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Na América Central, médicos apontam para doença renal ligada ao corte de cana sob altas temperaturas.

Reportagem
23 de abril de 2012
08:00
Este artigo tem mais de 12 ano

Por Sasha Chavkin e Ronnie Greene

LA ISLA, Nicarágua — Maudiel Martinez tem 19 anos e um sorriso tímido, cabelos pretos encaracolados e um corpo magro, com uma estrutura muscular formada pelos anos de trabalho nos campos de cana de açúcar. Na maior parte de sua adolescência, ele foi saudável e passava seus dias cortando talos altos de cana com seu facão.

Agora Martinez sofre de uma doença fatal que está devastando sua comunidade e dezenas de outras na América Central, onde já dizimou fileiras de trabalhadores da cana. A mesma doença matou seu pai, seu avô e castiga seus três irmãos mais velhos.

“Essa doença come nossos rins por dentro”, diz Martinez. “Não queremos morrer, estamos tristes porque já sabemos que não há esperança para nós.”

A doença de Martinez está no coração de um mistério letal – e do legado de negligência por parte da indústria e de governos como o dos Estados Unidos, que resiste a apelos para uma ação agressiva de destaque à doença e busca de uma solução. Mais do que a vida de que colhe a cana, as nações ricas estão focadas em estimular a produção de biocombustíveis na indústria da cana e em manter o grande fluxo de açúcar para os consumidores americanos e fabricantes de alimentos.

Pouco notada pelo resto do mundo, a Doença Renal Crônica (DRC) está cortando vidas e abrindo uma clareira entre as populações mais pobres do mundo, a faixa se estende em um trecho da Costa do Pacífico da América Central que abrange seis países e cerca de 700 quilômetros. Suas vítimas são trabalhadores braçais, principalmente da cana.

Em cada ano de 2005 a 2009, a insuficiência renal matou mais de 2,800 homens na América Central, de acordo com a análise dos últimos dados da OMS feita pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. Somente em El Salvador e na Nicarágua, nas últimas duas décadas, o número de homens morrendo de doenças no rim quintuplicou. Hoje, mais homens morrem de DRC do que de HIV/AIDS, diabetes e leucemia juntos.

 

 

 

Mapa da América Central mostra o número de mortes por doenças renais em 2009 e o aumento % nas taxas de mortalidade durante o período de 2005 a 2009

 

 

“Ninguém deveria morrer de doença renal no século 21”, diz Ramon Trabanino, médico de El Salvador que estudou a epidemia durante uma década.

O surto da doença é esmagador em hospitais, esgotando os orçamentos de saúde, e deixando um rastro de viúvas e crianças nas comunidades rurais. Em El Salvador, a DRC é a segunda principal causa de morte para os homens. Na província de Guanacaste, Costa Rica, o hospital regional teve de começar um programa de diálise em casa porque estava sobrecarregado com tantas vítimas da DRC que começou a ficar sem leitos para tratar pacientes com outras doenças.

Tantos homens morreram em algumas partes rurais da Nicarágua que a comunidade de Maudiel Martinez, antes chamada de “A Ilha”, agora é conhecida como “A Ilha das Viúvas” — La Isla de las Viudas, em espanhol.

À primeira vista, a comunidade abundante cercada por vastos campos de cana se parece com muitos lugares da América Latina: as crianças andam de bicicleta por estradas de terra e brincam ao lado de cães, porcos e galinhas. Mas hoje há poucos homens nos quintais. No interior das casas, fotografias emolduradas de maridos, pais e irmãos mortos decoram mesas e balcões. Não há grupos de homens mais velhos, trocando fofocas e notícias, como se vê frequentemente em comunidades no interior da costa do Pacífico.

Aqui, as mulheres se esforçam para ganhar pouco dinheiro fazendo bicos. Algumas já estão nos campos de cana de açúcar que elas acreditam ter levado seus maridos.

