Magra, quase não dava para perceber que Iriana Elísio do Nascimento, de 31 anos, estava no sétimo mês da gravidez. Perto do parto, em dezembro do ano passado, a barriga cresceu e começou a ser vista – Iriana também. Gabriel chutava dentro dela e as pessoas passavam perguntando para quando era o parto, se era menino ou menina, doavam roupas e fraldas. Ela fez o enxoval completo na rua Sete de Setembro, no centro de Recife, onde instalou seu colchão e sua vida há mais de uma década. O filho já tinha conjunto novo para sair da maternidade. Por um bebê que vai nascer, muitos se sensibilizam.
A cama dela na calçada ficava, de dia, entre um mostruário de bolsas de um vendedor ambulante e uma mesinha com jogadores de baralho. “É muito dinheiro que circula aqui”, comentou Iriana, que recebia trocados de quem passava. Conhecia todo mundo, o que lhe garantia almoço e jantar todo dia. Em uma lanchonete da rua, ela usava o banheiro e tomava banho.
Na primeira sexta-feira do ano, Iriana começou a sentir uma dor forte na barriga e foi andando para o hospital público mais próximo, que ficava a 1 km da rua Sete de Setembro. “Gabriel, me ajuda!”, gritava o nome do sexto filho que levava na barriga, pouco antes de parir. “A dor só fazia aumentar, o povo achava que eu estava chamando o anjo Gabriel.” Alguma funcionária do hospital aparecia, de vez em quando, abria as pernas dela e olhava a dilatação. “Eu não aguentava mais levar toque. Aí a mulher veio com a paleta e estourou a bolsa”, contou Iriana.
No dia 4 de janeiro de 2019, às 20h15, Gabriel nasceu em Recife, capital pernambucana. Em Brasília, iniciava o governo Bolsonaro. Após o parto, Iriana começou a ter febre, sentir mais dor e suar frio. “Sofri demais, parecia que a placenta toda tinha ficado. Ficou resto de parto dentro de mim, eles vão fazer a curetagem pra tirar”, narrou ela, que aguardava o procedimento havia cinco dias sozinha no hospital. Iriana passava o dia de jejum, amamentando, mas uma cesárea urgente surgia à noite e adiava a curetagem. “Nunca pensei que ia ter que ficar tanto tempo no hospital. Só o que me segura é ele”, apontou para o bebê recém-nascido.
Uma em cada quatro mulheres no Brasil sofreu algum tipo de violência obstétrica, de acordo com o estudo “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, de 2010. A mortalidade materna atinge 830 mulheres no mundo todos os dias e ocorre mais em áreas rurais e comunidades pobres, conforme a Organização Panamericana de Saúde.
Solidão
Parir seria doloroso e solitário, pensava Iriana. “Josimar não aguenta ver.” O pai da criança, Josimar Gregório da Silva, de 32 anos, teve uma crise convulsiva na maternidade no primeiro dia e foi levado embora – sumiu pelos dez dias seguintes. Ele é pai dos últimos quatro filhos dela; o casal se conheceu na rua há dez anos.
Existem 11 milhões de mulheres no Brasil que criam seus filhos sozinhas e as que, como Iriana, têm esses filhos nas ruas, sem nenhuma rede de apoio. Quase 60% das mães solo vivem em situação de pobreza.
Por seis dias, Iriana vestiu a bata verde do hospital, pois não tinha roupa, calcinha ou toalha. Havia ido para lá com o vestido do corpo, que sujou de sangue. Eu fui a única visita que ela recebeu. “Uma pessoa que mal me conhece vem ver meu filho, e minha família, que é meu sangue, não vem.” Fazia pouco mais de dois meses que eu a acompanhava toda semana – estive com ela desse fim de gravidez aos primeiros sete meses de Gabriel.
Retornei para vê-la na manhã do sétimo dia no hospital e fui comunicada pela recepcionista de que Iriana tinha “evadido” sem fazer a curetagem. As outras pacientes disseram que ela não aguentou passar mais um dia sozinha, sem comer, estava chorando e morrendo de dor de cabeça. Em uma sala com o ar condicionado gelado, uma obstetra informou que Iriana não obedecia ao jejum e que era normal ficarem coágulos no útero, mas a paciente não poderia parar o antibiótico.
Voltei à rua e encontrei Iriana sentada em uma cadeira na Sete de Setembro, onde ficava seu colchão, com Gabriel recém-nascido nos braços. “Sofri tanto que fugi de lá.” Com aquele bebê de 47 cm e 2,9 kg no colo, começou a chorar.
Depende da rua da “independência”
“Poxa, meu Deus, o que eu fiz para sofrer desde pequena? Eu fico só pensando… Como teria sido se eu tivesse a minha mãe?”, se perguntava. Iriana cresceu sem mãe, sem pai e sem casa. Foi criada pela tia e relatou ter sido estuprada pelo tio aos 10 anos de idade, o que a fez, para fugir da violência, ir para a rua e parar de estudar – cursou até a 5ª série. Na época, Iriana contou sobre o abuso para as tias, que acharam que era mentira de criança. Um levantamento do Ministério da Saúde revelou que os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no país somaram mais de 141 mil entre 2011 e 2017. Em cerca de 70% deles, a violência acontece dentro da casa das vítimas.
Iriana tornou-se mulher na rua, engravidando seis vezes, a primeira aos 15 anos. Estudos mostram que a gravidez indesejada na adolescência ocorre mais em situações de vulnerabilidade — e os casos são mais frequentes nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.
Na rua Sete de Setembro, onde ela passou a morar, é conhecida pelos apelidos de Galega (por ter pele clara) e Maga (por ser bem magra), mas seu nome quase ninguém acerta, os mais “próximos” a chamam, no máximo, de Liliana. Trata-se de uma das ruas mais tumultuadas do centro. Na esquina, sem saída para carros, está a avenida Conde da Boa Vista, com trânsito de quase 10 mil veículos, mais de 300 mil pessoas circulando entre 370 estabelecimentos comerciais e 1.500 unidades habitacionais. Iriana não tem recurso para morar em nenhuma delas, habitava o passeio das Lojas Americanas, ouvindo um funcionário anunciar promoções em um alto-falante o dia inteiro.
Em frente, está a loja Marisa, do slogan “de mulher pra mulher”, mas Iriana nunca entrava lá. De um lado, sapataria, loteria; do outro, farmácia. No meio, dezenas de vendedores ambulantes, que também passam o dia gritando para atrair clientes. É muita sujeira e um barulho que tímpano nenhum merece escutar o tempo todo, muito menos os de um recém-nascido.
O primeiro banho de Gabriel fora do hospital, com sete dias de vida, foi na lanchonete da rua. Iriana tinha guardado lá uma banheira de plástico que ganhou e conseguiu ferver um pouco de água. Ali mesmo, ela rasgou a embalagem da roupinha que o bebê usaria na alta da maternidade e vestiu o filho. Voltou para a calçada e ficou apresentando Gabriel aos seus conhecidos. “Olha, nasceu seu filho, que benção!”; “É o menino que estava na tua barriga? Nasceu quando?”; “Que bonitinho, como ele chama?”; “Jesus tem um plano na vida de vocês”, falavam as pessoas.
A solidão do hospital tinha acabado. Não importavam mais a dor, a infecção, as consequências. Não pensava nas horas seguintes: o socorro de algum jeito viria e ela sabia. “Eles vão vir me buscar para levar pro abrigo.” Eu tentava não intervir nos acontecimentos para compreender como a rede de proteção funcionaria, mas precisei ligar para o então coordenador da Pastoral do Povo da Rua, frei Marcos Carvalho, que morava perto. Ele fez contato com o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) e a pessoa do outro lado da linha respondeu que já estavam acostumados com Iriana, que esse não era o primeiro filho dela, que ela sempre foge dos lugares, que iriam, depois, verificar a situação.
