Nunca havia prestado atenção nos projetos da bancada evangélica até o dia 2 de julho, quando, após uma manobra legal, a Câmara dos Deputados retomou e aprovou a pauta da redução da maioridade penal em primeiro turno. Dos 74 deputados federais evangélicos, 53 votaram a favor e apenas 9 disseram não à redução – 12 não votaram.
Como jovem negro e morador de periferia, aquela decisão me afetava diretamente. E, de certa forma, me incomodava também. Sou o que conhecemos como “crente de berço”. Nasci em uma família evangélica, as primeiras músicas que aprendi eram hinos, o primeiro livro que li foi a Bíblia, minha primeira namorada era da igreja e meus amigos eram meus irmãos em Cristo. Sempre considerei a igreja um canal de mudança, lá conheci histórias de pessoas que saíram do crime, acreditando que era possível transformar suas vidas.
E, nesse momento, ficou explícito pra mim que esse lance de amar ao próximo é muito mais fácil quando o próximo se parece com você. Decidi então que iria descobrir como pensam outros jovens evangélicos para entender essa relação entre política e religião num estado laico. Será que eles também são a favor da redução da maioridade penal e de outras leis propostas pela bancada evangélica? Qual o nível de interesse deles por política? E será que a religião, para eles, é um critério no momento de decidir o voto?
Fomos, eu e minha parceira de reportagem, Ariane, para portas de cultos em busca de respostas. Fizemos uma pesquisa com mais de cem jovens evangélicos e entrevistamos cinco deles.
A voz da bancada é a voz de Deus?
Foi colocar o pé na rua para constatar que religião e política eram temas superconectados para o jovem evangélico – mesmo sem ter clareza disso. Do total de jovens, entre 14 e 30 anos, que responderam à nossa pesquisa, 4 em cada 10 afirmaram ter votado em um político da sua igreja na última eleição. E, para metade deles, a religião é um critério a ser levado em conta no momento do voto.
O voto, no entanto, é quase sempre o único – e último – estágio de participação política do jovem. Na pesquisa “O sonho brasileiro da política, de 2014”, em que jovens de sete estados, de 18 a 32 anos, de classes A, B e C, foram entrevistados, 74% dizem que sua prática política é o voto, 68% não gostariam de participar mais ativamente da política e 20% afirmaram que nada poderia aproximá-los da política. O resultado dessa falta de interesse tem consequências importantes: uma vez eleitos, nossos representantes parecem agir de acordo com suas alianças e crenças pessoais, sem lastro com as necessidades de quem os colocou no poder. E é aí que o tiro sai pela culatra: você é diretamente responsável por um em cada seis deputados da Câmara ser evangélico, mas ele pode estar lá defendendo causas que não são as suas.
Dentro das igrejas, isso tem gerado atrito – principalmente entre os mais jovens. “Acho ridículo criarem uma lei assim”, afirma Dayanne Kraft, 21 anos, convertida há dois anos e membro da igreja Terra Fértil, quando questionada sobre o Projeto de Lei 177/2015, da vereadora de Manaus Pastora Luciana. Conhecido como o PL da Cristofobia, a proposta pune o preconceito e atitudes discriminatórias contra a religião cristã com multa e pode fechar estabelecimentos comerciais. “Essa perseguição sempre aconteceu. Lá em Mateus 5:44 está escrito pra gente amar nossos inimigos e orar por quem nos persegue. Temos que plantar o bem para colher o bem”, diz Dayanne.
Outra proposta da bancada evangélica que tem incitado discussões é o Estatuto da Família, que define a família como união entre homem e mulher. Para alguns jovens, a decisão é equivocada: “Onde existe amor, pode existir família. O amor é livre”, afirma L., 15 anos, membro da Igreja Mundial, do pastor Valdemiro Santiago, dissidente da igreja de Edir Macedo. “Eles não podem definir o que é família. Família é uma coisa bem pessoal”, concorda M., também de 15 anos, membro da Igreja Batista Refúgio – que existe há sete anos em Itapecerica da Serra, São Paulo.
Essa pauta faz parte de uma luta que a bancada evangélica e, principalmente, alguns de seus membros mais controversos, têm travado contra os direitos dos grupos LGBT. É o caso do PL da deputada federal do Pará Júlia Marinho, que tem o intuito de alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para proibir a adoção de crianças por casais do mesmo sexo.
“Desde que a criança seja cuidada, bem tratada, possa crescer, não vejo problema nenhum”, afirma Wesley Ribeiro, 22 anos, professor de escola bíblica da Assembleia de Deus. “Tanto a Bíblia quanto a nossa Constituição defendem primeiramente o direito à vida, o direito à família – o que infelizmente não é um conceito-padrão no nosso país. Então temos que nos adequar à nossa realidade”, justifica.