“Meus filhos sofreram muito”, diz Paula Chevez Ruiz, viúva de La Isla cujo marido Virgilio morreu em 2009, deixando-a para sustentar quatro filhos sozinha. Quando ela consegue encontrar clientes, vende frutas e enchiladas. “É triste querer dar a seus filhos, mas não ter nada. Às vezes, nem mesmo o suficiente para comprar um saco de sal. ”

Enigma fatal e um punhado de pesquisadores

Nos EUA, as principais causas de doença renal crônica são a diabetes e a hipertensão. Mas a doença – que leva a um declínio progressivo da função renal –  normalmente pode ser controlada com tratamento. Médicos entendem suas causas e curas.

Na América Central, as origens da doença são um enigma, e ela é frequentemente letal. Trabalhadores que sofrem nos campos de cana de açúcar perto do Pacífico não têm, geralmente, nem diabetes, nem hipertensão.

Alguns cientistas suspeitam que a exposição a uma toxina desconhecida, potencialmente no trabalho, pode desencadear o início da doença. Os pesquisadores concordam que a desidratação e o stress térmico do trabalho árduo são provavelmente fatores contribuintes – e podem até causar a doença. Trabalhadores que normalmente não são pagos por hora ou dia, mas com base na quantidade que colhem, muitas vezes trabalham até o ponto de grave desidratação ou colapso, potencialmente prejudicando seus rins em cada turno.

A DRC geralmente ataca os pequenos vasos sanguíneos do rim chamados glomérulos; a epidemia da América Central ataca os túbulos dos rins. A DRC afeta geralmente as pessoas mais velhas, com igual distribuição entre os sexos; esta epidemia afeta predominantemente homens em idade de trabalho, principalmente trabalhadores da cana, mas também mineiros e outros trabalhadores agrícolas.

Uma crescente comunidade de pesquisadores está chamando atenção para o reconhecimento de uma nova doença ainda não incluída nos manuais médicos: “nefropatia mesoamericana”, “nefropatia agrícola endêmica” ou “nefropatia da cana.” O diretor do programa nacional de DRC em El Salvador tem escrito sobre uma “Nefropatia Regional Mesoamericana” que um dia poderá ser reconhecida internacionalmente.

“É importante que a Doença Renal Crônica que aflige milhares de trabalhadores rurais da América Central seja reconhecida como o que é: uma grande epidemia com um impacto enorme na população”, disse Victor Penchaszadeh, um epidemiologista clínico da Universidade de Columbia e consultor da Organização de Saúde Pan Americana sobre as doenças crônicas da América Latina.

Ramon Vanegas, um nefrologista que avalia pedidos de pensões de doenças ocupacionais dos trabalhadores para o Instituto de Segurança Social da Nicarágua, disse que os casos que ele define como “DRC trabalhista” seguem um padrão de lesão renal tubular combinado com um histórico de insolação.

“Normalmente, eles estão trabalhando e têm espasmos musculares, ficam febris e entram em colapso”, disse Vanegas sobre os pacientes cujos pedidos ele aprova. “Então eles voltam a trabalhar, eles enfrentam os mesmos riscos, e o ciclo se repete. Então, dois ou três anos mais tarde, o paciente tem [DRC].”

Enquanto os médicos ponderam sobre rótulos e diagnósticos, o mistério persiste: Por que essa forma de DRC ataca homens de uma forma particular – e nesta região específica?

Alguns estudos sugerem que fatores de risco, da exposição a pesticidas, passando pelo abuso de álcool ao uso frequente de drogas anti-inflamatórias, podem desempenhar papéis importantes no início da DRC. Outros mostram que os mineiros, estivadores e trabalhadores de campo nas regiões afetadas também têm altas taxas de DRC. Um estudo na Nicarágua encontrou uma cidade mineira que tinha uma das taxas mais elevadas de prevalência no país.

“A evidência nos aponta mais fortemente a hipótese de que talvez estresse térmico – trabalho duro em um clima quente, sem reposição suficiente de líquidos – pode ser uma causa desta doença”, disse Daniel Brooks, pesquisador chefe da equipe científica da Universidade de Boston que está entre um punhado de grupos de realização de estudos iniciais.

Durante o dia, a equipe observou os trabalhadores da cana de açúcar em uma temperatura média de 35 graus Celsius nas plantações. O relatório observou que a Administração Ocupacional de Segurança e Saúde dos EUA, que fiscaliza a segurança nos locais de trabalho, pede 45 minutos de descanso para cada 15 minutos de trabalho nesse nível de estresse de calor.

