Estudantes que se mudaram para a Argentina em busca do sonho de cursar medicina estão sendo obrigados a repensar os planos após a nova política de reajustes praticada por unidades de ensino locais. Na Fundación Barceló, em Buenos Aires, que, de acordo com o Centro de Alumnos, é a instituição com maior percentual de alunos brasileiros no país, o valor das mensalidades saiu de 14 mil pesos argentinos (cerca de R$ 450) em 2022 para até 392 mil (R$ 2,2 mil) para quem fizer a matrícula para dar continuidade ao curso em janeiro de 2025.
A nova realidade tem sido imposta após o presidente Javier Milei revogar, por meio do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) 70/2023, em dezembro, a lei que limitava os reajustes de preços em diversos setores, incluindo o ensino privado, o que já tem levado brasileiros a desistir do sonho de se formarem no país. Na terça-feira (19), um coletivo discente protestou em frente à fundação pedindo por soluções que viabilizem a conclusão formativa, já que, segundo eles, os reajustes são praticados mensalmente e só descobertos após a emissão das cobranças, o que estaria dificultando qualquer planejamento financeiro.
“Antes as universidades daqui tinham um topo, elas tinham uma fiscalização de até onde elas poderiam aumentar. Quando o Milei ingressa no governo, ele corta essa fiscalização, fazendo com que qualquer universidade privada possa aumentar o tanto que eles acham que devem aumentar. […] De repente, do dia pra noite, […] meio que triplicou o custo”, reclama a presidenta interina do Centro de Alumnos da Fundación Barceló, Dara Marques, 22 anos, que há dois anos saiu de Juatuba (MG) e se mudou para Buenos Aires para tentar a formação, com conclusão prevista para 2029.
O paulistano Leonardo Cinel, 23 anos, foi um dos que precisaram abandonar os estudos por não conseguir arcar com os sucessivos aumentos. “Esse ano [2024] a gente viu um aumento saindo de R$ 1 mil para R$ 1,5 mil […] agora no final do ano eles anunciaram que só a matrícula já vai ser quase R$ 3 mil. Então foi um aumento que realmente não é mais na base da inflação, não é mais na base do índice de poder de compra da Argentina, do IPC [Índice de Preços ao Consumidor]”, aponta o ex-aluno, que precisou deixar o curso no terceiro ano de formação, após ter tentado , por três anos, ingressar em universidades brasileiras, sem sucesso.
Em resposta aos alunos, a Fundación Barceló divulgou nota lamentando “que um grupo minoritário de estudantes, por meio de suas manifestações, tente afetar o prestígio de nossa instituição e impacte negativamente aqueles estudantes que confiam na Fundación Barceló para se formar e desenvolver profissionalmente”. Segundo o centro de ensino, “entre janeiro de 2022 e outubro de 2024, a inflação acumulada foi de 1.273%, enquanto as mensalidades aumentaram 1.280%, evidenciando que ambos os indicadores cresceram em proporções praticamente similares”. A faculdade também indicou ter um programa de bolsas e empréstimos de honra para estudantes em dificuldade financeira.
Dificuldades vão além do financeiro
De acordo com o Centro de Alumnos da Fundación Barceló, a infraestrutura da instituição seria insuficiente para atender à demanda estudantil, com salas de aula que comportam um máximo de 60 alunos.
A paulista Marianna Moreira, 21 anos, disse que precisou desistir do curso por não conseguir arcar com os custos após os reajustes e que o modelo de ensino contribuiu para a decisão. “Não tem como eu começar a pagar mais de R$ 2 mil pra poder ter aula pelo [aplicativo de videoconferências] Zoom”, afirmou Moreira, que disse que a maioria das aulas ofertadas até o seu segundo ano de formação era no formato a distância (EAD). Ela segue no país para tentar ingressar em uma das instituições públicas argentinas.
A Barceló foi constituída a partir do Instituto de Docencia e Investigaciones Biológicas da Argentina, em 1991, após, segundo a própria organização, ter contribuído para a formação de mais de 40 mil médicos. Além da sede em Buenos Aires, tem unidades em La Rioja, Corrientes e Misiones. A família Barceló ainda faz parte do conselho superior desde que a instituição foi criada. Procurada para falar sobre as dificuldades relatadas pelos estudantes, a fundação ainda não respondeu aos questionamentos da reportagem.
O ensino superior privado na Argentina representa 48% do mercado. Dispositivos de proteção contra abusos econômicos, como a Lei 20.680, conhecida como Lei de Abastecimento, derrubada por Milei, eram usados desde 1974 como forma de garantir acessibilidade e proteção ao consumidor. Desde que assumiu, o presidente tem tomado decisões de desregulação e cortes estatais em função da crise econômica. A inflação acumulada no país desde o início do ano alcançou 107%.
Milei não estava em Buenos Aires durante o protesto realizado pelos estudantes da Barceló na última terça-feira. Ele havia viajado ao Brasil, onde decidiu participar, de última hora, do G20 Rio de Janeiro 2024, que discute propostas visando ao fortalecimento da economia e ao desenvolvimento social global. O presidente argentino voltou na quarta-feira à Argentina, onde recebeu a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni.