Paralisação de atividades produtivas, queda de demanda e de investimentos, retração no comércio mundial e nas exportações. O avanço da pandemia do Coronavírus vem acompanhado de impactos negativos na economia mundial. Entre os brasileiros, a camada de menor renda deve ser a mais afetada, segundo um estudo dos pesquisadores Débora Freire, Edson Domingues e Aline Magalhães, da UFMG. Em um cenário projetado de queda de 0,14% do PIB e de 0,1% no nível de emprego, o estudo conclui que as famílias com renda entre 0 e 2 salários mínimos podem ter sua renda 20% mais impactada do que a média das famílias brasileiras. E isso traz efeitos danosos para a economia como um todo.
“Uma retração no consumo dessas famílias gera um impacto muito pronunciado no PIB”, afirma Débora Freire, coautora do estudo e pesquisadora do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar). “São muitas pessoas e são famílias que consomem a maior parte da renda”, explica.
Em entrevista à Agência Pública, concedida antes do pedido de declaração de estado de calamidade pública feito pelo governo ao Congresso, ela criticou as medidas até então anunciadas pela equipe econômica. “É muito perigoso a gente não agir no curto prazo. Essas medidas que foram colocadas não vão ser suficientes, não são medidas expansionistas de fato, são medidas de realocação, não mexeriam na meta fiscal”, afirmou Freire. Com o pedido do decreto de calamidade pública, o governo vai na direção das críticas de pesquisadora justificando a medida pela “necessidade de elevação dos gastos públicos para proteger a saúde e os empregos dos brasileiros”, como justificou em nota.
O levantamento de vocês projeta como a crise econômica causada pelo coronavírus poderia afetar o PIB, o emprego e o consumo das famílias. Vocês também fizeram um recorte por faixas de renda. O choque tende a atingir as famílias de maneira desigual?
Ao que tudo indica, teremos de fato impactos negativos bastante pronunciados por conta desse vírus. Os serviços param, as atividades produtivas, em seguida, param. Não sabemos se vai ser suficiente para gerar recessão na economia, mas esperamos, de fato, um efeito contracionista importante. Para além disso, existe aí uma questão do mercado financeiro, de uma instabilidade, a queda da Bolsa, das exportações por conta da menor demanda mundial, uma série de efeitos que, em conjunto, tendem a impactar de forma negativa a economia. Só que em geral os estudos ou projeções, quando projetam os resultados, eles fazem isso de forma agregada: apenas os resultados macroeconômicos como PIB, emprego. Mas num tipo de crise como essa, o que a gente quis olhar nesse trabalho foi o efeito heterogêneo entre as famílias. Por quê? O primeiro impacto de uma crise como essa é reduzir a produção e depois o emprego. E aí a gente está falando do setor de serviços, depois podemos falar do setor da indústria e [de] outros setores. Mas o primeiro impacto da retração de demanda, que vai se aprofundar com a piora dessa quarentena, é uma retração do emprego. E há um efeito heterogêneo na redução do emprego agregado, quando a gente analisa do ponto de vista das famílias. Primeiro, porque as famílias das classes mais baixas dependem da renda do trabalho e da renda de transferência, [enquanto] as de classes mais altas tem uma diversificação maior de rendas: lucros, dividendos, poupança e assim por diante. Já as famílias de classe mais baixa dependem da renda do trabalho e, se o desemprego aumentar, essas famílias são mais afetadas. Exatamente o que o estudo mostrou. Segundo: os setores com mais trabalho intensivo são mais impactados por uma queda de emprego. Que setores são esses? São setores que utilizam mais emprego do que capital. Principalmente o setor de serviços, onde as famílias mais pobres estão mais empregadas, principalmente as famílias de baixa qualificação. O impacto é maior nas classes mais baixas porque elas dependem mais da renda do trabalho e porque elas estão trabalhando em setores que vão sofrer um impacto maior da crise. No estudo, a gente avaliou que existe um impacto médio na renda das famílias, mas as famílias com renda de zero a dois salários mínimos vão ser 20% mais impactadas do que o impacto médio na renda.
Segundo o IBGE, o consumo das famílias responde por 65% do PIB. Afetando esse grupo mais pobre, como essa crise poderia se desdobrar na economia?