A investigação preliminar da equipe reforça a hipótese de estresse por calor; amostras de sangue e urina colhidas de diferentes tipos de cortadores de cana durante o curso de uma safra mostram mais evidências de dano renal entre aqueles que realizaram um trabalho extenuante ao ar livre. Anteriormente, a equipe identificou uma série de práticas de trabalho e produtos químicos na empresa que poderiam danificar os rins. Brooks disse que mais pesquisas são necessárias antes que conclusões possam ser tiradas.

Estudos internos feitos pela Nicaragua Sugar, donos de uma das maiores plantações de açúcar da América Central, fornecidos pela empresa para o ICIJ, mostram que a empresa tem uma longa evidência de uma epidemia ligada ao estresse por calor e desidratação. Em 2001, o médico da empresa, Felix Zelaya, realizou um estudo interno sobre as causas da DRC entre os seus trabalhadores. “O trabalho extenuante com a exposição a altas temperaturas ambientais sem um programa de hidratação adequada predispõe os trabalhadores a síndrome de estresse por calor [insolação], que é um fator importante no desenvolvimento da DRC”, concluiu Zelaya.

A Nicaragua Sugar e outras empresas dizem ter agido voluntariamente para proteger os trabalhadores, melhorando a hidratação, reduzindo a jornada de trabalho e reforçando a fiscalização de empreiteiros de trabalho.

Mesmo assim, a Nicaragua Sugar contesta a existência de um raro problema no rim afetando seus trabalhadores. “Estamos convencidos de que não temos nada a ver com doença renal”, disse o porta-voz da Ariel Granera. “Nossas práticas produtivas não geram e não são fatores causais da doença renal crônica.”

Sinais de problema

Em 2000, o médico salvadorenho Trabanino notou um grande número de homens jovens e de meia-idade que entram em seu hospital em El Salvador, todos com casos avançados de doença renal crônica. “Por alguma razão, para o resto do mundo isso parecia normal”, lembrou. “Para mim, parecia estranho e curioso.”

Em 2002, Trabanino publicou um dos seus primeiros estudos sobre a doença, um perfil de 205 novos pacientes que entraram em seu hospital em estágio final da doença renal. Dois terços desses casos não tinham os fatores de riscos habituais para doença renal crônica – e tinham alguns aspectos em comum.

“Eram quase todos homens que viviam nas zonas baixas do país, perto da costa, perto de um grande rio”, escreveu Trabanino no Jornal Pan-Americano de Saúde Pública. Um grande grupo destes pacientes também descreveu “contato profissional frequente com inseticidas e pesticidas, sem proteção adequada.”

Outro estudo com pacientes renais do norte da Costa Rica – mais uma vez a partir de uma região sufocante, de baixa altitude, perto da costa do Pacífico – descreveu um padrão semelhante.

“Todos são homens jovens, entre as idades de 20 e 40 anos,” escreveu o Dr. Manuel Cerdas, de Costa Rica, no Kidney International Journal. “A característica mais interessante nesses pacientes é epidemiológica – todos eles são trabalhadores nos campos de cana de açúcar há um longo tempo”.

Cerdas descobriu mais tarde que as vítimas da epidemia dividiam outra condição: a doença havia atacado uma parte de seus rins: os túbulos. A doença de túbulo-intersticial é geralmente rara – correspondendo a apenas 3,7% dos casos de doença renal em estágio final nos Estados Unidos. As causas conhecidas incluem exposição a tóxicos e desidratação.

Hoje, El Salvador promove testes de sangue nas áreas rurais mais atingidas para tentar pegar casos em estágios tratáveis. Trabanino, que estudou a epidemia por mais de uma década, diz acreditar que o rastreamento, campanhas para educação pública e melhorias na segurança do trabalhador poderiam parar a propagação da doença – se houvessem recursos disponíveis.

Pesquisadores na América Central, enquanto isso, encaram uma batalha difícil. Os poucos estudos sobre DRC feitos até agora têm sido conduzidos em hospitais e comunidades afetadas, onde as pessoas já estavam doentes. Teorias sobre o papel que produtos químicos tóxicos podem desempenhar na causa da doença são difíceis de serem testadas porque os cientistas precisam ter acesso às vítimas da epidemia enquanto eles estão adoecendo.