“Mas ela está aqui com um bebê recém-nascido no meio da rua, e a demanda é urgente. Ela está dizendo que quer ir para o abrigo municipal, para o hospital não volta. Vocês precisam vir”, o frei insistia. Até que decidimos levar Iriana e Gabriel, de táxi, à unidade Centro POP, a 1 km dali. De lá, conduziram ela para outra maternidade, o Hospital Barros Lima. Amparada por funcionárias da prefeitura, na mesma noite, Iriana fez a curetagem e ficou em observação mais quatro dias, enquanto tomava o antibiótico.
“Aqui é de outro jeito, eles tratam a gente melhor. Eu falei ‘obrigada’ para a mulher e ela respondeu ‘disponha”, comentou Iriana. No princípio, ela estranhou as pacientes vizinhas de leito. Havia sempre o receio de ser julgada por desconhecidos e maltratada, e isso a fazia vestir uma personagem encrenqueira com cara de poucos amigos. Mas a mulher da cama ao lado a acolheu, oferecendo apoio e cuidados básicos. Fez amizade.
Seis filhos sem endereço certo
Antes de conhecer Josimar, Iriana já tinha dois filhos. Afirma que engravidou do primeiro, Bernardo, há mais de 15 anos. Mas só sabe o nome dele, pois ainda bebê foi levado pelo Conselho Tutelar e ela nunca mais teve notícias. “Eles pegaram para ‘doação’ [adoção]. Eu não entendia das coisas antigamente. Queria achar ele.”
Depois veio Ana Clara, cujo nome está tatuado no braço de Iriana. Segundo ela, a menina tem 13 anos hoje e mora com a avó paterna, mãe do companheiro da época, que foi assassinado. Iriana chegou a morar com ele na favela dos Coelhos, em Recife, e sofreu mais violência. Ele batia nela.
Mais uma vez, a história de Iriana esbarra na estatística: Pesquisa do Datafolha, publicada em fevereiro deste ano, indica que 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil, apenas em 2018. Do número total, 76,4% das mulheres afirmaram conhecer seu agressor.
O atual parceiro [Josimar] é o pai de Gabriel, Leonardo, de 8 anos, Vitória, de 7 anos, e uma menina que morreu no parto, segundo Iriana por falta de socorro. A mãe de Josimar, Ana Maria da Silva, de 52 anos, cria sozinha os dois netos mais velhos, Vitória e Leonardo. O menino ficou com a mãe no abrigo por dois meses, depois passou seis meses na rua até que a avó paterna buscou com respaldo da polícia e do Conselho Tutelar. Ela quis correr com o bebê na hora, mas ele estava em situação de risco, e até hoje quem cuida é Ana.
A avó também tem a guarda de Maria Vitória, que chegou para ela aos 4 anos, quando Iriana aceitou fazer tratamento para dependência química. “De Vitória e Léo, eu sempre vou ser a mãe. Mas, se eu pegar eles de volta, ela [Ana] tem um derrame. Esses meninos são tudo pra ela”, disse Iriana.
O discurso dela era que Gabriel seria o último filho, mas explicava que não era fácil conseguir a cirurgia de laqueadura no SUS. No Brasil, o procedimento pode ser feito sem custo em mulheres e homens acima de 25 anos ou com pelo menos dois filhos vivos, mas muitas vezes as mulheres precisam recorrer à Justiça para garantir esse direito. Ela falava também em outros métodos contraceptivos, que na situação de rua não funcionam bem.
As pessoas que conheciam um pouco de sua história diziam que Iriana deveria “parar de colocar filho no mundo”. Mas como exigir que ela, sozinha e vulnerável, pensasse em planejamento familiar, se com um bebê na barriga ou no colo ela passa a ser notada pelas pessoas e pelo governo?
Sem estar grávida, a rede de assistência social da capital pernambucana não tem muito a oferecer para a população que faz da rua moradia. Não tem restaurantes para alimentação popular ou gratuita, nem tem acolhimentos noturnos para dormir. Existem duas unidades do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) com atendimentos durante o dia, além do serviço especial de abordagem e o Consultório na Rua, que fez o pré-natal de Iriana.