A gente tem que pensar duas coisas. Primeiro: a maior parte das famílias brasileiras está nas classes mais baixas, então a gente está falando de um número de pessoas muito grande; se essas pessoas ficam sem renda, o impacto na redução do consumo é bastante expressivo. A segunda questão importante é que essas pessoas consomem a maior parte da renda, então o efeito da retração do consumo é muito mais expressivo do que nas classes mais altas; que consomem uma parte menor da sua renda, poupam uma parte maior enquanto a classe mais baixa despoupa ou poupa muito pouco. Uma retração no consumo dessas famílias gera um impacto muito pronunciado no PIB.
Em relação ao padrão setorial, essas famílias vão consumir serviços básicos: salão de beleza, transporte público, por exemplo. E produtos alimentícios, vestuário, calçados e assim por diante e uma certa indústria de duráveis também, como eletrodomésticos. Existe uma tendência de impacto nesses setores por conta de retração no consumo das famílias – principalmente serviços básicos e indústrias voltadas ao mercado interno.
No setor de serviços, com as famílias consumindo menos, os empresários começam a ter menos demanda e a mandar as pessoas empregadas embora?
Você tem no setor de serviços muitas pequenas empresas, academias, serviços de alimentação que vão ser bastante afetados porque as famílias de classe mais baixa perdem renda, consomem menos, as firmas não conseguem manter seus empregados, mandam pessoas embora [que ficam sem renda] e assim vai aumentando cada vez mais o desemprego. A gente não sabe ainda o tamanho desse efeito, é importante ressaltar isso. As projeções são, de fato, para um impacto negativo bastante pronunciado, mas ainda não sabemos o tanto. Foi por isso que, neste estudo, não projetamos qual é a redução do PIB do emprego decorrente do corona. A gente reduziu o emprego em 0,1% associado à uma redução do PIB de 0,14% e avaliou como isso se distribuía na renda das famílias. Esse tipo de modelo capta exatamente isso, porque é um modelo em que interagem setores produtivos, famílias, governo, setor externo – a renda das famílias está associada ao setor produtivo e ao governo também, via transferências. Então, quando você reduz crescimento e emprego, você tem o impacto direto dessa redução na renda das famílias.
Só que aí a gente ainda tem que levar em conta outros fatores, porque as famílias de classe mais baixa são mais vulneráveis, usam mais transporte público, ônibus lotados, moram em aglomerados, têm uma proporção de idosos mais vulneráveis e assim por diante. Para além do efeito que vai ocorrer em relação ao mercado de trabalho e na estrutura produtiva da economia, tem também o efeito de maior vulnerabilidade. Exatamente pela situação precária que as famílias se encontram. E há também uma tendência maior de adoecimento dessas famílias.
O governo anunciou um pacote de 147 bilhões como medidas emergenciais para combater os efeitos do coronavírus. Você avalia que essas medidas são eficientes para eventualmente conter esses efeitos desproporcionais?
Eu acho que as medidas são importantes, mas pensando fundamentalmente na questão das famílias, não são suficientes. Saque de FGTS e adiantamento do 13º das aposentadorias são medidas que vão pegar os [trabalhadores] formais, não pegam quem vai, de fato, ficar na informalidade depois por conta desse efeito da crise que tende a se prolongar. Temos uma tendência que esse efeito seja suavizado ao longo do tempo, mas ele tende a se prolongar.
Então essas duas medidas são importantes e ajudam a sustentar a demanda no curto prazo, o que é importante, mas não pegam as pessoas informais, que é uma parte importante da nossa população. Para os informais, o que foi feito? Aumento do recurso do Bolsa Família. Extremamente importante essa medida. O Bolsa Família é um programa focalizado, que tem um mecanismo muito bom e pega famílias em situação de pobreza e extrema pobreza. Mas o recurso que foi colocado a mais é insuficiente porque o Bolsa Família já está com problema de pessoas que são elegíveis pelo programa e estão na fila há bastante tempo. Esse recurso destinado para o Bolsa Família tem que ser usado para colocar famílias que já estão na espera, só que agora vamos ter mais famílias entrando na elegibilidade e essa fila vai aumentar. Nós temos algumas pessoas que vão perder o emprego, algumas que já estão com renda menor, que são as de classes mais baixas, mas que não eram elegíveis, mas aí ficam desempregadas. Então tem que aumentar o recurso do Bolsa Família porque o Bolsa Família já está com recursos reduzidos nos últimos anos. E a grande questão é a situação dos que não seriam elegíveis. Por exemplo, famílias que não tem crianças, famílias que os filhos já estão fora da idade coberta. O que fazer com essas famílias que estão na informalidade e passam a não ter renda mas que não são elegíveis para o Bolsa Família? Então um novo tipo de transferência vai ter que ser pensada também, outro tipo de transferência de renda. Para mim, a medida mais efetiva para atenuar os impactos, para mitigar os impactos para população é a transferência de renda. Outros países estão se movimentando nesse sentido.