Silêncio sobre a DRC; ação rápida sobre biocombustível

Empresas produtoras de açúcar da América Central têm sido relutantes em abrir suas portas para os pesquisadores de saúde externos. Os defensores acreditam que a indústria teme a designação da doença como uma doença ocupacional. A resistência começou a amolecer notadamente na plantação do Engenho de San Antonio da Nicaragua Sugar, onde a equipe da Universidade de Boston está trabalhando. Mas a indústria em geral tem impedido o contato de cientistas independentes com as propriedades de suas empresas, funcionários ou registros.

Aurora Aragon, especialista em saúde ocupacional na Universidade de Leon, na Nicarágua, disse que, em 2004, pesquisadores de uma ONG internacional chamada SALTRA pediram a empresas líderes no ramo de açúcar da Nicarágua que colaborassem em um estudo de segurança do trabalho. Ela diz que o Engenho San Antonio e o Engenho Monte Rosa ignoraram o pedido.

Em 2007, Aragon diz, outro pedido de acesso foi feito por seus colegas e foi rejeitado pelo Engenho San Antonio. “No fim, essa foi a conclusão”, diz ela. “Nenhuma empresa de açúcar nos deu permissão para estudar o problema.”

Mario Amador, um porta-voz do grupo comercial da indústria de açúcar da Nicarágua, que representa as plantações abordadas por SALTRA, disse que a indústria tem permitido estudos por médicos, estudantes de medicina e autoridades de saúde, mas devem ter cuidado na partilha de informações com pessoas de fora.

“Pessoas com más intenções tentaram ligar a DRC com o trabalho na indústria do açúcar, pois esta indústria foi a primeira a encontrar altas taxas de DRC na força de trabalho que veio para as fazendas em busca de trabalho”, diz Amador. “É por causa desses ataques constantes que as plantações e seus funcionários são muito cuidadosos sobre a informação que fornecem a qualquer pessoa ou instituição”.

Produtores da América Central têm um papel significativo no negócio global de açúcar; em 2011, os EUA importaram mais de 330.000 toneladas de açúcar da região, representando 23% do total das importações de açúcar bruto.

Para além da mesa da cozinha, o governo dos EUA tem promovido pesadamente a indústria do açúcar – nas áreas afetadas pela epidemia – como fonte de biocombustível a partir do etanol. Os EUA financiou conferências para promover os biocombustíveis, tanto na Nicarágua e como em El Salvador apenas em 2008, de acordo com os telegramas das embaixadas divulgados pelo WikiLeaks. Seus embaixadores se reuniram várias vezes com os líderes de indústrias de açúcar de ambas as nações, e se lamentaram que a incapacidade de desenvolver a produção de etanol iria conduzir essas nações rumo a dependência das importações de petróleo da Venezuela de Hugo Chávez.

Em 2007, o então embaixador Paul Trivelli notificou o Departamento de Estado dos EUA  sobre o primeiro carregamento de etanol do Engenho San Antonio e escreveu que a empresa tinha abraçado “o potencial para desenvolver a indústria e os aspectos positivos dos biocombustíveis.” Mas ele expressou a preocupação de que o presidente esquerdista da Nicarágua, Daniel Ortega, poderia ser influenciado pela oposição aos biocombustíveis do presidente venezuelano, Hugo Chávez.

No ano seguinte, Trivelli escreveuque o Departamento de Estado havia designado a Nicarágua como um “país de alta prioridade” para os biocombustíveis. A embaixada de El Salvador, vizinho do norte da Nicarágua, também promoveu o etanol vigorosamente: embaixadores se reuniram com líderes da indústria de açúcar, compartilharam preocupações com o Departamento de Estado sobre os efeitos políticos de importações de petróleo da Venezuela, e patrocinaram uma conferência para promover os biocombustíveis.

O Banco Mundial, por sua vez, forneceu mais de US $ 100 milhões em empréstimos para promover a produção de biocombustíveis em duas plantações altamente afetadas, que aprovou sem consideração formal da doença renal. Depois de os trabalhadores se queixarem, o Banco concedeu $ 1 milhão para patrocinar o estudo em curso da Universidade de Boston.

