Durante a Copa do Mundo da África do Sul, o centro do Johannesburgo era o lugar perfeito para não estar. Naquele junho de 2010, guias turísticos faziam questão de advertir: “À noite, não vá!”
O normal ali é a polícia se retirar assim que o sol se põe e o comércio baixa as portas. Sem lei, os quarteirões ficam, então, entregues ao submundo do tráfico, a usuários em busca de droga, aos loucos, aos sem-teto, aos refugiados de tantos países africanos.
Naquele mês, não. O que não faltava era polícia. Vai que um turista desavisado resolvesse dar um rolé pelas ruas…
Como repórter cobrindo a Copa do Mundo, eu tinha sido convidada com outros colegas pelo bispo da Igreja Metodista Sul-Africana, Paul Verryn, a conhecer uma situação que julguei impossível de ver exposta aos olhos da mídia de todo o mundo, em uma cidade-sede da Copa do Mundo.
Nem havíamos bem estacionado o carro, quando duas viaturas aproximaram-se ansiosas. De dentro de uma delas, saiu o sargento Nzama Ngobeni que foi logo advertindo: “Eu, se fosse você, não entraria aí. Tudo pode acontecer em um lugar como esse”. Fomos.
Acompanhados por um assistente de Verryn, entramos na escuridão do prédio, onde pelo menos 2.000 pessoas acotovelavam-se no chão, em um frio de 0ºC. No lugar de colchões, papelão.
O cheiro azedo de urina e suor, misturado a alguns restos de comida, criava uma atmosfera nauseante. Como faltasse espaço no chão, vários homens tinham de dormir nas escadarias do prédio. Mas os degraus estreitos não permitiam a acomodação na largura. O jeito era enrolar-se no cobertor fino e, como uma múmia, tentar se equilibrar –a cabeça em degraus mais altos, os pés nos mais baixos. Qualquer movimento em falso e o corpo escorregava; às vezes atropelando outro albergado no lugar.
Cercados pela polícia, os sem-teto da Igreja Metodista eram os últimos remanescentes da “faxina” promovida pelo governo de modo a retirar da cidade-sede da Copa do Mundo, os milhares de sem-tetos que vivem nas ruas de Johannesburgo, principalmente no centro. A maioria deles foi desovada em subúrbios, como Brixton e Illovo. Os renitentes 2.000 que permaneceram na igreja, boa parte refugiados zimbabuanos, moçambicanos e congoleses, não saíram por receio de perder em definitivo o contato com seus parentes distantes _a igreja de Verryn é referência internacional no acolhimento de refugiados.
Apesar dos gastos astronômicos com a construção dos estádios (R$ 5 bi), nenhum tostão foi endereçado pelo governo para os abrigados na igreja sitiada pela polícia. Sem víveres, sem remédios, eles acabariam “optando” por sair. Ressalte-se que também não havia, então, um só albergue público na cidade.
Mas eles ficaram, graças aos convênios da igreja com ONGs, como os Médicos Sem Fronteiras, que providenciaram também assistência médica e psicológica (a Aids é epidêmica nessa parte da África e muitos refugiados foram vítimas com suas famílias de massacres e perseguições).
Distância obscena
Apenas 13,5 km pela Oxford Road separam a igreja do bispo Verryn das Torres Michelangelo, de Sandton City, um luxuriante templo de consumo. Tão perto, tão longe. Como dizia o bispo Verryn, “a distância entre os ricos e os pobres neste país é mesmo obscena”. Ele explicava: “Apenas 4% tem 40% da riqueza da África do Sul; 60% vivem com menos de U$ 100 por mês”.
Sandton é o lugar menos africano de Johannesburgo. O hotel-âncora do lugar chama-se Michelangelo e parece apoteose de escola de samba, em seu estilo florentino fake, com estátuas de anjos renascentistas, afrescos no teto, colunatas e mármore falso. Quando se consegue ultrapassar as lojas Gucci, Cartier ou Montblanc, ah!, aí se encontra uma estátua de 6 metros de altura retratando um Nelson Mandela risonho. Sim, Mandela ou o Congresso Nacional Africano não metem mais medo nos brancos ricos da África do Sul.
Excluído o centro da cidade em horário comercial, em Johannesburgo não há pessoas andando nas calçadas. Aliás, quase nem calçadas há. Não há faixas de pedestres, porque pedestres não há. Medo da violência urbana. E de estupros. E das gangues de estupradores (o país é conhecido como campeão mundial nessa modalidade de crime).
O resultado é que as pessoas só andam de carro –uns carrões, aliás. É Volvo e Mercedes pra tudo quanto é lado. Os pobres andam de van –umas vans podres, estilo (hiper)lotação. Quase não tem ônibus também –as empresas providenciam o transporte de seus funcionários; pegam-nos de manhã em casa e levam-nos de volta à noite. Quem não estiver empregado, não sai do bairro. Simples. Não tem essa de mobilidade urbana.
Mas como assim? Não foi o Congresso Nacional Africano, o principal movimento contra o regime racista do apartheid, depois transformado em partido de esquerda, que ganhou as eleições de 1994? Não eram eles que vinham governando o país fazia 16 anos então?
As coisas ficavam mais estranhas ainda quando se olhavam as casas. A África do Sul é o sonho de consumo das empresas de segurança privada. Em bairros lindos, como o que cerca a Universidade de Pretória, na cidade que é o centro administrativo do país, onde treinou a seleção argentina, tudo é arborizado, como se fossem os Jardins de São Paulo, e as sólidas casas térreas espalhadas em terrenos amplos ostentam placas sinistras: “Reação armada.” Como ilustração, uma arma apontando para você.
As placas são afixadas em cercas que mostram toda a criatividade dos projetistas a serviço das empresas de segurança. Esqueça aquela cerca caretíssima, feita de arame farpado, ou mesmo as concertinas (espirais de aço com lâminas cortantes), já populares no Brasil. Johannesburgo tem cerca com milhares de pontas em formato de estrelas, de tesouras, de anzóis que se enfiam na pele do invasor (se o cara quiser escapar, só arrancando um naco da própria carne). Deve ser um luxo, porque essas só se vê em casas grandonas.
Mas, voltando às placas ameaçadoras, tem uma empresa de segurança que se chama Piranha –assim mesmo, como em português. O pessoal que trabalha lá diz que é uma mensagem para os bandidos: “Se você entrar nestas águas, prepare-se para ser jantado vivo.”
Quem não vive nessas casas, mas não é pobre, opta pelos condomínios fechados. Tem muitas alphavilles espalhadas pela cidade mesmo –e não só nos subúrbios. Segurança é o negócio lá.
Foi nesse cenário de paranoia com a violência, as cidades perdendo a característica de centros de convivência com o diferente, que a Fifa deitou e rolou em 2010 e nos anos anteriores de preparação. Moradores sem-teto da Cidade do Cabo foram removidos para uma favela improvisada com contêineres de zinco, bem longe da vista dos aficionados por futebol.
Cidade de latinha
A esse campo de concentração com 3.000 almas deram o nome de Blikkiesdorp, que, em afrikkans (dialeto derivado do holandês, desenvolvido pelos colonos brancos) significa “Cidade de Latinha”.
Exatos 30 km separam o bairro de contêineres do centro da Cidade do Cabo, outra sede da Copa, uma espécie de Rio de Janeiro sul-africana. Lá, em vez de Pão de Açúcar, a beleza natural local é a fabulosa Montanha da Mesa, ou Table Mountain, que domina todo o cenário.
Na cidade maravilhosa africana construiu-se o estádio Green Point, com capacidade para 55 mil torcedores, ao custo de US$ 600 milhões. Fica quase vizinho ao refinado shopping Victoria & Albert, onde se localiza o restaurante Green Dolphin, que à noite oferece jazz do bom, ao vivo.
A Copa do Mundo foi a chance de a cidade se ver livre dos pobres inconvenientes. Era para ser um abrigo provisório, enquanto se construíssem habitações dignas. Mas os pobres seguem no mesmo local, morrendo de frio no inverno e assando no verão.
Os banheiros são coletivos e grupos de mulheres denunciaram que eles se transformaram em armadilhas usadas pelas gangues de estupradores. O jeito foi derrubar as paredes de vários desses banheiros, para evitar as tocaias. Ia-se ao banheiro a céu aberto, embrulhada em mil panos, mas era melhor isso do que aquilo.
A África do Sul levou ao paroxismo o desperdício explícito com a Copa. Porno-desperdício. Lá, o esporte mais bem equipado é o rúgbi, o preferido da elite branca. Não por acaso, foi com o rúgbi que Nelson Mandela, em 1995, na final da Copa do Mundo da modalidade, selou a idéia de uma nação arco-íris, todas as cores, todas as etnias, todas as classes vivendo em paz e liberdade. Essa história é o tema do filme “Invictus” (2009), dirigido por Clint Eastwood.
Em Durban, esquina do mundo, onde conviveram Gandhi e o adolescente Fernando Pessoa, se investiram U$ 350 milhões para construir o magnífico estádio Moses Mabhida, com capacidade para 69.957 torcedores, bem ao lado de um… estádio de rúgbi, o Kings Park Stadium, com capacidade para 55.000 espectadores.
Resultado: o estádio da Copa, hoje um verdadeiro elefante branco, vale a visita apenas por causa do passeio em um trenzinho, o SkyCar, preso ao arco que lhe sustenta a estrutura. “A vista da cidade é magnífica!”, descrevem os usuários do site TripAdvisor. Podiam ter construído apenas o arco!
Camelôs e artesãos proibidos de trabalhar
Ah!, mas sempre tem a possibilidade de os pobres se beneficiarem pelo impulsionamento do comércio de rua ou do artesanato, dirão alguns.
Bem, além de cuidar para que nada e nem ninguém estragasse a cenografia imaculada do show (o evento de 2010 na África do Sul foi transmitido para 204 países por 245 canais diferentes), a Fifa impôs, por exemplo, o monopólio de frases, como “África do Sul 2010”, ou “Copa da África”, ou “Copa do Mundo”.
O futebol, na África do Sul, historicamente, é coisa de proletário negro, trabalhador nas minas de ouro e diamantes. É por isso que um dos adereços principais dos torcedores sul-africanos são os capacetes de peão de obra, devidamente decorados com as cores dos times.
Chamados de marakapas, os capacetes são recortados e pintados. Transformam-se em adereços de cabeça. Naturalmente, fizeram-se capacetes com cata-vento, flor, bandeira sul-africana, miniatura de jogador. Mas ai do artesão que fizesse uma marakapa com as expressões monopolizadas pela Fifa. Tinha toda a produção apreendida.
Perto dos estádios, nas áreas reservadas aos torcedores, havia mais proibições. Por exemplo, barracas de comida e bebida só podiam vender as marcas patrocinadoras da Copa. Como nenhum vendedor ambulante de tripas de carneiro com papa de milho, os “boerewors” com “pap”, típicos da África do Sul, havia pago a cota de patrocínio, os turistas nas imediações dos elefantes brancos se viram privados de saborear as iguarias –assim como se tentou fazer com as baianas do acarajé na Bahia. Em vez disso, só Coca-cola, Budweiser, McDonald’s. Tudo devidamente autorizado.
Soccer City, estádio de Johannesburgo, em forma de cerâmica africana, com capacidade para 95 mil pessoas, chegou a ser apresentado pelo marketing da Fifa como uma forma de aproximar a Copa dos pobres do bairro negro de Soweto, sede de tantos combates contra o regime racista do apartheid.
Os moradores do bairro não se esquecem do chamado Levante de Soweto, do dia 16 de junho de 1976, quando a população negra insurgiu-se contra o assassinato pela polícia do menino Hector Pieterson, de apenas 12 anos. A repressão massacrou entre 30 e 500 pessoas, a depender da fonte. Todas negras, com certeza.
Em Soweto, sem som nas caixas
Mas a aproximação foi apenas física –Soccer City está a 19 km de Soweto. Excluída do estádio por conta do alto preço dos ingressos, a torcida pela seleção dos Bafana Bafana (moleques em zulu, apelido do time sul-africano, que jogaria contra o Uruguai) teve mesmo foi de se concentrar no parque Thokoza, perto de onde Pieterson foi assassinado. Aliás, o dia do jogo era inspirador, mesmo dia do sacrifício de Pieterson, 34 anos antes.
Não havia som nas caixas. Só mesmo os gritos dos torcedores. Umas poucas barracas ofereciam o ensopado de “boerewors” com “pap”. A qualidade da imagem era ruim. Soweto cantou o hino Nkosi Sikelel’I Afrika, “Deus Abençoe a África”, o mesmo cantado em 1976, no protesto em que Pieterson caiu morto. Quando o atacante Forlán fez o primeiro gol, as vuvuzelas do parque silenciaram. Acabou a Copa para a África do Sul e sobrou muito pouco.