No dia último dia 16, teve uma coletiva com a equipe do ministério da Economia, quando esse pacote de medidas foi anunciado, e perguntaram o que poderia ser feito em relação aos trabalhadores informais. Dois membros do governo se manifestaram. O Bruno Bianco, secretário da Previdência, defendeu a aprovação da MP 905, que institui a chamada carteira verde e amarela, dizendo que ela poderia trazer mais gente para a formalidade; e o secretário de produtividade, Carlos da Costa, disse que as medidas anunciadas devem atenuar o impacto do choque econômico, e consequentemente melhorar a situação dos trabalhadores informais. Você avalia que essas medidas tendem a ter efeito no médio prazo, um tempo menos urgente do que essa possível crise vai exigir?
Sim, exatamente. Primeiro acho que a pior coisa para lidar com esse tipo de crise é essa carteira verde e amarela, ou seja, a desregulamentação do mercado de trabalho. Se você retira direitos dos trabalhadores nesse momento, nós vamos ter um impacto ainda muito mais que o anunciado. Esse tipo de discurso, de discussão de reformas, de desregulamentação, não garante emprego, e o que já se viu nos últimos tempos foi que as reformas não trouxeram o impacto desejado no curto prazo, e elas não vão trazer. Reformas trazem impacto no longo prazo. No momento, acho que não é pra se discutir reformas porque a solução para a mitigação da crise do corona não é com reformas.
Sobre o reaquecimento da economia e do mercado de trabalho, já com as medidas colocadas, eu acho que de fato elas foram eficientes, mas o governo vai ter que colocar medidas mais expansionistas. Não sabemos o efeito dessa crise, o tamanho, o quanto ela vai durar, e quanto mais a gente postergar medidas de auxílio e de impulsionamento da economia, ou seja, instrumentos que atuem pra reativar a economia, mais o impacto tende a ser negativo no médio prazo. É muito perigoso que a gente hesite tomar medidas mais expansionistas no curto prazo, que hoje são necessárias exatamente para cobrir esses impactos potencialmente negativos sobre as classes mais baixas, mais vulnerável, isso acabe prejudicando a retomada no médio e longo prazo.
A gente passou por uma recessão e desde então a gente vem numa retomada muito lenta do nosso crescimento. E, agora, ainda tem um impacto negativo expressivo do corona. Se não tem demanda, os empresários não vão investir nem no médio prazo, porque ele investem quando têm perspectiva de lucro. Se os impactos negativos desaquecerem ainda mais essa demanda e, no médio prazo, os empresários não virem perspectiva de lucro, aí teremos uma retroalimentação desses efeitos.
É muito perigoso a gente não agir no curto prazo. Essas medidas que foram colocadas não vão ser suficientes, não são medidas expansionistas de fato, são medidas de realocação, não mexeriam na meta fiscal. A tendência é que piore a situação, tendo um impacto muito negativo no curto prazo e retroalimentando impactos negativos no médio prazo.
O que seria imprescindível, na minha opinião: o governo expandir seus gastos no curto prazo. Isso implica que o governo teria que mexer na meta fiscal, a gente teria que hoje aceitar um déficit maior, justamente para conseguir atenuar esses efeitos no curto prazo. Isso hoje não é tão problemático porque a gente está com taxa de juros baixas, os indicadores da dívida pública, a gente usa muito a relação dívida pública em relação ao PIB. Esse indicador apresentou aumento lá no período entre 2013 e 2016, mas desde então a gente teve uma estabilização desse crescimento da dívida pública, em relação ao PIB. Não vejo como um grande problema, hoje, no curto prazo, a gente ampliar o déficit para dar conta de enfrentar, de mitigar os efeitos dessa crise, justamente porque é uma crise que tende a afetar mais os mais pobres.