O acolhimento a faz planejar uma vida fora das ruas – por um tempo
Ser bem tratada no [segundo] hospital já fazia Iriana começar a planejar o futuro com mais ânimo. Pensava em ir ao dentista colocar uma prótese no lugar dos dentes quebrados por causa do vício em crack. “No abrigo vai ser bom, Gabriel vai ser muito paparicado. Vamos poder ir à praia, que é perto. Eu vou sair de lá só quando tiver a minha casa.”
Mas queria notícias de Josimar. Assim que teve alta hospitalar e foi para o primeiro acolhimento municipal na Casa de Passagem Diagnóstica, Iriana voltou à cidade para procurar o companheiro. Estava toda arrumada, como eu nunca tinha visto: vestido justo preto, batom vermelho, lápis no olho e cabelos presos. “Foi a Galega que me emprestou tudo”, se referia a Graziele, nova colega de quarto do abrigo. Gabriel também estava de roupa nova e perfumado. Não encontrou o pai dele.
Na semana seguinte, Iriana deixou a Casa de Passagem para ser acolhida na Casa Recomeço, abrigo municipal onde poderia ficar de seis meses a um ano com outras 40 mulheres e crianças. “Quero ser gente agora, coisa que eu nunca fui”, disse. Entrou em um curso de cabeleireira, pintou o cabelo de vermelho, fez as sobrancelhas. As olheiras fundas diminuíram, engordou um pouco. As minhas visitas frequentes também acabavam por mantê-la com o propósito de melhorar, pois eu demonstrava interesse na evolução. “Se não fosse tu, eu já estava desbaratada nas ruas”, afirmou, e me ligava para contar novidades ou perguntar quando eu iria vê-la.
Eu era a jornalista que escreveria sobre Iriana, mas a “entrevista” nunca acabava, então ela passou a me apresentar como colega e, por fim, como “madrinha de Gabriel”. Muitos desconfiavam que eu fosse assistente social ou alguém interessada em ficar com o bebê, pois as ajudas que ela costumava receber eram apenas imediatas, para sobrevivência, não havia uma presença contínua como a minha. “Por que tu não dá o menino para ela?”, perguntou um homem na rua. “Dá os teus, que tu não cria”, respondeu Iriana. Não era mulher de aceitar desaforo.
A gente saía para conversar na praia, na praça perto do abrigo, passear no centro. Fomos visitar a sogra e a irmã dela. Quando o assunto era a família, o passado ou os filhos, Iriana se emocionava. “Ninguém nunca tinha dado tanta atenção a mim”, comentou uma vez com os olhos molhados.
A gerência da Casa Recomeço percebeu que Iriana estava mais determinada do que nas outras passagens por lá, com os filhos anteriores. “Talvez pela quantidade de sofrimento em relação aos outros filhos; ela estava muito mais ativa e participativa, no sentido de ‘esse [filho] eu não perco'”, apontou Hugo Melo, chefe do setor de acolhimento. Ela brincava com Gabriel, que retribuía com gargalhadas e olhos brilhando. A amamentação era demanda livre. “Guinho está esperto, tirando a maior onda. O negócio dele é esse: comer e dormir”, disse Iriana.
Na casa da sogra
Ao chegarmos na casa de Ana Maria, a avó não quis olhar para o bebê de 15 dias no colo da nora. Deixou claro que não teria a menor condição de ficar com o terceiro neto. “Ela [Iriana] tem que dar para quem possa criar, eu já estou com esses dois”, disse. Léo e Vitória disputavam para carregar e acariciar o novo irmão. “Mãe, eu quero ficar com ele [Gabriel]”, falou Léo para a avó.
Eles vivem em um barraco de dois cômodos na vila de Dois Unidos, periferia de Recife. Os netos dormem na cama de casal com ela, que tem ainda cinco filhos homens e jovens. Josimar é o mais velho. Quando ele cansa da rua e aparece em casa, dorme no sofá.