Antes de receber os empréstimos, as empresas precisavam assegurar o Banco que eles estavam de acordo com os padrões sociais e ambientais. Equipes de avaliação publicaram apreciações elogiosas às práticas do Engenho San Antonio e do Engenho Monte Rosa em setembro de 2006 e maio de 2007. Nenhum relatório mencionou a DRC.

Em outubro de 2006, o conselho da International Finance Corporation (IFC) – credor do Banco Mundial para projetos do setor privado – aprovou um empréstimo de 55 milhões de dólares para o Engenho San Antonio. Um empréstimo de 50 milhões de dólares para Monte Rosa foi aprovado em junho de 2007.

Com o dinheiro, as empresas expandiram, mandando mais trabalhadores para as plantações de cana.

Edgar Restrepo, um oficial sênior de investimentos para o IFC, disse que sua equipe considerou a DRC quando avaliou o Engenho San Antonio, mas que o conteúdo de suas deliberações é confidencial. A porta-voz do IFC, Adriana Gomez, diz que o IFC tinha “cumprido com os seus rigorosos padrões sociais e ambientais em um processo de due diligence.”

Um impasse na Cidade do México

Enquanto governos da América Central têm comprometido poucos recursos para o combate à DRC, eles começaram a soar os alarmes.

O governo de El Salvador tem sido enfático nos pedidos por ajuda de pesquisas internacionais. Na conferência da cúpula dos ministros da saúde das Nações Unidas em fevereiro deste ano na Cidade do México, a ministra da saúde de El Salvador, Maria Isabel Rodriguez, declarou que a doença renal crônica estava “desperdiçando nossas populações” na América Central. Ela chamou os outros ministros de saúde a incluir a DRC entre as principais doenças crônicas nas Américas, um passo que pode atrair fundos das Nações Unidas para estudos.

A proposta de Rodriguez entrou em forte oposição com o participante mais poderoso da cúpula: os Estados Unidos.

Rodriguez disse que a delegação dos EUA recusou-se a incluir a doença na lista das doenças crônicas mais graves do continente tanto quanto aceitar a linguagem que sugere que a epidemia teve causas relacionadas à exposição a produtos químicos tóxicos.

Representantes da América Central disseram que eles estavam tão irredutíveis que se recusaram a assinar a declaração final da conferência, a menos que a DRC fosse incluída. Por vários momentos de tensão, a disputa ameaçava descarrilar o consenso da conferência. Resultado: uma única frase mencionando a doença renal crônica na América Central.

David McQueen, um delegado dos Estados Unidos e membro dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças, disse ao ICIJ que os EUA se opuseram a mencionar a DRC para manter o foco no diabetes, nas doenças cardíacas e no câncer.

“As declarações que são feitas raramente são bem sucedidas, a não ser que sejam muito segmentadas”, disse ele.

McQueen, que já se aposentou, disse que não tinha conhecimento da dramática disseminação da doença renal crônica até que o assunto foi levantado na conferência. “O assunto da doença renal crônica pegou todos de surpresa”, disse ele. “Por que isso está sendo fortemente deixado de lado?” McQueen aprendeu na reunião que “é um problema significativo”, estimulando “uma grande quantidade de recursos” para médicos e hospitais na América Central.

No entanto, mesmo depois de saber do problema, os EUA agiram pouco. A porta-voz do CDC, Kathryn Harben, disse que em um jantar na noite da conferência da Cidade do México, o CDC informalmente se ofereceu para ajudar os ministérios da saúde mesoamericanos. Ele ainda não fez isso, ela disse, porque os ministérios ainda não apresentaram um pedido formal. O oficial superior de saúde dos EUA na cúpula, o Dr. Howard K. Koh, secretário assistente para a saúde do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, se recusou a ser entrevistado para esta reportagem.

Fique doente e perca seu emprego

O Engenho San Antonio e o Engenho Monte Rosa, as maiores plantações da Nicarágua, agora testam o sangue dos trabalhadores para medir a creatinina, uma substância química que indica a função renal. Trabalhadores com níveis de creatinina elevados são demitidos, uma atitude que as empresas dizem ser necessária para evitar trabalhadores doentes de terem risco maior a sua saúde nos campos.