“Ser o líder do grupo de adolescentes da igreja pode ser um canal de transformação. Chegaram jovens com camiseta de rock, e meu pastor, que é novo, os acolheu e eles continuaram indo, fazem parte do louvor. [A igreja] Tá perdendo muito o preconceito”, confirma o jovem M., ajeitando com os dedos o moicano sobre a cabeça.
Em uma pesquisa conduzida pelo Datafolha em 2013, 78% dos jovens evangélicos entre 16 e 24 anos são a favor de uma lei para punir quem ofende homossexuais, por exemplo. E 54% são a favor da adoção de criança por casal gay – enquanto na média geral da pesquisa, que considera todos os entrevistados com 16 anos ou mais, apenas 14% dos não pentecostais e 22% dos pentecostais são a favor.
Mas é claro, existem muitas correntes. “A bancada evangélica é tão complexa quanto o movimento evangélico em si. Ali não tem só um bloco de pessoas que pensam da mesma forma e que defendem os mesmos interesses. Mas que se unem para defender pautas que são comuns, como a redução da maioridade penal”, afirma o jovem evangélico Felipe Neves, 22 anos, que tem acompanhado a relação entre evangélicos e a política para seu trabalho de conclusão de curso da faculdade.
Ainda na pesquisa do Datafolha, para a pergunta “a mulher deveria ser processada e ir para a cadeia por cometer um aborto?”, 72% dos pentecostais e 65% dos não pentecostais dizem que sim, a mulher deveria. No recorte jovem (entre 16 e 24), 68% também disseram sim. Mesmo tendo a média de mulheres evangélicas que já fizeram um aborto em algum momento da vida quase equiparada à média nacional: 13% contra 15%, respectivamente, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto 2010, que entrevistou mulheres entre 18 e 39 anos.
Vamos falar de política?
Para saber se o discurso político estava atrelado ao discurso religioso – o que, muitas vezes, leva o fiel a votar em pastores políticos –, fomos a encontros direcionados para o público jovem. Quando visitamos a Sara Nossa Terra – igreja da qual o deputado e atual presidente da câmara Eduardo Cunha foi membro –, na rua Augusta, em São Paulo, o espaço estava tomado por jovens de várias regiões da cidade que se reúnem não só para o culto, mas também para cursos como o “Instituto de Vencedores”, voltado para a formação de liderança, aperfeiçoamento pastoral e estudo da Bíblia.
O tema da celebração dava pistas: “Guerra é guerra: tempo de mudança, atitudes que causam impacto”. Nela, o pastor [que não aparentava ter mais do que 30 anos] falava sobre a guerra do “governo contra antigoverno, direita contra esquerda”. E também trazia questões como a votação da redução da maioridade penal – para a qual poucas pessoas levantaram a mão quando indagadas se sabiam do que se tratava. O culto acabava falando sobre a importância de respeitar as opiniões divergentes.
Para Joabe Santos, bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo e pastor da Igreja Batista da Água Branca, a função de um pastor inclui a política. “Ensinamos as pessoas a se mobilizarem politicamente, torná-las engajadas com a política, não com o partidarismo”, afirma. Joabe deseja, a partir do próximo ano, criar um grupo de discussão e práticas políticas. “Precisamos dar pros meninos essa possibilidade de discutir e praticar política. Será que um menino de 15, 16 anos pode mobilizar os amigos da escola para fazer um movimento em relação à redução da maioridade penal? A gente vai dar os elementos pro cara fazer isso”, diz.
Felipe vivenciou a ligação entre política e religião de uma forma bem direta. “Em 2012, o pastor da antiga igreja que frequentava começou a apoiar a campanha de um vereador, a divulgar cartazes nos carros e a distribuir folhetos. Haviam também eventos na igreja que eram patrocinados pelo candidato, que, em troca, prometia favores para a igreja”, conta. O candidato foi eleito e, no ano seguinte, quando Felipe começou seu estágio na Câmara Municipal, presenciou visitas do pastor no gabinete do político. “Na maioria das igrejas da periferia, ainda acontece do candidato aparecer, pedir votos e oferecer algo em troca”, afirma.
“Nós expomos o que a Bíblia diz e o que ela nos orienta, então temos que votar em pessoas que se assemelham com nossa cultura e nosso valor, independente de qual seja o partido”, afirma Wesley, que é a favor de que os políticos possam abordar os fiéis dentro das igrejas como forma de divulgar seu trabalho. Para o professor da escola bíblica, no entanto, a liberdade de expressão e o livre-arbítrio devem ser respeitados. “A religião te ajuda a expandir e manter um equilíbrio, você respeita o espaço das outras pessoas e elas deveriam respeitar o seu espaço. Isso é democracia.”