Antes de irmos embora, Ana pegou o netinho no colo e percebeu que ele parecia mais com ela do que os outros. “Fico com a cabeça perturbada, cuidando de um, de outro. Mas meu aperreio maior aqui é eles [Iriana e Josimar]. Os netos estão bem comigo”, disse Ana, esquecendo Gabriel.
Saiu do Recomeço e não voltou
O bebê foi crescendo e a condição de Iriana no abrigo municipal mudava muito pouco. Ela largou o curso de cabeleireira porque Gabriel chorava muito. Passou a falar mal da Casa Recomeço. “Aqui está muito ruim, não tem nada para fazer, durmo cedo. A diferença é que tem um teto.” Sentia-se entediada. “Dá uma tristeza em mim, sou só eu e Gabriel, não tenho família.”
A solidão se manifestava novamente na rotina de Iriana. Queria a atenção que experienciava na rua. “No abrigo, a pessoa só vale o que tem. Na cidade, eu fico andando, falo com um, com outro. Meu filho teria tudo.” No acolhimento havia regras, horários e demandas a cumprir, ela não suportava isso por muito tempo. Se voltasse para a rua, também não precisaria mais fazer o tratamento para interromper o uso de crack, que consistia em conversas em grupo e medicação – limitada, no caso dela, por causa da amamentação. “O psiquiatra disse que eu estou assim porque me sinto muito só.”
As histórias de vida semelhantes entre as mulheres na casa serviam para uni-las, mas também eram motivo de atrito. O vício em drogas de uma atrapalhava o tratamento da outra, elas viviam entre recaídas e envolvimento com traficantes. Logo, surgiram desentendimentos até a briga ser feia e Iriana precisar sair “fugida” mais uma vez, cinco meses depois de ter dado entrada na Casa Recomeço.
Foi pedir refúgio na sogra, longe dali. Ficaria lá até receber o auxílio do governo de R$ 200. Alugaria um quarto com o dinheiro mais o Bolsa Família de R$ 131. Iriana já conhecia bem o caminho oferecido pela gestão pública: sair do acolhimento e receber o aluguel social com um kit para “recomeçar” a vida (fogão de duas bocas, panelas, pratos, colchão e uma cesta básica).
Mas os encaminhamentos que são dados para que Iriana e mulheres como ela saiam das ruas falham. Um dos gargalos está na falta de comunicação entre as áreas da assistência, da saúde, da educação, da moradia e do emprego, como avalia o chefe da Casa Recomeço, Hugo Melo. “A política [pública] é muito rica, mas é cada um atuando nas suas caixinhas, a gente precisa fazer valer a palavra rede para o tratamento do usuário.”
De volta ao colchão na Sete de Setembro
Passados seis meses buscando outras saídas, Iriana retornou para a Sete de Setembro. O quarto que planejava alugar não deu certo, o dinheiro do auxílio aluguel ainda não tinha saído. Não conseguiu ficar nem um mês no sofá da sogra. “Eu não botei para fora, acolhi ela e Josimar, mesmo não tendo espaço. Tudo que podia, eu fiz”, explicou a sogra Ana Maria. E Gabriel? “O menino [Gabriel] chora muito, só fica no peito.” Iriana disse que não gostava de ver como Vitória e Léo eram criados junto dos tios na casa da sogra. “Estava vendo a hora de eu voar em cima de um.” Preferiu ficar longe.
Eu me deparei com Iriana dormindo no colchão e o filho acordado do lado. Aquele bebê deitado na calçada sinalizava que todas as políticas falharam mais uma vez. Era manhã de uma quarta-feira, a cidade estava movimentada. Tentei pegar Gabriel sem que ela percebesse. “Tu pensa que eu durmo é?”, acordou assustada antes que eu conseguisse tirar o menino do colchão. Teve a ideia de amarrar o pé dele no cordão do vestido. Gabriel já rolava no colchão, reagia às brincadeiras, mantinha o brilho no olhar.
Ela aproveitou que eu tinha chegado para ficar com o filho e foi tomar banho na lanchonete vizinha. Não confiava em deixá-lo com quase ninguém. Depois levou Gabriel para banhar também e botou um perfume emprestado. O melhor que ela podia oferecer para o filho estava ali na rua, vendo-o sorrir com as pessoas que passam, brincam com ele e doam (quase) tudo.
Josimar aparecia de vez em quando, bêbado. Os outros homens da rua ajudavam Iriana a carregar o colchão de noite para a outra calçada, onde era mais alto e protegido da chuva. Estava no período de inverno e em Recife não faz tanto frio, mas chove praticamente todos os dias. Durante esse tempo que acompanhei a vida de Iriana, lidei de forma minimamente confortável enquanto sabia que ela estaria em um lugar protegido com Gabriel. Não soube como me despedir deles na rua. Não teve mais nenhuma chuva que eu não pensasse neles.
Uma vida sem registro no novo governo
Gabriel completou 8 meses apenas com a declaração de nascido vivo do hospital, não tinha certidão de nascimento porque sua mãe tinha perdido a carteira de identidade e portanto não podia registrar o filho no cartório. Funcionárias do abrigo municipal informaram que não era fácil conseguir o documento de Iriana de graça e, em outra ocasião, disseram que não tinha papel para emiti-lo. Em setembro, o menino ainda não havia se tornado um cidadão brasileiro, por ser filho de uma moradora de rua.
Distante dos novos planos que eram feitos em Brasília, uma criança nordestina crescia desconhecida, sem futuro definido. Iriana não votou nas últimas eleições porque não tinha identidade, não escolheu o novo presidente e o governador. Mas a vida dela e a do filho dependiam, principalmente, da política de assistência social, que se mostra cada vez mais desvalorizada no país, com cortes no orçamento ocorrendo desde 2014.
No retorno dela para rua com Gabriel, algumas pessoas que me viam perto comentavam que não tinha “jeito”, que ela “preferia” ficar na rua vivendo de doações, sem fazer nada. “O povo pensa que é fácil. Me dá só um dia da tua vida e pega um da minha pra tu ver. A pessoa não sabe se vai acordar”, me disse Iriana. Um dia, estava no colchão e uma mulher passou na calçada dizendo: ‘Olha aí que vida boa’. “Eu levantei e mandei ela deitar”, respondeu.
Muitas mulheres como Iriana não são vistas, não são contadas. Quantas existem em Recife, em Pernambuco, no Nordeste ou no Brasil? Não sabemos ao certo porque não há um diagnóstico amplo, com transparência e regularidade. O que há disponível é o dado de 125 mil famílias em situação de rua inscritas no Cadastro Único brasileiro, até junho deste ano, segundo o Ministério da Cidadania. Estimativas não oficiais avaliavam em 1,8 milhão o número de pessoas vivendo em locais improvisados desde 2005.
Recife fez um censo em 2016 que identificou mais de mil pessoas nas ruas – número questionado pelos movimentos sociais. A própria prefeitura admitiu uma subnotificação. Em 2018, entre os que foram atendidos nos Centros POP, 642 eram mulheres, sendo 39 gestantes – entre elas, Iriana. Eu me aproximei da história única dela para contar, não em número, mas em dimensão, a narrativa de uma mulher que engravida na rua.
Um recorte
“Eu queria que a história que você escrevesse fosse com um final feliz. Seria lindo colocar: ela conseguiu uma casa, com o esposo, para cuidar dos filhos”, me falou a freira Luana, que também acompanhou Iriana por um tempo.
Lembrei o que Iriana me disse, ainda no mês de março, quando acabara de dar entrada no abrigo: “Meu sonho não acabou não, visse?”. Qual sonho? “O de ter minha casa, pra poder cuidar dos meus filhos e achar o outro [Bernardo, cujo paradeiro ela não sabe].” No fim de julho, esse cenário desmoronava, mas ela sempre buscava alguma forma de resistir. Resolvi passar na rua Sete de Setembro de noite, no pior horário do centro. Encontrei Iriana com cara de assustada. Peguei Gabriel, ele chorou. Voltou para o colo da mãe e para o peito. Adormeceu balançado por Iriana. “Eu vou sair dessa situação.”