O ataque das forças israelenses ao único templo católico da Faixa de Gaza, a Igreja da Sagrada Família, deixou três mortos, 11 feridos e uma ferida que deve custar a cicatrizar-se. Em uma guerra, quando locais considerados sagrados são transformados em alvo, o simbolismo transcende as esferas da diplomacia e da humanidade.
As primeiras consequências foram vistas quase que imediatamente. Se o papa Leão 14 estava medindo as palavras ao cobrar o fim do conflito entre Israel e Hamas, seus passos foram mais incisivos nos últimos dias. Na manhã do dia 18 ele telefonou para o patriarca latino de Jerusalém, o cardeal Pierbattista Pizzaballa — que, em seguida, entrou em Gaza para levar centenas de toneladas de ajuda humanitária.
Um dos feridos no ataque foi o pároco da igreja, o sacerdote argentino Gabriel Romanelli, que ficou conhecido principalmente porque, desde o início da guerra, recebia todas as noites uma ligação do papa Francisco (1936-2025).

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, buscou colocar panos quentes na história. No mesmo dia 18, entrou em contato com o papa Leão dizendo que o alvo foi atingido por engano. O líder da Igreja Católica, segundo informações do Vaticano, foi firme em sua posição e cobrou o fim da guerra em Gaza, expressando preocupação quanto à situação humanitária da Palestina. O papa também disse ser necessário respeitar os lugares de culto, independentemente da religião.
“O Santo Padre reiterou seu apelo por um novo impulso nas negociações, um cessar-fogo e o fim da guerra. Ele voltou a expressar sua preocupação com a trágica situação humanitária da população de Gaza, cujas crianças, idosos e doentes estão pagando um preço agonizante”, afirmou a Santa Sé.
Católicos são minoria na Palestina e essa única igreja em Gaza tem uma comunidade de cerca de 200 fiéis. No centro de Gaza, entre ruínas e silêncios, a pequena Igreja da Sagrada Família se erguia como último refúgio espiritual para uma comunidade cada vez mais esvaziada e encurralada pela guerra. Única paróquia católica da Faixa de Gaza, o templo era também refúgio: abrigava idosos, crianças, civis que não tinham para onde ir. Era um espaço de trégua — religioso, humanitário, simbólico. Até ser atingido pelo bombardeio israelense.
A simbologia desse ataque não pode ser subestimada. Na tradição católica, igrejas não são apenas construções; são locais sagrados, espaços de esperança, especialmente em contextos de guerra. Atacar uma igreja é mais do que destruir paredes: é violar uma promessa de proteção. É converter um santuário em alvo.
As faíscas desse ataque ainda repercutem não só no mundo católico, mas na opinião pública mundial — sobretudo a europeia. E, no entendimento de especialistas e pessoas ligadas ao Vaticano, podem indicar uma mudança de posicionamento de Leão 14 — depois de um início de pontificado mais cuidadoso com as palavras, ele pode agora sentir que é preciso ser mais firme em cobrar um cessar-fogo.
Um religioso próximo a Pizzaballa ouvido pela Agência Pública confirmou que essa expectativa está posta. E foi além. “Este acontecimento pode marcar a estreia de fato do novo papa nas discussões geopolíticas”, afirma ele. “Resta acompanhar as próximas declarações.”
Para o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Leão 14 está diante de seu “primeiro grande teste”. “Ainda estava naquela fase de namoro inicial [com o cargo]. Mas um ataque dessa natureza passa a exigir uma resposta, uma posição mais firme”, comenta. “O conflito deve marcar a entrada de Leão nos aspectos que envolvem a política mundial já que, enquanto Francisco se posicionava de maneira muito contundente, o novo papa parecia cauteloso.”

“Antes de tudo, em um contexto de guerra deveríamos considerar o direito humanitário, e isso também significa proteger as possíveis vítimas civis em contextos armados. Há lugares, como as igrejas, onde a possibilidade de haver vítimas civis não envolvidas no conflito é extremamente alta”, avalia o vaticanista italiano Andrea Gagliarducci, do grupo ACI-EWTN. “Não se trata de pensar que existam lugares intocáveis, mas sim de tentar tornar a guerra mais ‘humana’. Se, na prática, não pode haver lugares realmente intocáveis em uma guerra, existe um nível humanitário que diz respeito a todos, a partir da própria humanidade, e é isso que deveria importar a todos.”
Sobre Leão, o vaticanista não o vê como menos enfático do que o predecessor. Mas, sim, mais diplomático. “Diria, antes, que ele foi mais preciso, mais direto, mais diplomaticamente cuidadoso nas palavras que usava a cada vez”, diz Gagliarducci. “O papa Francisco utilizava muitas expressões marcantes, mas na diplomacia o que conta é a precisão, não a força das palavras. E acredito que Leão 14 tem sido bastante incisivo. Obviamente, o fato de uma igreja, e uma igreja católica, ter sido atingida não pode deixar ninguém indiferente. Mas, no que me diz respeito, a diplomacia da Santa Sé já vinha sendo incisiva.”




