com tratamento de água e esgoto, e toda vida trabalhou na Sabesp ou em empresas que forneciam serviços para ela.
Quando criança, a palavra Sabesp fazia parte da minha vida como a palavra “Guaraná” faz parte da vida da maioria dos brasileiros, algo de que você se lembra desde antes de começar a ler ou escrever. A palavra Sabesp estava nos relatórios enormes que ele enfileirava nas estantes mais altas do seu escritório, nos livros de capa azul-clara com nomes como “manejo de resíduos sólidos”, que eu não entendia, mas sabia que deviam conter uma verdade importante, e estava naqueles envelopes de papel grosso, marrom-escuro, que vinham com o nome de muitos outros engenheiros riscados a caneta, e onde ele riscava o seu nome e depois devolvia para algum mensageiro – era assim que se faziam os projetos de engenharia e relatórios na época do meu pai.
E a palavra Sabesp ressoava todas as vezes que a gente era obrigada a fazer um daqueles passeios nos quais o pai nos ensina sobre o seu trabalho. Só que, no caso meu e das minhas irmãs, íamos a estações de tratamento de esgoto, ou a enormes eclusas em diferentes rios, e eu sentia o orgulho na voz do meu pai quando ele contava como cada uma dessas coisas funcionava, tudo complicadíssimo pra minha cabeça de criança.
Meu pai me ensinou a amar o saneamento básico. E eu entendi que o trabalho dele era o trabalho mais importante do mundo. Enquanto nenhum de nós nem sequer para pra pensar onde vamos enfiar o “resíduo sólido” (estou elegante hoje) de 10 milhões de pessoas, ou como conseguiremos despoluir o rio Tietê, existem pessoas como ele que passam a vida buscando as melhores soluções.
É por isso que eu não compro o mais comum argumento que tenho visto nos jornais, de que a empresa Sabesp será “melhor gerida” se privatizada. É um argumento que carece de qualquer base factual; sabemos que algumas empresas melhoram quando privatizadas; outras são uma desgraça, como a Cedae e a Vale do Rio Doce, que se acostumou a assassinar brasileiros sem sequer ter a decência de demitir seu CEO depois de cada episódio.
É também por ser filha de um engenheiro hidráulico que leio e absorvo tudo que tem a ver com saneamento ou com a Sabesp; que eu reparo o tema. Que não esqueço que a Sabesp é a terceira maior empresa de água do mundo. Que reparei, por exemplo, que a empresa é constantemente uma das mais bem avaliadas em serviço de água e esgoto, que é bem vista pela população, que venceu no ano passado o primeiro lugar do ranking do Valor 1000, no setor de Água, Saneamento e Serviços Ambientais.
Que a Sabesp teve em 2022 um lucro de R$ 3,12 bilhões, 35,4% mais do que o ano anterior, e investiu R$ 5,4 bilhões em melhorar o serviço, sendo R$ 2,16 bilhões em água e R$ 3,22 bilhões em esgoto.
Mais em esgoto que em água: certinho, já que 98,6% da população é atendida pela rede de água, mas apenas 94,7% pela rede de esgoto (não é o caso desta que vos fala, por exemplo).
Uma diferença gritante em relação ao resto do país, onde 84,1% são atendidos por água na torneira, mas 54,9% são atendidos por coleta de esgoto, segundo o Instituto Trata Brasil.
Graças a quem? À Sabesp.
Eu guardo essas informações assim como guardo onde fica a reserva da Sabesp em cada bairro onde morei, sempre em um ponto bem alto, uma das coisas que aprendi com meu pai.
Eu estava com ele, aliás, quando vi o título do editorial da Folha sobre a privatização: “O saneamento vence”. Olhei um tanto incrédula pro meu pai, que é leitor assíduo do jornal há mais de 40 anos e geralmente concorda com o que ele diz. Mas não nesse caso.
Assim como o editorial do Globo, de mesmo teor, ler aquela peça de propaganda privatista soou como um déjà-vu. A defesa, em ambos os casos, é claramente ideológica. O Globo diz que “só o capital privado tem condição de captar os investimentos necessários a transformar o saneamento no Brasil” e a Folha garante que a privatização “avança no objetivo central: acelerar a universalização dos serviços”.
É uma visão de mundo que não tem base na realidade e que se liga com a criminalização da política, do SUS e do ensino público, uma visão que diz que tudo que é público é corrupto e mal gerido.
Como garantir que o serviço vai melhorar, se qualquer ser humano que mora ou trabalha em um bairro não rico em São Paulo sabe que estamos sujeitos, há mais de meia década, a rodízio de água todas as noites ou às vezes ao longo do dia, sem nenhum aviso para que a gente possa pelo menos se planejar?
É com o olhar de uma filha de um engenheiro hidráulico que eu tenho debatido com a nossa analista de dados Bianca Muniz como podemos levantar os dados precisamente para que os paulistanos possam entender de fato quando vai faltar água na sua torneira.
É com o olhar de uma filha de um engenheiro hidráulico que eu travei uma luta de quase um ano com a Sabesp em 2015, ano da primeira grande falta de água – maiores virão – porque descobrimos que a Sabesp fazia contratos de “demanda firme” para grandes empresas e shopping centers, vendendo água mais barata para quem consome muito mais do que eu e você. Passei meses lutando para conseguir esses contratos e publicar os nomes dos beneficiados. Tá tudo aqui.
É o olhar de quem quer melhorar uma empresa de serviço público, mantendo-a sob o escrutínio da imprensa e dos cidadãos.
Agora veja o leitor: do ponto de vista comercial, de quem vende um produto qualquer, como um pãozinho quente, faz todo sentido: a empresa garante a receita futura e pode investir esse dinheiro. Mas para quem vende um bem escasso, universal e público, como a água, os contratos de demanda firme são a pior ideia que alguém poderia ter.
Essa é apenas uma das distorções que acontecem quando se trata um serviço público como um bem privado a ser comercializado. Como bem demonstrou uma excelente reportagem da BBC (veículo estrangeiro, diga-se), o Brasil entra na contramão do mundo todo ao privatizar a Sabesp. Entre 2000 e 2023, pelo menos 344 empresas de água e esgoto foram “remunicipalizadas”, em especial na Europa. Os motivos são bem fáceis de prever: alta nos preços e serviços inflacionados, falta de transparência e pouco investimento.
“A experiência mostra repetidamente como a privatização gera aumentos de tarifas e torna a água menos acessível à maioria da população”, disse à BBC Lavinia Steinfort, do Instituto Transnacional (TNI), na Holanda, que fez o levantamento.
Já não é segredo para ninguém que estamos assistindo ao colapso climático bem antes do que imaginávamos e que as ondas de calor e a falta de água se tornarão mais e mais frequentes. E não é preciso ser tão inteligente para ver que a água vai se tornar um bem muito mais disputado e, portanto, valioso. Nesse contexto, privatizar a terceira maior companhia de água por alguns bilhões adquire toda uma outra conotação que, infelizmente, tem passado muito longe da cobertura noticiosa.
Às vezes parece que andamos, andamos e não saímos do lugar.