A demissão também tira dos trabalhadores os cuidados nos hospitais da empresa e, muitas vezes, as pensões pagas pela empresa.

O Engenho San Antonio disse que reduziu o horário de trabalho, forneceu mais água e solução hidratante e contratou assistentes sociais para acompanhar os contratantes nos campos para assegurar uma hidratação adequada. Atualmente, a jornada de trabalho não dura mais de oito horas, por exigir trabalhos físicos, e a empresa oferece oito litros de água e 2700 ml de soro para hidratação por dia para cada trabalhador do campo, disse o porta-voz Granera.

Em novembro de 2009, Maudiel Martinez embarcou em ônibus da empresa em uma manhã e se dirigiu para os campos. Ele tinha 17 anos e estava começando seu quarto ano no Engenho San Antonio. A época da colheita estava prestes a começar e, como rotina, a empresa tinha realizado exames de sangue para ver se os trabalhadores eram saudáveis o suficiente para o trabalho de campo.

Martinez estava no ônibus quando ele recebeu a notícia: ele falhou no teste de creatinina. Ele tinha a doença.

“Eu chorei pelo meu luto”, disse Martinez. “Eu era uma criança, com 17 anos você ainda é um adolescente.”

O diagnóstico fez com que Martinez fosse formalmente proibido de trabalhar para a empresa. Com sua família lutando financeiramente e nenhum trabalho alternativo à vista, Martinez assumiu um nome e um número da Segurança Social falsos e voltou a trabalhar na mesma área, para empreiteiros independentes que, segundo ele, não se importaram com o fato dele fornecer nome e registro de uma mulher.

Pelo menos alguns trabalhadores contratados ainda estão saindo em turnos mais longos, mais arriscados. Um repórter da ICIJ, em junho de 2011, observou que os ônibus pegando trabalhadores contratados do Engenho San Antonio saíam às 5:25 da manhã e voltavam às 5:31 da tarde. Trabalhadores disseram que cerca de 10 dessas horas foram gastas nos campos.

Um colapso nos campos

Em 10 de junho de 2011, Martinez foi designado para cortar quatro fileiras de cana. Sua tarefa era despir as folhas da cana, picá-las em pedaços, e amarrá-las em pacotes. Cerca de 40 peças compõem um pacote. Para este trabalho, ganhou um córdoba por maço – menos de dez centavos de reais.

Às 8:30 da manhã, ele havia cortado duas fileiras. Ele estava começando a se sentir mal, mas continuou a cortar no calor sufocante. “O sol estava muito forte, e eu tinha suado através da minha camisa como se alguém tivesse jogado água sobre mim”, lembra Martinez.

No momento em que ele terminou de cortar as fileiras, por volta das 11 da manhã, Martinez estava febril e com náuseas. Ele descansou por 15 minutos, mas ainda tinha que amarrar os pedaços em pacotes. Outro trabalhador veio para ajudar.

Martinez disse que terminou por volta das 13 horas, e o ônibus veio para levar os trabalhadores para casa cerca de meia hora depois. Quando o ônibus chegou, Martinez se sentiu muito doente. “Entrei no ônibus e eu não conseguia mais andar”, disse ele.

Já que Martinez era um trabalhador temporário, ele não poderia ir para o hospital da empresa. Ele tomou o ônibus para casa e a bordo começou a vomitar. O ônibus não parou. “Os caras só me deram a chance de enfiar minha cabeça para fora da janela”, disse ele.

A estrada onde o ônibus o deixou é separada de sua casa por um rio raso. Sua mãe e irmão o carregaram para atravessar o rio e levá-lo para sua cama.

Logo após seu colapso, Martinez descobriu que seus níveis de creatinina foram para cima. Ele passou dias sem apetite, querendo apenas bebidas geladas para aliviar a sensação de febre.

“Se a morte está chegando, temos de nos resignar a esperar por ela”, disse Martinez. “Renunciar a si mesmo significa esperar pelo que a doença está dando a você. Porque você olha para mim e eu pareço normal agora, mas por dentro eu sinto que estou queimando.”

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