Lugares “neutros”
Pesquisador sênior no Instituto de Estudos de Desenvolvimento e Paz da Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha, o cientista político Leonardo Bandarra ressalta que há bases no direito internacional para uma certa regulação das guerras. “Em uma situação dessas, é preciso proteger os civis e as partes não diretamente envolvidas no conflito”, ressalta. “Hospitais e outras atividades são protegidas, como ajuda humanitária, acesso aos direitos básicos e também aos direitos religiosos, neste caso incluem-se as igrejas.”
Assim, ele entende que o ataque israelense carrega o simbolismo tanto de ferir uma premissa do direito internacional quanto o fato em si de ser uma agressão a uma fé alheia.
Para Moraes, o simbolismo transcende a religião em si e é a expressão do poder israelense. “Não significa que eles estão provocando outro grande grupo religioso [no caso, os católicos]. Significa que eles demonstram poder em relação a esse outro grupo que, naquele espaço, é minoritário”, diz.
A teóloga e socióloga Brenda Carranza, professora de Antropologia da Religião na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora no grupo Sionismo Cristão no Sul Global, acredita que o conflito escalou para um momento em que “todas as instituições internacionais e humanitárias” foram colocadas em xeque pelo governo israelense.
“A expansão territorial buscada por Israel é moralmente uma vingança, uma agressão neocolonialista e também uma manifestação do poder típico da ultradireita que caracteriza o governo do [primeiro-ministro Benjamin] Netanyahu”, aponta. “Coloco isso como contexto para que a gente não caia na armadilha de que por ser um alvo religioso é uma guerra religiosa. Houve bombardeio de igreja católica assim como foram bombardeadas também as universidades e hospitais que deveriam ser intocáveis.”
Carranza cobra esse cuidado na interpretação para que o conflito não seja compreendido, em uma escalada, como um confronto entre religiões. Embora de um lado haja maioria judia e, de outro, maioria islâmica, a pesquisadora argumenta que a motivação não passa pelo aspecto da fé. “É um confronto político, geopolítico, de um Estado que não permite a possibilidade territorial de criar outro Estado, o Palestino”, argumenta.
Ao longo da história da humanidade, contudo, ataques a igrejas são episódios constantes em tempos de conflito bélico. Os próprios judeus já foram vítimas disso, inúmeras vezes. Considerado sagrado, o Templo de Salomão, conhecido como Primeiro Templo, foi destruído em duas ocasiões: em 586 a.C, quando os babilônios invadiram Jerusalém e incendiaram o lugar. E, depois, por volta do ano 70 d. C., quando os romanos destruíram o templo depois de uma histórica revolta judaica.

Próximos passos
Se os especialistas são unânimes em descartar que o bombardeio à igreja possa desencadear uma certa adesão de católicos ou mesmo países considerados católicos no conflito, por outro acredita-se que já esteja havendo um certo revide presente nos discursos dos católicos e mesmo na opinião pública ocidental.
Gagliarducci diz que não vê o incidente como uma “provocação ao grande grupo religioso dos cristãos”, mas que entende o “incidente” como “a vontade do Estado de Israel de erradicar o terrorismo onde quer que ele esteja, sem considerar as situações colaterais”.
“No entanto, a partir de uma razão que provavelmente todos compartilhamos, chegou-se a uma situação insustentável”, diz. “Porque vai contra a humanidade. E creio que os cristãos se sentiram ainda mais atingidos por isso do que pelo incidente de Gaza em si. Alguns, sem chegar a usar a palavra genocídio, definiram o episódio como um ‘democídio’.”
O resto do planeta assiste aos próximos passos, com um olho no Vaticano, outro no Oriente Médio. “Na Faixa de Gaza, não me parece haver a preocupação em relação ao que se destrói, seja militar, seja civil e, agora, seja um local sagrado religioso”, pontua o teólogo e cientista da religião Andrey Mendonça, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Por outro lado, [depois do incidente], o mundo pode começar a voltar seus olhos para esse conflito de maneira mais incisiva, pressionando para o fim da guerra.”